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Sofferenza — duas rodas e um coração

Não tem muito jeito de começar que não seja já no meio da subida. Aquilo não era para mim. Meu irmão, sete anos mais novo, se convertia em um borrão cada vez mais diminuto vencendo a inclinação. Meu pai, já lá em cima, balançava os braços, avisando que não faltava muito. Minha cabeça parecia que ia explodir, eu me afogava na minha própria respiração, minhas pernas faziam um esforço tremendo para mover o pedal — que resultava em um deslocamento pouco perceptível. Não era possível que isso fosse uma forma de lazer. Desci da bicicleta e a empurrei até o topo: a cara de satisfação deles, contemplando a vista, contrastava com a minha indignação: eu tinha trocado o futebol por isso! Eu não era estranha à bicicleta, e muito menos ao esporte. Eu me locomovia de bicicleta diariamente até o campo de futebol e até a natação. Na verdade, é o primeiro meio de transporte de que tenho lembranças — e o meu meio preferencial de locomoção até hoje — sentada na cadeirinha da bicicleta da minha mãe ou do meu pai, sendo levada e buscada na escola. Depois ganhei minha própria bicicleta, com uma “carteira de motorista” que meu pai havia feito, e a qual eu pendurava ao redor do meu pescoço para ir fazer pequenas compras na mercearia do bairro. Meu pai tinha uma bolsa de doutorado. Minha mãe dava aula de línguas. Morávamos no Japão.

Não sei se era estranho crianças terem carteiras de motoristas para irem de bicicleta até a mercearia mais próxima. A ideia tinha vindo de um desenho animado antigo que passava na televisão todas as noites, sobre uma família japonesa que buscava se adequar à modernização dos anos pós-guerra. Reunidas sob o chão de tatame, ambas as famílias estranhavam aquele país, embora não simetricamente. Depois mudamos de novo, outra bolsa, outro país, outra língua. Eu fazia parte de uma gangue de bicicleta composta por crianças das periferias do capitalismo e o meu pai agora corria de bicicleta pelos milharais do centro-oeste estadunidense, deixando a locomoção diária para um Subaru usado que havia sido previamente utilizado como um ninho por uma família de esquilos. Eu ia para a escola em um ônibus amarelo. Marco Pantani e sua inesquecível bandana voando montanha acima passaram a fazer parte do meu imaginário, bem como do meu irmão. Não me lembro de falar sobre isso com outras crianças: nosso assunto era o Michael Jordan e as figurinhas da liga de baseball, que colecionávamos por convenção, já que, exceto pelos dominicanos, nunca havíamos assistido a um jogo inteiro. Pensando bem, cada criança provavelmente tinha um esporte secreto que só era cultuado em casa como o boxe, o cricket, o ciclismo. Para os invernos rigorosos meu pai comprou uma coisa que sempre se chamou em casa de molinete, mas que o Google diz chamar, em realidade, rolo de treino. Ele ia empilhando blocos de madeira sob a roda da frente para simular diferentes inclinações e, graças à tecnologia do VHS, podia colocar a TV na frente da bicicleta e subir junto com o pelotão todas as montanhas dos Alpes e dos Dolomitas.

Foi mais ou menos nessa época que comecei a entender algumas coisas sobre minha família. Meus avós paternos e a irmã mais velha do meu pai não eram brasileiros, mas haviam chegado ao Brasil no começo dos anos 1950 — como se, após a guerra, eles ainda tivessem tentado insistir um pouco em sua permanência ali. Minha avó era órfã de pai e mãe, e havia visto o irmão mais velho ser assassinado por um soldado alemão quando saíam para caçar o almoço. Meu avô havia sido uma espécie de garoto de recados quando o vilarejo rural ao sul de Roma ficou sob ocupação nazista. Minha vó oferecia os relatos do horror, dos bombardeios, da fome, dos meses morando nos currais dos bichos, e meu vô os relatos da trapaça e da sabotagem juvenis diante do poder que sempre conservou para ele algo de ridículo, relatos que chegavam até mim por intermédio do meu pai, que ia me passando essas informações a conta-gotas, até elas finalmente se sedimentarem como dados constitutivos da minha própria existência, apesar das inúmeras lacunas contidas na transmissão dessa história. Fomos conhecer parte da família da minha avó, que havia migrado para o Canadá, e me lembro da esposa do irmão morto dela, que me foi apresentada como uma espécie de bisavó. As únicas palavras que ela sabia em inglês eram: “oh yeah” — e ela as repetia com entusiasmo.

Quando passei a conviver com os meus próprios avós, morando algum tempo com eles na casa em São Bernardo do Campo, percebi que, embora soubessem mais de duas palavras em português, muitas vezes a comunicação era difícil. Havia o sotaque e o dicionário inventados, que indicavam a sutura mal-ajambrada do trauma, mas tinha também um conjunto de referências que se apartavam quanto mais meu pai — e, portanto, eu e meu irmão — nos afastávamos das nossas origens braçais. Os silêncios inomináveis permaneceriam assim, e então apenas algumas poucas histórias eram repetidas, algo canonicamente, e a parte era tomada como um todo, sem possibilidade de indagação. Arrancando mato com a minha vó da impressionante-porém-minúscula horta em que cresciam verduras que só encontro hoje na horta do meu pai, comungávamos de um profundo senso de desterro. Ela nunca voltou à Itália, apesar de um quadro com uma pintura do vilarejo guardar a sala. Eu havia chegado finalmente ao meu país e meu apelido na escola continuava sendo estrangeira. Meu pai, no entanto, estava em terras familiares. Andávamos pelo bairro e ele me mostrava seus monumentos: a rua da pelada, a delegacia onde eles isolavam a bola sem querer, o caminho para a escola, a casa dos amigos. Revirando uns livros antigos descobri que ele havia ganhado um concurso de contos da cidade. Memorizei o conto como se eu o tivesse escrito. Revirando mais um pouco as caixas descobri que ele havia sido campeão de ciclismo de São Bernardo quando adolescente, e que ele havia corrido pela Caloi. Naquele momento, no entanto, aquele dado se somava à lista crescente de dados que eu ia descobrindo sobre ele à medida que revirava as caixas que minha avó havia guardado por todos os anos que havíamos passado fora e compreendia que meu pai e minha mãe possuíam uma vida que eu desconhecia, anterior a mim: a ocupação do Crusp, a moto, a barba. Mando uma mensagem para o meu pai, quero saber como ele tinha ido parar na equipe da Caloi. Ele me responde, evidentemente, de cima da bicicleta. Posso escutá-lo ofegando do outro lado. Meu pai é professor de engenharia. A sua didática é cristalina, mas as emoções o traem. A história, evidentemente, envolve o meu avô. A história do ciclismo italiano, evidentemente, envolve a guerra.

Tanto Mussolini quanto a república do pós-guerra jogaram com a paixão popular pelo ciclismo. As travessias heroicas dos ciclistas pelo país eram difundidas pelo rádio, como se os quilômetros percorridos por homens exaustos sobre estruturas frágeis pudessem sustentar a coesão de um país. O primeiro Giro d’Italia a ocorrer após a suspensão dos anos da guerra mobilizou o país, não menos pelo fato de ser retomado antes do Tour de France — e escolheu como seu local de chegada Trieste, cidade naquele momento em disputa entre a Itália e a Iugoslávia. Meu avô tinha 18 anos e é possível imaginá-lo seduzido pelas promessas da reconstrução movidas pelos pedivelas de dois gênios opostos, Gino Bartali e Fausto Coppi, que travaram uma das maiores rivalidades do esporte. Coppi, como Pantani, como meu pai — e meu avô antes dele — eram magros e, no entanto, extremamente resistentes ao enduro de uma subida. Bartali era forte, corpulento, e possuía um estilo de corrida clássico. Fumava como uma chaminé. Bebia antes das corridas. Era extremamente católico. E depois descobriu-se que ele havia abrigado e auxiliado judeus durante a guerra. Amado sobretudo no sul da Itália, seu estilo rememorava a Itália anterior à guerra, um ciclismo utópico de um mundo mais romântico. Coppi representava a modernização do esporte, percebia seu corpo como uma máquina: dedicava uma atenção maior à dieta, ao treino, e inaugurou, possivelmente, as práticas de doping que se tornariam indissociáveis do esporte nas décadas seguintes. Seus corpos indicavam vitalidade a uma população que se via aos farrapos. E ambos se digladiavam pelas estradas esburacadas e enlameadas do país, levando nas próprias costas o pneu reserva (“era tubular, me explica meu pai, colava direto na roda”), com Coppi levando a melhor nas altitudes, atacando e sustentando sozinho a dianteira por dezenas de quilômetros, oferecendo enredos épicos a zonas rurais e bairros urbanos consumidos pela tragédia.

Essas eram as histórias que povoavam a infância do meu pai, contadas naquela outra língua, um dialeto específico à região. Acompanhar do seu escritório, pedalando, o pelotão pela TV percorrendo as estradas italianas era também uma forma de ele imaginar esse outro lugar, antes da fratura. Mas, muito antes disso, foi uma espécie de acaso que o levou à prática do ciclismo. Ele era adolescente e uma etapa do campeonato estadual de ciclismo aconteceu em São Bernardo (“no Brasil, infelizmente, as etapas são sempre em circuito fechado, a gente fica rodando várias vezes as mesmas ruas”). O zunido das bicicletas passando a cada tanto o encantou. Alguns meses depois ele viu no jornal, na última página, em letras diminutas, um anúncio para uma corrida do município. Ele conseguiu uma bicicleta e se inscreveu. Eram três etapas. Na primeira ele ficou em 6º. Na segunda ele ficou em 4º. Na última o meu avô apareceu. A voz do meu pai falha um pouco, escuto a bicicleta ao fundo. É difícil não me comover com essa cena: meu avô era um homem calado, um tanto bruto, a angularidade das suas feições queimadas de sol lembrava as escarpas costeiras esculpidas por ventos tormentosos. Quando eu o conheci ele já estava aposentado e, mesmo assim, continuava com as roupas todas sujas, sempre consertando alguma coisa, plantando outra, praticamente se exilando na terrinha que havia comprado em Ribeirão Pires. Então é bonito imaginá-lo na corrida do filho, justificando a sua aparição para a partilha de um segredo. O que meu avô escutara por anos no rádio, entre os encômios nacionalistas e a vocação lírica de certos radialistas, foram análises das estratégias das equipes, que se portavam como matilhas até colocar o líder em situação ideal de ataque, protegendo-o de outros ciclistas, mas, sobretudo, do vento. Toda a emoção dessa modalidade de corrida — que pode durar até 10 horas — depende de um ataque no momento certo, ou de uma perseguição bem-sucedida. Meu pai deveria ficar junto do pelotão principal e atacar apenas na última volta, quando ninguém estivesse esperando. Ele venceu a etapa e venceu a corrida, tornando-se campeão municipal. O convite para participar da equipe da Caloi veio a seguir e então o tom de voz dele muda: pouco financiamento, peças caras e importadas, peças conseguidas a duras penas da Argentina, estrutura de treino precária, estudos e busca por um emprego.

Nos meses mais duros do isolamento social da pandemia sob o governo Bolsonaro, pensei muito nesses avós. Para a minha analista era óbvia a associação. Eu não estava em uma busca genealógica, mas em uma busca pelas memórias da guerra e da ocupação. Encontrei notícias do bombardeio do moinho público e a morte de 47 pessoas. Encontrei notícias e fotos da passagem dos americanos. Encontrei até o diário de um senhor de uma cidade vizinha, escrito durante os anos sob o cerco. Mas não encontrei nada sobre o que teria acontecido com a minha avó imediatamente após ela testemunhar a morte do irmão. Os soldados fugiram? Se aproximaram dela? A deixaram em paz? Ela ficou lá com o corpo? O corpo ficou lá? Eu voltava a perguntar para o meu pai e ele me contava a mesma história, a única que ele sabia, a mesma história que ouviu quando foi visitar parentes e finalmente conhecer o vilarejo deles — demonstrando que havia um consenso entre os dois lados do oceano acerca dos silêncios a serem mantidos. Meu irmão descobriu que meu avô tinha um irmão, sobre quem nunca havíamos escutado, que viera para o Brasil mais ou menos na mesma época e havia voltado. Era tudo muito nebuloso, cada vez mais, porque eu finalmente entendia o que incomodava no meu desconhecimento. Eu havia chegado à formulação das perguntas quando já não havia quem pudesse respondê-las.

Acordei um dia com a notificação de uma foto que eu nunca tinha visto da minha avó e que meu pai havia digitalizado em alta resolução. Abro a imagem como quem abre um portal. A montanha corta o quadrante superior direito da foto. Um pouco acima da base, um castelo medieval. No entorno, algumas edificações. O cenário é o da limpeza após a devastação — que não consegue ocultar os vazios na paisagem. Minha avó está sobre uma estrada larga, compactada pelos tanques de guerra e pelos caminhões que vêm recolher a produção minguada de oliva. A bicicleta imprime uma sombra diminuta e aguda sobre o chão. Um pouco atrás dela, um menino a olha, ou olha para a câmera, iniciando ou finalizando um aceno com o braço. Mais ao fundo, mais gente, com quase nenhuma nitidez: um aglomerado de fantasmas. Minha avó sorri. Não sei se minha tia já nasceu. Ou se ela ainda é solteira, morando no quartinho de uma rua tortuosa com a sua irmã menor. Ela usa um vestido xadrez escuro e um casaquinho claro por cima de tudo, certamente feitos por ela. Os sapatos são de couro. Ela encara a objetiva de frente. Não sei quem está por trás da lente, mas imagino que a pessoa esteja também sobre uma bicicleta. Não sabemos o ano da foto, e nem a ocasião. Seus olhos estão espremidos contra o sol. Ela se parece ao meu pai. Ela se parece a mim. Estranhamente, ela se parece até à minha mãe. Afastando-se das ruínas. Saindo da cidade para algum outro lugar. É como se tivessem colado uma foto da minha avó andando de bicicleta sobre uma versão preto e branco do quadro que ficava na sua sala. Eu nem sabia que minha avó sabia andar de bicicleta. A foto parece uma despedida avant la lettre. Ela pedala em minha direção.

Mais de duas décadas depois da minha desistência nos morros de Cotia, recebi uma mensagem motivacional do meu pai, que desvendou, em parte, sua obsessão com subidas. Não estávamos conversando sobre esporte. Eu estava prestando um concurso público em outra cidade e reclamava, exausta, de alguma tarefa burocrática e idiota, uma forma específica de ordenar a documentação que me custaria algumas horas adicionais de preparo. A resposta chegou em forma de parábola. Certa vez, dizia a mensagem, perguntaram ao Marco Pantani por que ele subia tão rápido as montanhas, ao que ele simplesmente respondeu — per abbreviare la mia sofferenza.