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Sobre uma velha história de boxe1

Untitled (Neutral Corner), Lucas Arruda, 2018

A mais antiga reportagem esportiva que conheço, e também uma das mais bonitas, está na Eneida, canto 5. Faz parte de uma série de jogos (corrida de navios e de cavalos, boxe e arco e flecha) promovidos por Eneias no aniversário da morte do pai, Anquises. O canto se inspira numa passagem análoga da Odisseia (canto 8), em que também se fala de cinco competições (corrida, luta, salto, boxe e arremesso de disco) organizadas para festejar a chegada de Ulisses junto aos feácios. Em Homero, tudo se resolve em uma classificação rápida: na corrida, vence sicrano; no boxe, beltrano. O relato de Virgílio, por sua vez, dura quinhentos versos densos, sem digressões ou metáforas, aderentes aos jogos minuto a minuto, como uma transmissão de rádio.

O gesto atlético foi, através dos séculos, se decantando, tornando-se abstrato. A corrida, o remo, a equitação, o arco e flecha, assim como são descritos na Eneida, parecem estranhas algazarras, jogos de adolescentes. Os corredores tropeçam, reerguem-se, procuram fazer o adversário cair; os navios se chocam, um timoneiro é lançado ao mar por ter errado uma manobra; o alvo dos arqueiros é uma pomba amarrada a um mastro por uma corda de linho. O jogo parece conservar algo de substancial, primário. Ainda guarda uma relação com a luta pela vida, ainda não se tornou esporte.

Tyson certa vez declarou: “Não gosto de esportes; os esportes são eventos sociais”. E não se contradizia: o boxe não é um esporte, é uma sobrevivência dos antigos jogos. Na época de Virgílio, usavam-se, em lugar das luvas, correias de couro cobertas de tachas de chumbo e ferro, enrolados nas mãos dos lutadores — os temíveis cestos. Tirando essa particularidade, as situações, as táticas, a psicologia dos combatentes continuam as mesmas.

Untitled (Neutral Corner), Lucas Arruda, 2018

Observemos o combate do canto 5 da Eneida: de um lado está Dares, jovem campeão troiano que se aquece simulando golpes : “lança os braços para frente, alternados, e golpeia o ar com os punhos”; do outro lado está o siciliano Entelo, um campeão muito mais famoso que Dares, mas que agora está velho (tem os cabelos brancos) e não luta faz tempo. Começa o duelo: Entelo se coloca no meio do ringue, atento sobretudo a defender-se. Não pode fazer outra coisa: os joelhos já não são tão seguros, a respiração é pesada. Com as pernas duras, quase imóveis, confia principalmente na experiência, na atenção e nos movimentos do tronco: “Entelo mantém-se imóvel, evitando os golpes apenas com o corpo e com os olhos atentos”. Ágil de pernas (“melhor no movimento dos pés”), Dares dança ao redor dele, procurando uma brecha: procura ora uma, ora outra brecha, examina atentamente cada espaço e o persegue com ataques contínuos, em vão”.

Subitamente Entelo se apruma e detona uma direita com toda a força. Dares percebe a tempo e se desvia — perdendo o equilíbrio, Entelo cai por terra. O público está de pé: “Levantam-se excitados os troianos e o povo da Sicília: os gritos chegam ao céu”. Não se trata de nocaute, mas é uma evidente demonstração de inferioridade do velho campeão. Alguém o ajuda a levantar. Entelo está disposto à derrota, mas não ao ridículo. Parte para o ataque, sustentado unicamente pela raiva. Aplica sequências: “ora redobra a direita, ora a esquerda. Sem pausa nem repouso. Dessa vez os golpes atingem o alvo. Dares começa a defender-se confusamente, depois a retroceder, quase que fugindo. Só não cai porque o juiz (Eneias) interrompe a luta. Mas precisa ser carregado aos navios pelos companheiros, “cuspindo sangue e dentes”.

Untitled (Neutral Corner), Lucas Arruda, 2018

Não é esse, porém, o final do relato — há ainda um apêndice. Levam o prêmio a Entelo: um touro. O velho campeão, que sente mais uma vez o sabor da vitória, que ainda não descarregou toda sua raiva, concede-se uma última bravata. Voltando-se para Eneias e a torcida adversária: “Vejam, Troianos — diz — quanta força havia em meu corpo jovem e de que morte pouparam Dares, retirando-o” — e, com uma direita entre os cornos do touro, afunda-lhe o crânio e o mata. Depõe, então, os cestos, e jura nunca mais lutar.

Os apaixonados por boxe de minha geração terão reconhecido, na primeira parte da luta, um combate lendário: Ali versus Foreman, Kinshasa (Zaire), 1974, campeonato mundial dos pesos pesados. Foreman, na época campeão, era um lutador fisicamente muito poderoso. Arrebatara o título de Frazier com uma facilidade impressionante. Dispunha de um uppercut devastador. Contra Frazier, Ali perdera outro duelo histórico quando pela primeira vez tentara reconquistar o título que lhe fora tirado por um tribunal, não por um lutador. Depois disso, houvera outro Frazier versus Ali para escolher o desafiante do novo campeão, Foreman. Ali vencera, mas vencera um Frazier já desarmado. Aquela luta mais parecia um jogo entre velhas glórias do que um desafio entre dois aspirantes ao título.

Foreman versus Ali: um, jovem e portentoso campeão; outro, grande boxeador em fim de carreira. Como Entelo, Ali se planta num ângulo do ringue, pensando unicamente em se proteger, durante sete, oito assaltos. De repente, contra-ataca numa sequência perfeita de três golpes. Foreman vai ao chão, fulminado.

Untitled (Neutral Corner), Lucas Arruda, 2018

Comparado com Entelo, Ali aparentemente teve mais sorte: adivinhou o alvo com mais rapidez, não precisou suportar a vergonha da queda. Mas talvez os deuses tenham protegido mais o velho siciliano, deixando-o vencer, mas mostrando-lhe também que seus reflexos já não eram os de outrora. Entelo se vê forçado a perseguir Dares, que não cai logo, ou melhor, nem chega a cair — o antigo campeão pode sentir quanto esforço demanda, em sua idade, uma sequência vitoriosa. Vence, mas sabe que será a última vitória. Ao matar o touro, não é seu prêmio que é sacrificado, mas suas últimas forças. E retira-se no momento certo.

A vitória de Ali foi quase mágica, tão fácil pareceu. Não teve um touro para matar, e suas últimas forças, consumiu-as pouco a pouco, destruindo-se.

Mas o que conta, nessas vidas paralelas a milhares de anos de distância, é a extrema semelhança entre elas. O boxe era e é elementar, é uma situação dramática simples, que só pode repetir arquétipos. Entre Eneida, canto 5, e Rocky 4 não existem — e não podem existir — diferenças substanciais (a não ser, é óbvio, que Virgílio é melhor narrador que Stallone). Arquetípico é o retorno do velho campeão do ringue — o herói que volta para retomar o posto, para cumprir sua vingança. Poucos boxeadores resistiram à tentação. Um só, acho, entre os grandíssimos: Rocky Marciano. O último a voltar à cena foi Holmes. O próximo, parece, será Foreman, que tentará, contra Tyson, o que Ali conseguiu contra ele. Tarefa impossível. Foreman não é Ali, e Tyson não é Foreman. Além do mais, a empresa só foi levada a cabo por poucos craques: além de Ali, só me lembro dos dois Sugar Ray, Robinson e Leonard.

Untitled (Neutral Corner), Lucas Arruda, 2018

O fato é que o boxe não é apenas um jogo de força e destreza. Levantamento ou arremesso de peso requerem uma potência muscular maior, o braço do lançador de dardo é muito mais rápido e decidido. Não é simplesmente a força que está em jogo no boxe, mas as últimas forças, a força do desespero. O verdadeiro boxe só começa quando os braços ficam pesados, quando os reflexos não são mais os mesmos, quando se começa a ter medo. Somente fenômenos como Ali e Leonard conseguiram esconder o medo com uma eficácia que chega a intimidar o adversário. Apenas boxeadores dignos de entrar na história puderam hipnotizar enormes talentos como Foreman e Hagler. E volto a Entelo, a um episódio que precede a luta da Eneida.

Quando Dares se apresenta, seu aspecto é tão atemorizante que ninguém tem coragem de enfrentá-lo. O campeão está prestes a ir receber o prêmio diretamente, tamanha é sua certeza de não ter desafiante. Mas o rei de Érix, cidade da Sicília que hospeda os jogos, envergonha-se de não poder oferecer um adversário e pede ajuda ao velho amigo Entelo. Da resposta se percebe que Entelo, ainda que o negue, tem medo. Fala que, se tivesse a idade de Dares não seria preciso dizer duas vezes, que agora a velhice resfriara seu sangue e exaurira suas energias — mas por fim se levanta. A partir desse momento, todo gesto seu será para obter uma vantagem sobre o adversário.

Untitled (Neutral Corner), 2018
video, 4'27", sem cor, com som
© Lucas Arruda
Cortesia do Artista, Galeria David Zwirner e Mendes Wood DM

Ali era mestre em aproveitar psicologicamente os momentos que antecedem a luta. Entelo também o é. Atira no campo dois cestos descomunais, feitos da pele de sete bois. Outrora haviam pertencido a um lutador ainda mais famoso, Érix, o fundador da cidade, que lutara contra Hércules. O próprio Dares, assustado, dá um passo atrás. E Entelo, aparentemente generoso, aceita combater com cestos comuns (e talvez ele nem conseguisse mais carregar os antigos). Chega ao ringue vestindo um manto duplo, deixando à vista apenas os cabelos brancos. Só quando se posiciona no meio do ringue é que deixa cair o manto, revelando seus músculos enormes.

Quando a luta começa, tanto Dares quanto Entelo sentem medo — mas o medo tira as forças de Dares, multiplica as de Entelo. O medo toma Dares de surpresa, o campeão não suspeitava que alguém pudesse atemorizá-lo; já Entelo talvez tivesse parado de lutar justamente porque o medo se tornara forte demais. Sua vantagem, agora, é a exata consciência, quase a angústia, de seus limites.

Tyson é um grande campeão apenas em potência, porque jamais precisou chegar ao fundo de sua resistência — ainda não enfrentou um verdadeiro encontro de boxe. Entra-se para a lenda quando se começa a tirar proveito da própria fragilidade. O boxe é um esporte para homens velhos.