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Contra a linguagem ordinária: a linguagem do corpo

Kathy Acker
tradução livre de Gabriela Godoi

Gabriela Godoi

Diário Prefácio

Há dez anos eu pratico fisiculturismo, e levo isso a sério há quase cinco. Durante os últimos anos, tenho tentado escrever sobre fisiculturismo.

Tendo falhado repetidamente, quando me foi oferecida a oportunidade de escrever este ensaio, fiz o seguinte plano: iria à academia como de costume. Imediatamente, após cada treino, descreveria tudo o que tinha acabado de viver, pensar e fazer. Tais descrições diárias forneceriam o material bruto.

Após cada treino, esquecia-me de escrever. Repetidamente. Eu… uma parte de mim… a parte do “eu” que faz fisiculturismo… estava a rejeitar a linguagem, qualquer descrição verbal dos processos do fisiculturismo.

Eu começarei a descrever, escrevendo sobre fisiculturismo da única maneira que posso: começarei analisando essa rejeição da linguagem ordinária ou verbal. Qual é a imagem do antagonismo entre o fisiculturismo e a linguagem verbal?

Uma linguagem ausente de palavras

Imagine que você está em um país estrangeiro. Como vai ficar nesse lugar por algum tempo, você está tentando aprender. No em momento que se inicia o aprendizado dessa nova linguagem, mesmo antes de começar a entender alguma coisa, você começa a se esquecer da sua própria. Dentro dessa estranheza, você se vê sem uma linguagem.

É aqui, nessa geografia de ausência de linguagem, nesse espaço negativo, que posso começar a descrever o fisiculturismo. Pois estou descrevendo aquilo que rejeita a linguagem.

Elias Canetti, que cresceu entre uma infinidade de idiomas falados, começou sua autobiografia recontando uma memória. Nessa, sua mais antiga recordação, a perda da linguagem é ameaçada: “Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Saio de uma porta nos braços de uma menina, o chão à minha frente é vermelho e, à minha esquerda, desce uma escada igualmente vermelha…” Um homem sorridente se aproxima da criança; a criança, a pedidos, coloca a língua pra fora quando o homem abre um canivete e segura a lâmina afiada contra a língua vermelha.

“Ele diz: ‘Agora lhe cortaremos a língua’.”

No último instante, o homem puxa a faca de volta.

De acordo com a memória, essa sequência acontece diariamente.

“Assim começa o dia”, acrescenta Canetti, “e a história se repete muitas vezes.”1

A cada quatro dias, em três estou na academia. O que acontece lá? Como é que a linguagem se apresenta nesse lugar?

De acordo com o clichê, os atletas são estúpidos. Ou seja: eles são incoerentes. A linguagem falada dos fisiculturistas torna esse clichê real. A linguagem verbal na academia é mínima e quase sem sentido, reduzida a números e alguns substantivos. “Séries”, “agachamentos”, “repetições”… Os únicos verbos são “fazer” ou “falhar”, adjetivos e advérbios não existem mais; frases, se é que existem, são simples.

Essa linguagem falada é parecida com os “jogos de linguagem” que Wittgenstein propõe em seu O livro castanho.2

Em uma academia, a linguagem verbal ou a linguagem cujo propósito é o significado ocorre, se é que ocorre, somente no limiar de quando essa se perde.

Mas, quando estou na academia, minha experiência é de estar imersa em um mundo complexo e rico.

O que realmente acontece quando faço fisiculturismo?

A passagem pela fronteira de um mundo definido pela linguagem verbal para outro dentro da academia, onde o mundo externo não está autorizado (e toda sua linguagem) (nesse sentido, a academia é sagrada), toma vários minutos. O que acontece durante esses minutos é que eu esqueço. Um aglomerado de pensamentos caóticos, verbalizados na medida em que estou consciente deles, desaparecem quando a mente ou o pensamento começa a focar.

Para analisar esse ato de focar, preciso primeiro descrever o fisiculturismo em termos de intencionalidade.

O fisiculturismo é um processo, talvez um esporte, pelo qual uma pessoa molda seu próprio corpo. Essa modelagem está sempre relacionada ao crescimento da massa muscular.

Durante o treinamento, o coração e os pulmões são exercitados. No entanto, os músculos não crescerão se forem apenas exercitados ou movimentados, mas realmente rompidos. A lei geral por trás do fisiculturismo é que o músculo, se for microlesionado de forma controlada e depois receber os fatores de crescimento adequados, como nutrientes e descanso, voltará a crescer maior do que antes.

Para lesionar áreas específicas dos músculos, seja qual for a área que se deseja aumentar, é necessário trabalhar essas áreas isoladamente até a falha.3

O fisiculturismo pode ser visto como nada além de falha. Um fisiculturista está sempre trabalhando em torno das falhas. De qualquer forma eu treino um grupo muscular isolado, por exemplo uma das cabeças do tríceps, até a falha. Para fazer isso, eu exercito o grupo muscular quase até o ponto em que ele não consegue mais se mexer.

Mas se eu trabalhar o mesmo grupo muscular até o ponto em que ele não pode mais se mexer, devo movê-lo através da falha. Nesse caso, estou fazendo o que chamamos de “fase excêntrica”,4 trabalhando o grupo muscular para além de sua capacidade de movimento. Aqui está o segundo método de trabalhar com a falha.

Seja qual for o método escolhido, sempre quero treinar meus músculos e grupo muscular, até que ele não consiga mais se mexer: eu quero falhar. Assim que eu conseguir realizar uma determinada tarefa, tanto peso para tantas repetições em um determinado período de tempo, devo sempre aumentar um aspecto dessa equação, repetições de peso ou intensidade, para que eu possa novamente chegar à falha.

Quero machucar o músculo para que ele possa crescer novamente, mas não quero destruir o músculo para que o crescimento seja impedido. Para evitar lesões, eu primeiro aqueço o grupo muscular e, em seguida, levo-o cuidadosamente à falha. Eu faço isso trabalhando o grupo muscular em um número calculado de séries durante um período de tempo determinado. Se eu tentasse imediatamente levar um grupo muscular até a falha levantando o peso mais pesado que eu pudesse suportar, eu poderia me machucar.

Quero chocar meu corpo para que ele cresça; não quero machucá-lo.

Portanto, no fisiculturismo, a falha está sempre ligada à contagem. Eu calculo o peso a ser usado; em seguida, conto quantas vezes levanto esse peso e os segundos entre cada levantamento. É assim que eu controlo a intensidade do meu treino.

A intensidade, multiplicada pelo movimento de peso máximo, é igual à destruição muscular (crescimento muscular).

Seria a equação entre destruição e crescimento também uma fórmula para a arte?

O fisiculturismo tem a ver com falhar porque a musculação, o crescimento e a modelagem do corpo ocorrem em face do material, do movimento inexorável do corpo em direção ao seu fracasso final, em direção à morte.

Para romper um grupo muscular, quero fazer com que esse grupo trabalhe para além de sua capacidade. Para isso é útil e até mesmo necessário visualizar a parte do corpo que está sendo trabalhada. Então, durante a musculação, mente ou pensamento estão sempre focados em números ou contagens e, muitas vezes, em visualizações precisas.

Alguns fisiculturistas disseram que o fisiculturismo é uma forma de meditação.

O que eu faço quando pratico fisiculturismo? Eu visualizo e eu conto. Eu calculo peso; conto as séries; conto as repetições; conto os segundos entre as repetições; conto o tempo, segundos ou minutos, entre as séries: Do início ao fim de cada treino, de forma a manter a intensidade, devo contar continuamente.

Por esse motivo, a linguagem do fisiculturista é reduzida a um mínimo. Mesmo um conjunto fechado de substantivos e a repetição numérica são reduzidos aos jogos de linguagem mais simples.

Vamos chamar esse jogo de linguagem de a linguagem do corpo.

A riqueza da linguagem do corpo

Para examinar tal linguagem, um jogo de linguagem que resiste à linguagem ordinária, por meio das lentes da linguagem comum ou da linguagem cuja tendência é gerar sintaxe ou fazer proliferar os significados, devo usar uma rota alternativa.

Em outro de seus livros, Elias Canetti começa a falar a partir de e sobre aquela geografia que não tem linguagem verbal: “Uma substância densa, maravilhosamente luminosa persiste em mim e zomba das palavras”.

Sonho com um homem que desaprende as línguas da terra até não compreender mais nada em lugar nenhum.5

Estar em Marrakesh é o sonho de Canetti que se tornou realidade. Há linguagem aqui, diz ele, mas não entendo nenhuma delas. Quanto mais me aproximo da estrangeiridade, da estranheza, em direção ao entendimento da estrangeiridade e da estranheza, mais eu perco minha própria linguagem. A pequena perda da linguagem ocorre quando eu viajo para dentro do meu próprio corpo. É meu corpo uma terra estrangeira para mim? O que é essa imagem de “meu corpo” e “eu”? Há anos, como disse no início deste ensaio, eu queria descrever o fisiculturismo; sempre que tentava fazê-lo, a linguagem ordinária fugia de mim.

“O homem é”, diz Heidegger, “o que há de mais estranho”.6 Por quê? Porque em toda parte ele ou ela pertence ao ser ou à estranheza ou ao caos e, no entanto, em toda parte ele ou ela tenta traçar um caminho através do caos:

Por toda parte o homem abre caminhos para si mesmo. Atreve-se em todos os setores do ente, do vigor imperativo que se impõe. E por isso se vê lançado fora de todo caminho.7

O físico ou material, aquilo que é, está mudando de forma constante e imprevisível: é caótico. Esse caos entrelaça-se à morte. Pois é a morte que rejeita todos os nossos caminhos, todos os nossos significados.

Sempre que alguém faz fisiculturismo, ele ou ela está sempre tentando entender e controlar o físico em face dessa morte. Não é de se estranhar que o fisiculturismo seja centrado em torno da falha.

A antítese entre significado e essência já foi evidenciado diversas vezes. Wittgenstein no final do Tractatus: “O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor — e se houvesse, não teria nenhum valor. Pois todo acontecer e ser assim é casual”.8

Se a linguagem ordinária ou os significados estão fora dos limites da essência, qual é a posição desse jogo de linguagem que eu denominei de a linguagem do corpo? Pois o fisiculturismo (a linguagem do corpo) rejeita a linguagem ordinária e, ainda assim, ele mesmo constitui uma linguagem, um método para entender e controlar o físico que, nesse caso, também é o self.

Agora posso falar diretamente sobre fisiculturismo. (Como se o discurso fosse sempre direto). O jogo de linguagem denominado a linguagem do corpo não é arbitrário. Quando um fisiculturista está contando, ele ou ela está contando sua própria respiração.

Canetti fala dos mendigos de Marrakesh que possuem um jogo de linguagem semelhante e ainda mais simples: eles repetem o nome de Deus.

Na linguagem ordinária, o significado é contextual. Enquanto o grito do mendigo não significa nada além do que é; no grito do mendigo, o impossível (como Wittgenstein do Tractutus e Heidegger o veem) ocorre na medida em que o significado e a respiração se tornam um.

Aqui está a linguagem do corpo; aqui, talvez, esteja a razão pela qual os fisiculturistas experimentam o fisiculturismo como uma forma de meditação.

“Compreendi a sedução que há nessa vida que reduziu tudo à repetição mais simples”,9 diz Canetti. Uma vida em que o significado e a essência não se opõem mais. Uma vida de meditação. “Compreendi o que esses mendigos cegos realmente são: são os santos da repetição”.10

A repetição do um: o vislumbre em direção ao caos ou essência

Estou na academia. Estou começando a me exercitar. Ou digo o nome “supino” e me dirijo a ele, ou simplesmente me dirijo a ele. Então, eu posso imaginar o número do meu primeiro peso; provavelmente, como geralmente começo com o mesmo peso do aquecimento, apenas coloco os pesos apropriados na barra. Levantando a barra de seus apoios e descendo-as até a parte inferior do meu peito, conto “1”. Estou visualizando a barra, certificando-me de que ela toque meu peito no ponto certo, colocando-a de volta em seus apoios. “2”. Repito exatamente os mesmos movimentos. “3”… Após doze repetições, conto trinta segundos enquanto aumento meus pesos. “1”. O processo idêntico começa novamente, só que desta vez eu termino em “10”… Todas essas repetições terminam somente quando eu finalizo meu treino.

Sobre a contagem: Cada número equivale a uma inspiração e uma expiração. Se eu parar de contar ou de qualquer outra forma perder o foco, corro o risco de deixar cair ou manusear incorretamente um peso e, assim, prejudicar meu corpo.

Nesse mundo de repetição contínua de um número mínimo de elementos, nesse labirinto auditivo, é fácil perder o rumo. Quando tudo é repetição em vez de produção de significado, todos os caminhos se assemelham a qualquer outro caminho.

Todos os dias, na academia, repito os mesmos gestos controlados com os mesmos pesos, as mesmas repetições… Os mesmos padrões de respiração. Mas, de vez em quando, vagando dentro dos labirintos do meu corpo, me deparo com algo. Algo que eu posso conhecer porque o conhecimento depende da diferença. Um evento inesperado. Pois embora eu esteja apenas repetindo certos gestos durante um período, meu corpo, sendo material, nunca é o mesmo; meu corpo é controlado pela mudança e pelo acaso.

Ontem, por exemplo, trabalhei o peitoral. Normalmente, faço facilmente o supino na barra mais 27 kilos em seis repetições. Ontem, inesperadamente, mal consegui levantar esse peso na sexta repetição. Procurei um motivo. Sono? Dieta? Ambos estavam regulares. Estresse emocional ou no trabalho? Não mais do que o normal. O clima? Não era bom o suficiente. Minha falha inesperada na sexta repetição estava me permitindo ver, como se fosse por uma janela, não o exterior, mas dentro de meu próprio corpo, seu funcionamento. Eu estava tendo a permissão de vislumbrar as leis que controlam meu corpo, as leis da mudança ou do acaso, leis que mal são, se é que podem ser, conhecidas.

Ao tentar controlar, moldar meu corpo por meio de ferramentas e métodos calculados do fisiculturismo e, repetidamente, seguindo esses métodos não o fizer, sou capaz de me encontrar com aquilo que não pode ser por fim controlado e conhecido: o corpo.

Nesse encontro está o fascínio, se não o propósito, do fisiculturismo. Ficar cara a cara com o caos, com meu próprio fracasso ou com uma forma de morte.

Canetti descreve a arquitetura de uma casa típica no labirinto geográfico de Marrakesh. O interior da casa é frio, escuro. Poucas janelas, quase nenhuma, dão para a rua. Toda a construção dessa casa, janelas, etc., é direcionada para dentro, para o pátio central, onde só há abertura para o sol.

Tal arquitetura é um espelho do corpo: quando reduzo a linguagem verbal a um significado mínimo, à repetição, fecho as janelas externas do corpo. Significado se aproxima da respiração à medida que pratico o fisiculturismo, assim que começo a me mover pelos labirintos do corpo, para encontrar, mesmo que por apenas um segundo, aquilo que minha consciência normalmente não consegue ver. Heidegger:

A Existência (Da-sein) do homem Histórico significa: ser posto como brecha em que, com seu aparecimento, irrompe a supremacia vigorosa do Ser, a fim de que essa mesma brecha se abata e se quebre no próprio Ser.11

Em nossa cultura, ao mesmo tempo fetichizamos e desdenhamos o atleta, um trabalhador do corpo. Pois ainda vivemos sob o signo de Descartes. Esse signo também é o signo do patriarcado. Enquanto continuarmos a considerar o corpo, que está sujeito a mudanças, ao acaso e à morte, como repugnante e hostil, continuaremos a ver nosso próprio eu como perigosos outros.