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da promiscuidade: natação, tai chi, corrida

durante um tempo, que suspeito coincidir com o da minha (de)formação — intelectual, social, sexual, profissional e tantos outros ais que compõem a vida adulta —, comecei a achar que o sedentarismo era regra. a percepção em construção passou a considerar que uma vida boêmia e mundana, entregue à permissividade do beber e do fumar, era o que construía o interesse, a figura do maldito, mesmo que em versão bastante suco de pera da classe média branca privilegiada e interiorana. desses vícios não consegui me desfazer ainda, mas ao menos uma pequena escavação pessoal revela indícios da inverdade da narrativa sedentária: há memórias de aulas de natação desde pequeno, com competições amistosas de fim de ano pelo caminho; uma breve incursão pelo judô que nunca passou da faixa branca; uma e outra fase de basquete e handebol, de dedicação intensa e esquecimento idem; além de boa parte da pré-adolescência treinando saques de vôlei sozinho no quintal de casa e do desempenho de destaque nas partidas de queimada, duas das minhas modalidades favoritas, ainda que a segunda habite mais a categoria dos jogos.

essas duas últimas práticas reconhecem firma da inextricabilidade de certa estereotipagem da minha homossexualidade, mas lembram o que pode vir a ser outro fator de peso nessa equação: o horror ao futebol nas aulas de educação física, terreno pra lá de propício ao reinado de certa masculinidade tóxica e ao bullying que dela escorre, coisa que hoje se chama mais claramente de homofobia. foram anos e anos ocupando a contragosto a função de goleiro depois de sobrar na hora da escolha dos times, ou então fingindo uma marcação cerrada preestabelecida entre cúmplices tronchos. uma tendinite no punho, sintomática das madrugadas frenéticas de conexão discada, me valeu uma tala que foi o álibi pra evitar grande parte dessas situações. um dia cruzei o professor pelos corredores da escola e ele veio sorridente, me chamando pelo nome do meu irmão como sempre fazia, perguntando como eu estava, onde eu estava estudando, a quem respondi que seguia ali mesmo, e o sorriso cordial não demorou a se desfazer quando ele entendeu o quanto eu vinha sendo bem-sucedido em cabular suas aulas. climão. nunca deu em nada, óbvio.

a promiscuidade aqui não trata da fartura de parceiros e posturas, tampouco das estatísticas de consumo desenfreado de camisinhas entre atletas durante os jogos olímpicos, muito embora essa informação desperte algum tesão imaginativo. fala da diversidade de práticas físicas que costumo praticar em uma semana, idealmente duas vezes cada, tudo junto e misturado, que vim aprendendo compor o meu jeito de me manter em movimento. tem algo de evitar a rotina, de poder mudar a cor dos dias de acordo com o humor ou o que o corpo pede, com ajuda da secreção de algumas porções preciosas de endorfina e serotonina, ao mesmo tempo em que tem também algo de muito rotineiro, de insistir na repetição interessada e, com ela, poder acompanhar as minúcias do corpo, essa nossa interface de contato com o mundo, que é ao mesmo tempo tudo aquilo de que dispõe um sujeito e só mais um corpo. de todo modo, um ente que simplesmente não cala a boca.

quem voltou primeiro foi a natação, se não me engano. tenho a lembrança nítida de me lançar numa piscina olímpica, com seus cinquenta metros imponentes, e de quase botar os bofes pra fora antes mesmo de chegar na metade. depois tentei (e ainda tento) um pouco de yoga, mas àquela altura era mais paixão pelo professor. em seguida a bicicleta veio se impondo nos deslocamentos e virou hábito. aos vinte e seis, comecei a entender melhor que tenho um corpo por causa da dança; junto com ela veio o tai chi, mais tarde os meridianos. cúmulo do inesperado, há alguns anos a corrida se juntou ao pacote. some-se a isso uns tutoriais variados na tela do celular mais outros exercícios aprendidos depois de algumas ziquiziras ou lesões surgidas nesse ínterim. abordo aqui, então, um pouco dessa variedade, espécie de especialista em tudo que não se especializa em porcaria nenhuma. então:


natação

nadar tem algo de poesia
não necessariamente
por causa do azul
tampouco pelo deslizar
é mesmo questão de métrica
são muitos os parâmetros
constante a verificação
que me toma em média
metade do meu tempo n’água.
começa pelo crawl
que, pra mim, confesso,
sempre foi cráu
e nem sei se concordo
com essa coisa de rastejar
enfim, depois do impulso inicial
na beira da piscina
ou do salto no vazio,
parente mais próximo
da ambição do voo,
é soltar a pelve
e caprichar na ondulação
as mãos reunidas lá na frente
vão guiando em ôndulas
sem comprimir o pescoço
que ombro não é brinco
e começam as braçadas
uma em apneia
a segunda expirando em bolhas
uma nova lufada de ar
depois da terceira
alternando os lados
de inspiração a cada vez,
intenção e direção presentes
nas mãos espalmadas
que dão um impulso
— primeiro uma
depois a outra
primeiro uma
depois a outra
ad quase infinitum
e te jogam lá pra frente
ao mesmo tempo as pernas
batem constantes e fluidas
sem deixar enrijecer
mais o galeio das asas
que ajuda nesse escorrega
vale reparar, aliás,
como se alinham essas asas
que (semi)círculo é esse
que vai se traçando
pra onde apontam os cotovelos
de início destrambelhados
como é que pousa a mão
— mais elegância, faz favor
tenta manter só o olhar
numa diagonal pra frente
porque parece que se fica
uma dobrinha na nuca
não é bom sinal não –
junto com isso
as braçadas às vezes são contadas
pra entender o rendimento
um dois três
noutras a contagem se impõe
quatro cinco seis
à mente obsessiva
sete oito nove
e ai de quem tenta
dez onze doze
parar de contar
treze catorze quinze
em vão
dezesseis dezessete dezoito
pensa noutra coisa
dezenove vinte vinte-e-um
impossível se livrar
vinte-e-dois…
socorro, não adianta.
de repente completa um traço –
entre a breve respirada
e a cambalhota
chamada de virada olímpica
se dá uma manobra arriscada,
tem que soltar o ar
pra não encher o nariz d’água
e ficar com aquela sensação
que só encontra paralelo
na dor de cabeça da infância
de quem toma sorvete muito rápido
então pra ritmar esse feito
uma mania nova
recebo a elizeth cardoso
e vou emitindo as notas
de “manhã de carnaval”
cantarolando
e fazendo cócegas
na base do nariz por dentro
manhãããããã
não pode soltar o ar
todo de uma vez
tão boniiiiiiitaaaa
pra dar conta
de sustentar o rebolado
manhãããããã
e fazer uma saída
mais sereia do que náufrago
sem ficar esbaforido
de um diiiiiia feliiiiiiiz
nem sempre funciona
mas vale um sorriso
que chegooooou
e me faz pensar:
que entidades será
que escutam isso?
outro dia mesmo depois
de uma semana sem nadar
mais outras
de irregularidades em geral
senti os caminhos
dos braços se reativando

exclamação mineira
de uma nossa senhora
meio engolida
e também das articulações
exatamente as vértebras
jogando sinuca
dando estalos de reencaixe
das profundezas
(suspiro)
maravilha a elizeth
que interrompe
a contagem das braçadas
leva a um devaneio
pensa em outra coisa
volta ao mesmo lugar
e lembra da outra conta
a do acúmulo das piscinas
que é melhor não perder
será que oitocentos
ou setecentos metros?
tenta medir pelos vizinhos
os pontos de cruzamento
o relógio no canto
tudo parece igual
o dilema de roubar
pra mais ou pra menos
assim eis-me aqui
na metade do caminho
tentando empregar as braçadas
e cada tentativa é uma
diversa espécie de fracasso
diria o eliot de touca
enquanto tudo isso acontece
a solidão se faz rara
a piscina é um espaço social
que reúne de tudo um muito
e obedece um código
de circulação tácito
uma política própria
de espera nas extremidades
ultrapassagens no fôlego
ritmos dissonantes
coexistindo na mesma raia
dos velhinhos de passo manso
e pranchinha esticada
aos competitivos e velozes
cheios de acessórios
que travam às vezes
competições silenciosas
tal e qual carros cínicos
que se apoderam do acostamento
como se fosse mais uma pista
só pra eles
ou ainda aqueles
que estão só começando
de olhos e pulmões arregalados
as crianças suas bombas e boias
os grupos de hidroginástica
os atletas de verdade
que parecem operar
num outro registro
de constituição física
e ainda eventuais flertes
paixões súbitas motivadas
pela pele à mostra
mas isso é outro assunto.
de olhos espremidos nos óculos
o crânio mais ou menos
apertado em invólucros
de lycra silicone materiais
inteligentes e impermeáveis
embebidos nessa sopa
rala ou cósmica
de cloro e fluidos
xixi1 baba catarro micoses
li outro dia que a saliva
nada mais é
do que sangue filtrado
pensa?
band-aids e esparadrapos
apocalípticos boiando a esmo
nessa ficção científica
bastante real até que
uma voz metálica anuncia:
favor evacuar a piscina
i-m-e-d-i-a-t-a-m-e-n-t-e.
fim dos tempos? hecatombe?
os salva-vidas
que em portugal se chamam
nadadores-salvadores
espalham a fofoca na miúda
e em questão de instantes
arquibancadas e vestiários
especulam sem saber ao certo
se por cima ou por baixo
líquido ou sólido
mas alguém expeliu
algo inaceitável
e de uma só vez
simples assim
sai geral
todo mundo pra fora.


tai chi dowing2

pra começar, sentado em seiza, leva a testa ao encontro das mãos no chão. é importante marcar começo e fim tanto pro corpo quanto pra percepção, além de mandar aquele axé pr’aqueles que cultivam a técnica, reconhecendo e agradecendo os caminhos e pessoas por quem ela foi passando até chegar aqui.

aqui.

observa primeiro a respiração, será que está mais precipitada na altura do peito, ensimesmada no estômago ou bem acomodada na barriga? a última opção é a intenção, que vem não por uma vontade dirigida, mas pelo fino ajuste das engrenagens.

// o tai chi costuma trazer à mente a imagem de grupos de velhinhos mexendo os braços no ar, lutando com o vazio, que talvez venha da sua característica principal de ser uma meditação em movimento que cuida da saúde, da mobilidade e da autodefesa, atenta ao fluxo de energias. aqui falo da vertente taiwanesa tai chi dowing, que se serve dos padrões de movimento do tai chi chuan, mas voltada mais ao que se passa dentro do corpo, desenvolvendo certa eloquência dos movimentos internos. //

depois das respirações iniciais, que geralmente operam uma tábula rasa de chegada, passo aos exercícios de torção. são movimentos circulares com o torso em direção ao chão, aliados a diferentes configurações das pernas — uma por cima da outra, semilótus, abertas —, circulando ao menos seis vezes pra um lado e depois o outro, tudo balizado pela respiração, movendo do centro rumo às periferias e se despindo dos véus do controle da mente pouco a pouco. a coluna é entendida como um pano torcido e opera no respeito da sua amplitude, o movimento é conduzido por ela junto com os pontos de apoio do chão e a respiração, visando um ritmo sempre lento e constante. no meio do caminho doeu, ficou difícil, começou a sofrer? envia um sorrisinho na direção de onde engastalhou que alivia. pode parecer sádico, mas não é. funciona.

// acho que são três as principais coisas que o tai chi me ensina. a primeira delas é a respiração. observar onde ela se situa, em que medida essa maré toma e perpassa todo o organismo, e o quanto ela sozinha comanda tudo: a oxigenação das células, os movimentos do corpo, do menor ao maior, e o estado de ânimo que muitas vezes, na ciranda do dia a dia, passa de rolo compressor por cima desse parâmetro primordial ritmado por inspiração e expiração.3 //

ainda no chão, pelo menos mais três sequências, sempre em movimentos circulares: uma perna dobrada para trás e a outra esticada, o eixo do tronco indo de sentado até quase em contato com a coxa; depois circulando em sentidos opostos a cabeça e um pé segurado no ar; por último, meio de cócoras percorrendo uma sola do pé de cada vez pelas beiradas, com o peso do tronco entregue à coxa. os pontos de atenção se mantêm e ganham complexidade pouco a pouco, mas sempre voltados à mobilização das articulações, que são os lugares onde costuma acumular sujeira, onde os fluxos de ar e energia podem eventualmente enguiçar, e isso a gente não quer.

// a segunda é o estado de percepção e presença, que abole as fronteiras de dentro e fora e também a dualidade corpo e espírito. tudo é uma coisa só, tudo opera junto, tudo está em movimento constante. é notar e se fazer presente pras diversas sensações, sentimentos e estímulos que se manifestam, sem tentar controlar, mudar ou racionalizar. //

até que chega a hora de se colocar de pé, abraçando o centro — primeiro a mão esquerda, depois a direita por cima, mais ou menos três dedos abaixo do umbigo, no caminho da felicidade — reparando bem onde se está apoiando: afoito mais na direção dos dedos, ressabiado e hesitante nos calcanhares, ou ciente com o pé todo no chão? mais uma vez, a última opção é a intenção, é ir percebendo e fazendo suaves adaptações internas. depois algumas respirações acompanhadas pelos braços em diferentes níveis mais a conexão calcanhar-períneo, imensa descoberta, seguidas de movimentos do tronco para a frente, seis para um lado e para o outro com os braços entrelaçados, observando e conduzindo o percentual cambiante da transição de peso e força que se deposita nos pés, desenhando um “o” bem grande com os cotovelos no ar.

// a terceira é o aterramento, a firmeza do contato com o chão, e como essa superfície pequena dos pés opera um equilíbrio nada negligenciável que se acomoda em permanência à gravidade, orienta e permite os demais movimentos, e ainda dá raiz — não é por acaso que as solas são chamadas de plantas. nunca vou me esquecer de uma noite meio altinho com amigos em casa quando me dei conta do aumento dos espaços entre os dedos do pé. fiquei vidrado, maravilhado, em choque. o mundo em volta ficou suspenso. é um dos meus maiores orgulhos até hoje. //

em seguida vêm os movimentos dos braços na frente do corpo, talvez os mais claramente associados ao tai chi, articulando yin e yang com os membros superiores e inferiores ao mesmo tempo. vai sentindo o gostosinho do movimento, confere se o kung fu tá em dia na capacidade de manter os braços imóveis no ar e evolui pra uma sequência inenarrável em poucas palavras. é prazer em fluxo com uma série de movimentos e imagens nonsense descrita assim, a olhos nus, que poderia se estender por páginas e páginas: protege o rosto, passa o pente, investida na frente e atrás, autoabraço, bate asas, circula punhos cotovelos ombros joelhos, se acaricia, pega água na cascata, vira uma mesinha, cresce só com as laterais dos pés, bate asas mais uma vez com as plantas fincadas no chão, desce novamente pressionando um êmbolo e recomeça tudo de novo do outro lado.

// em que medida ou com que frequência atinjo tudo isso são outros quinhentos. como meu conhecimento é limitado, minha prática também o é. os movimentos são mais ou menos os mesmos, mas cada iteração traz as informações do momento e pequenos sedimentos de percepção. consigo identificar o que está encurtado impaciente errado e ir desatando os nós de pouquinho. além disso, descobri que, pra mim, com intervalos bastante longos e nada previsíveis, um belo dia a repetição desbloqueia alguma novidade no entendimento, seja do traçado preciso e profundo do movimento, dos espaços que ele abre nas articulações ou de alguma conquista trazida pela insistência. camadas de um coral, alegria sólida. //

chegando nas últimas sequências, acabo me entregando a exercícios de equilíbrio. um pé no chão e outro erguido, joelhos flexionados, braços em posição correspondente e as mãos se apoiando no ar. tá bambeando, muito difícil? foca num ponto na frente. tá muito fácil? flexiona mais o joelho. depois a grace jones: uma perna ancorada e a outra traçando um grande círculo no ar em seu eixo, os braços circulam simultaneamente, sem esquecer respiração e ativação de punhos, cotovelos, ombros e pés — vira e mexe tremendo mais que vara verde. & já que estamos quase no fim, quase um carinho: a mão vem em direção ao coração, se desvia e circula apontando longe lá atrás e volta, num movimento que pode fazer as vezes de massagem ou servir para quebrar o braço de alguém.

vai que, nunca se sabe.

// já dizia a hilda: ainda que se mova o trem, tu não te moves de ti. só que o tu também é pleno movimento e aprende a ir levando, afinando a interpretação, a observação e o gingado. pelo menos isso. //

pra concluir, as respirações do início voltam, logo se vê que agora foram parar no lugar certo. é hora de marcar o fim: o tronco se curva levando a testa até as mãos suspensas na altura do centro de gravidade, avisando que terminou, reconhecendo e agradecendo os mestres.

duas horas se passaram.

por hoje, o corpo é outro.


corrida

antes eu achava que se fosse correr no minhocão, a fúria divina faria essa aberração arquitetônica tão (des)prezada ruir atrás de cada passo, transformando a empreitada numa cena de filme de aventura dos mais clichês e efetivos, de tanto que aquilo destoava de como eu me via. eu que não ia me prestar a isso. foram necessários alguns anos de tentativas bastante espaçadas mais as limitações impostas pela pandemia pra cravar o hábito. aqui de onde escrevo, na realidade distópica tão concreta que foi o ano de dois mil e vinte — por causa da covid dezenove que continua entre nós em vinte e três (and counting) —, era preciso ter um documento de próprio punho se autoautorizando (sic) uma saída de casa por tempo e perímetro limitados, contemplando uma lista bem reduzida de atividades possíveis. praticar esportes ao ar livre era uma delas, e ir correr na beira do rio se transformou em uma nesga de horizonte nada negligenciável, que de quebra ainda infringia os dois quilômetros de distância autorizados. finalmente colou.

em princípio, não tem nenhum grande segredo: é se vestir, colocar um par de tênis e sair correndo, que não passa de uma versão acelerada do caminhar, certo? mais ou menos, tudo tem suas minúcias. sem seguir o código de vestimenta, por exemplo, posso sair de mamilos ralados, saco dolorido, pés em frangalhos. quesito acessórios, tento preservar o minimalismo: pochete elástica que não chacoalha muito pra guardar o essencial, óculos de sol, celular, fones de ouvido e uma camada de protetor solar quando é o caso. relógio inteligente, aplicativo de corrida? não cheguei lá ainda, estou na fase de achar que minha mão vai cair se eu ceder, mas há chances de ter virado a casaca daqui a não muito.

pra mim o primeiro quilômetro é sempre o mais difícil, quando o ritmo cardíaco vai entendendo que o que vem pela frente é uma hora de atividade intensa e o corpo manda uma fatura detalhadíssima enquanto se adéqua ao clima: onde exagerei nos últimos dias (cf. alcoólicos e fumígenos), quanto tempo faz que não corro (cf. displicência e deslocamentos), se as juntas estão devidamente alongadas e aquecidas (cf. disciplina e prazos), se estou fazendo corpo mole ou achando que corro mais rápido do que a minha realidade (cf. autoimagem delirante), se a respiração está bem cadenciada (cf. tai chi em dia) etc. e tal. também é o momento de se aclimatar com o que vem nos ouvidos — metade notícias atrasadas, metade música ou só música mesmo? a segunda opção tem ganhado, e a atividade se vê agraciada por misturas as mais esquizofrênicas. atualmente tem joão gomes, iggy pop, timbalada, doja cat, sidney magal, ava rocha, george michael, mc jéssica do escadão… o céu é o limite. diga-me com quem corres e te direi quem és.

uma vez que o ritmo engata, os parâmetros entram em um modo meio automático, o que coincide com o ponto em que a cidade vai se diluindo atrás e a paisagem muda à beira do rio. o trânsito das estações se arreganha flagrante. o mato que vai crescendo e as eventuais intervenções de poda do serviço público, a temporada do pólen abundante que entra nos olhos, as diferentes ondas da primavera com cardos papoulas girassóis, as nuvens de aves migratórias viravolteando ou as que passam só lambiscando a água com a ponta das asas, um cisne de quando em vez, a fase do calor intenso, as nuvens de mosquitos e pernilongos em polvorosa, a estação de tratamento de esgoto na margem oposta e o fumacê de uma indústria de não-sei-o-quê, depois quando tudo começa a secar, o dégradé das folhas, as últimas florações tardias, o inverno implacável com qualquer superfície de pele à mostra, o frio com vento de gelar os ossos e a excitação coletiva quando se ganha um par de graus inesperados, até que as primeiras folhas despontam e o ciclo começa de novo, uma volta correndo em torno do sol, o clima sempre se transformando e deslocando um pouco a cada vez. piora daqui, estica dali, fica esquisito acolá… tudo culpa nossa, claro.

chego, então, na metade do caminho e encaro o mesmo percurso de volta, rebobinando os trinta minutos anteriores. precisa de uma pausa? anda uns cinquenta, cem metros e retoma, mas não mais, senão as chances de ficar folgado comigo mesmo crescem exponencialmente. o tempo de afiar o resto da playlist, quase a mesma muleta de quem encena uma chamada imaginária pra atravessar uma situação xis em público (quem, eu?). daí vem a vontade de cantar e dançar, também um equilíbrio delicado, que uma coisa desestabiliza o passo, e a outra, o fôlego. ouvir só funk proibidão, por exemplo, é pura maravilha, mas o balanço da raba não demora a soçobrar o ato de correr. vou na miúda, apanhando alguns gestos aqui e ali, acrescentando um jogo de ombros. cantar idem, como conjugar uma atividade cardiorrespiratória com a expiração modulada da produção de voz? os riscos de parecer uma indesejada variante de treino do exército são elevadíssimos, e a qualidade da cantoria, deplorável, mas não dá pra resistir. like a rolling stone, por exemplo, é fatal, um dia ainda faço um vídeo disso. vez por outra tem também um jogo obsessivo-compulsivo ou infantil, chame como quiser, de fazer tantos passos dentro de um quadrante do chão, saltar poças como quem corre com obstáculos e afins.

não raro gosto de aproveitar as retas compridas e fechar os olhos pra correr às cegas um pouco, um cagaço imenso que aperta o estômago e que, claro, não pode durar. como na piscina, a corrida também é um espaço de sociabilidade e códigos não ditos, comparações silenciosas e paqueras fugazes. as regras são mais claras e próximas do trânsito e da urbanidade, dividindo espaço com pedestres, ciclistas, carrinhos de bebê e os deletérios patinetes elétricos, uma dessas coisas que polariza o mundo entre quem compactua e quem execra. tem ainda os que correm em dupla ou em grupos maiores ou menores, e os que vão papeando, o que beira o impensável pra mim. ou os pequenos saltos sem se deslocar, pogobol imaginário de quem espera pra atravessar a rua ou desfazer um imbróglio de circulação, prioridades mais ou menos respeitadas em pontos de entroncamento e a especulação sofisticada do cálculo de ultrapassagem à base de pernas e pulmões.

chegando de volta ao ponto de partida, às vezes o fôlego vai arrefecendo, noutras, o pique se acelera e resolve espremer até o talo da capacidade física, o tal do sprint. via de regra estou ensopado, resultado de uma hora suando a cântaros por tudo quanto é poro: rosto canelas sovacos monte de vênus pés peitoral cabeleira rego virilhas tudo molhado e salgado. as partes pudendas inundadas exalam um cheiro acre, mistura de tesão e toxinas. o rosto bem irrigado todo vermelho, aquela canseira besuntada nos hormônios de bem-estar e felicidade, os pulmões dizendo “deu, né?”, os pés assuntando se deu bolha ou não. coxas e panturrilhas firmes e esticadas como um rosto coalhado de botox me lembram que parte da adolescência e começo da vida adulta eu passei escondendo os cambitos de vergonha da finura, pura bobagem e coisa séria ao mesmo tempo. que bom que passou. agora só dá pra pensar em banho e fome.


daria ainda pra falar da bicicleta, dos meridianos e de muitas outras coisas mais, mas este texto já vai se acompridando além da conta e do limite de caracteres. caminhando então pro fim, queria convocar aqui a kathy acker, que faz boas reflexões no seu texto “contra a linguagem ordinária: a linguagem do corpo4 ao tentar colocar em palavras sua experiência de prática do fisiculturismo e se perceber falhando sistematicamente. descobrindo-se incapaz de fazê-lo, ela entrega mesmo assim uma bela reflexão que mobiliza elias canetti, wittgenstein e heidegger, descrevendo à sua maneira a atividade repetitiva, matemática, atenta e tediosa que ocorre durante o esforço físico voltado a romper os músculos e fazê-los crescer. penso bastante nesse vazio de linguagem para o que acontece no corpo, que é ao mesmo tempo o maior denominador comum dos seres humanos e o mais extremo elemento de diferenciação e subjetividade, paradoxo da possibilidade de empatia radical e da alteridade patente, gritante. acker conclui:

colocar-se cara a cara com o caos, com a minha própria falha ou com um tipo de morte. (…) quando eu reduzo a linguagem verbal ao sentido mínimo, à repetição, eu fecho as janelas externas do corpo. o significado se aproxima da respiração (…) enquanto eu começo a me movimentar através dos labirintos do corpo para encontrar, mesmo que só por um segundo, aquilo que o meu consciente normalmente não pode ver.

é o que tento articular à minha maneira na prática de texto e movimento, mais particularmente com a dança, no malabarismo das lacunas que as palavras não conseguem preencher ou acessar no corpo e que este, por sua vez, falha repetidamente no sentido oposto desse mesmo diálogo. isso me conduz a outras tentativas frustradas, as ambiciosas, frutíferas e inconclusivas notações coreográficas empreendidas por tantos teóricos, que passam por esse mesmo lugar e não param de se deparar com falhas, impossibilidades e limitações, muitas vezes gerando escritas tão impressionantes quanto quase ilegíveis. assim como uma língua universal é tarefa impossível, uma linguagem universal para descrever o movimento do corpo é um consenso inatingível que se debruça sobre essa mesma falsa verdade da similaridade dos seres, todos eles portadores de todos os movimentos em potencial, vezes oito bilhões de variações. vamos então de beckett como outra forma de notação de movimento:

dizer um corpo. onde nenhum. mente nenhuma. onde nenhuma. ao menos isso. um lugar. onde nenhum. para o corpo. estar lá dentro. morrer-se lá dentro. e sair. e voltar lá para dentro. não. sair nenhum. voltar nenhum. só entrar. ficar lá dentro. em diante lá dentro. parado.

tudo desde sempre. nunca outra coisa. nunca ter tentado. nunca ter falhado. não importa. tentar outra vez. falhar outra vez. falhar melhor.5


partindo do sedentarismo virei meu próprio inimaginável. equilibrando intenção, presença e atenção, vou recebendo de tempos em tempos downloads de grandes blocos de entendimento de uma consciência corporal claudicante. esse interesse generalista que não se quer modelo para nada nem ninguém, vira e mexe incorre na superficialidade, mas luta também contra a eventual coerção da técnica e da virtude, que são pano pra mais de manga. talvez um aceno final de arrivederci ou tentativa de reconciliação com esse termo que está longe de figurar entre meus favoritos, mas que a etimologia, sempre ela, ajuda a jogar alguma luz: esporte ou desporto encontram origens em disport, do inglês, ou déport, do francês, ambos com o sentido de lazer, entretenimento, passatempo, e que derivam do latim deportare, levar e trazer, transportar, deportar. a contradição de levar pra longe e mergulhar bem fundo, sem jamais perder de vista o prazer. banal e essencial, como sói às grandes compreensões.

novembro de 2023