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O golfe

Vi a bandeira no vento, e o sol batendo
inclinado no gramado grande.

— Willian Faulkner, O som e a fúria.1

Convite para Minigolf universal (A terra prometida) exposição, Jimmie Durham, 2010

O argentino toma uma taça de vinho depois do churrasco. Aceita o charuto do espanhol e caminha a seu lado em direção ao primeiro tee.2 O norte-americano alcoólatra já está lá, preparando-se para a primeira tacada. São profissionais, e no final do dia todos voltarão para as suas casas com alguns milhares de dólares a mais nos bolsos.

Quando comecei a me interessar pelo golfe, essa cena hoje improvável não era tão incomum. Antes da chegada de Tiger Woods, havia uma porção de jogadores meio fora de forma, embora habilidosos, vencendo torneios milionários e pagando rodadas de bebida na sede dos clubes a cada hole in one3 conquistado. O golfe era considerado por muitos mais um jogo do que um esporte. Entretanto as coisas estavam mudando, e o maior responsável por isso era um jogador ainda franzino, incrivelmente talentoso, Eldrick Tont Woods, apelidado Tiger. A chegada de Tiger mudou tudo. Suas bolas iam mais longe, as jogadas curtas eram mais precisas e os putts4 sobretudo sob pressão, quase mágicos. Além disso, com o tempo, Tiger foi ficando mais forte e atlético, forçando os demais jogadores a aprimorarem o físico na tentativa vã de batê-lo. Sua influência foi e ainda é imensa. Sua fama, que veio dar até mesmo no Brasil, um país onde jogar golfe é para poucos, fez com que as transmissões fossem muito mais frequentes, e houve uma época em que os torneios em que jogava chegaram até a TV aberta por aqui. Acompanhei toda a incrível carreira de Tiger e, durante um tempo, cheguei a assinar um canal pago chamado Golf Channel, cujo lema era “golfe, 24 horas por dia, 365 dias por ano”, para desespero de minha mulher. Felizmente para nós dois a abdução durou pouco e fui me contentando com os grandes torneios exibidos pelos canais de esportes variados. Mas, antes disso, no início de meu interesse pelo golfe, Vijay Singh, natural das ilhas Fiji, o grande jogador da época, foi quem primeiro me fascinou pela calma e precisão nas jogadas. Um jogador cool, um tanto distante e ensimesmado. Sem ser um grande atleta, era o número 1 do mundo e conseguiu encarar o Tiger de igual para igual por um breve período. Fui acompanhando também esse personagem nos torneios, torcendo por ele e tentando entender as regras e minúcias desse esporte pouco popular no Brasil. Depois, com o declínio de Vijay, veio o período onde Tiger tornou-se quase imbatível e aí foi como ver, exagerando quem sabe, Pelé uma segunda vez.

Fora o golfe, o esporte de maneira geral sempre fez parte da minha vida. Quando jovem joguei futebol e mais seriamente tênis. Hoje, embora só pratique caminhadas inconstantes pelo meu bairro, gosto sobretudo de acompanhar pela televisão modalidades pouco divulgadas, com regras e detalhes que não se apreendem num primeiro momento, tipo curling, ciclismo de estrada, judô, vela oceânica, e observar a carreira de ídolos mundiais pouquíssimo conhecidos em nosso país, como os famosos eslovenos Tadej Pogacar e Primoz Roglic, astros do ciclismo. O topo dessa cadeia parece ser o golfe. Não conheço ninguém que assista partidas de golfe pela TV. Passo quatro dias vendo um major,5 vibro, me emociono, guardo momentos históricos desse esporte na memória e não tenho ninguém com quem compartilhar a experiência. E vou dizendo: não sabem o que perdem. Mas sendo claro, estou sempre falando do golfe transmitido pela televisão.6 Porque nunca dei uma tacada.

Mentira. Houve uma exceção. Certa vez meu amigo Romulo Fróes, sabendo do meu interesse pela prática, presenteou-me com um taco, um madeira 3,7 comprado numa feira de antiguidades. Empolgado, apanhei uma bola gravada com a inscrição Pebble Beach8 que um outro amigo havia me dado e levei o equipamento para o sítio de uma terceira amiga, onde havia um extenso gramado em frente a uma mata fechada. Escolhi o local da tacada, posicionei a bola e empunhei o taco. Mas havia algo estranho nele. Logo percebi que, sendo destro, ganhara um taco para canhotos, tornando a tacada muito difícil ou impossível para mim. Não desisti. Nasci canhoto e fui canhoto até me obrigarem na escola a escrever com a mão direita. Inverti minha posição e confiante mandei a bola matagal adentro. Nunca mais tive notícia dela.

Mas sei bem que, para quem vê pela primeira vez, uma transmissão de golfe parece ser a coisa mais aborrecida que pode haver. Um jogador é anunciado, seguem-se aplausos e depois silêncio. Ele toma posição, executa uma série de rotinas, concentra-se e dá a tacada. Mais aplausos e gritos de to the hole! A câmera acompanha a bolinha até seu pouso em algum ponto distante do campo. Em seguida o jogador caminha cerca de 300 metros por um gramado até o local onde sua bola foi parar. Nesse meio tempo a câmera pode ficar estacionada em primeiro plano enquadrando um arbusto florido ou por exemplo uma vista da sede do clube enquanto ao fundo ouve-se uma melodia meio neutra e doce, mixada com algum som ambiente, geralmente pássaros ou água corrente. A narração é calma e os comentários escassos. Diferente do ciclismo de estrada (para citar mais uma vez meu novo vício) onde os competidores são acompanhados por barulhentos veículos, motocicletas com câmeras, helicópteros e drones variados, no golfe todos os planos de cima são captados por silenciosos e nostálgicos dirigíveis. As câmeras pelo campo são quase invisíveis. Mas como no maravilhoso título em português de um filme de Yasujiro Ozu, a rotina tem seu encanto. Os técnicos que operam as câmeras me remetem às virtuosas tomadas do nosso Canal 100,9 com seus planos panorâmicos em câmera lenta filmados através de teleobjetivas pouco luminosas em jogos noturnos e, vale ressaltar, com uma quantidade bem limitada de latas de negativo. Apanhar os lances em movimento acelerado e, principalmente, não perder o momento do gol, evidenciava uma intuição rara e uma façanha técnica que impressiona até hoje. Também os operadores de câmera do golfe acompanham a minúscula bola desde o momento em que deixa o taco até seu pouso no gramado a muitas jardas10 de distância, frequentemente num plano único, com foco, perfeito e definição. Considerando o tamanhinho da bola, a velocidade da tacada e a distância percorrida, igualmente um feito e tanto. Gosto também do jogo porque, entre outras coisas, nos primeiros dias de um torneio e até os nove buracos finais do último dia,11 nada é tão decisivo e é possível assistir à transmissão e ao mesmo tempo realizar outras atividades como ler, ouvir música, ou, por exemplo, escrever esse texto. Não faz muita diferença o volume de som da TV e os comentários são dispensáveis. Até evitáveis, eu diria. A duração longa do jogo, em torno de 4 horas para que um jogador percorra todo o campo, e a transmissão acompanha vários deles, faz com que invariavelmente invada os horários de refeição e avance noite adentro, e, no caso de alguns majors, como o Masters de Augusta, na Geórgia, é possível que a transmissão já comece nas primeiras horas da manhã. Além disso, cada torneio é disputado nesse ritmo e duração por quatro dias, geralmente de quinta a domingo. Mas à medida que você vai se habituando e vivendo mais o jogo, ou esporte,12 essa aparente monotonia vai se mostrando relativa. Inúmeros fatores contribuem para tornar o espetáculo por fim emocionante e magnético. Jogado num espaço imenso, onde toda escala de eventos naturais interfere a ponto de sorte e azar fazerem parte e serem resignadamente considerados na equação, o golfe é provavelmente o esporte onde mais o acaso, o inesperado, o improvável, o surpreendente e o injusto acontecem a cada rodada e principalmente na última e decisiva delas: a grama da manhã cresceu e quem joga à tarde não joga na mesma superfície; pode chover, ventar muito ou pouco, o vento pode mudar de direção, formar redemoinhos enquanto a bola está no ar; cada campo tem uma medida diferente e acidentes naturais como cursos d’água, lagos (às vezes com animais neles, jacarés, tartarugas, sapos, que não raro invadem o campo e interrompem a partida), ou acidentes projetados como “bunkers de areia13 e “hazards14 cuidadosamente colocados para dificultar as tacadas e complicar qualquer planejamento prévio tensionam ao extremo cada lance. E mesmo as bandeiras (colocadas nos buracos para que sejam visualizados à distância) são posicionadas a cada dia em locais diferentes do green,15 obrigando a estratégias diferentes de approach.16 E as árvores, é claro, participam e muito do jogo. No campo de Augusta, onde se joga o famoso Masters, havia uma árvore que o ex-presidente americano Dwight D. Eisenhower detestava, pois suas bolas invariavelmente acabavam batendo nela. Certa ocasião ele exigiu que o clube cortasse a árvore, o que obviamente lhe foi negado. Essa árvore ficou famosíssima no mundo do golfe e passou a ser chamada de Eisenhower tree, até desabar por si só após uma tormenta. E como se não bastasse tudo isso, no green (que na tv parece uma gigantesca e perfeita mesa de sinuca, mas que é de fato ondulado, com aclives e declives acentuados), pode haver um morrinho artilheiro como no futebol, uma graminha mais alta, uma pedrinha despercebida. A bola tem que chegar ao buraco na velocidade exata. Um pouco mais ela passa por cima dele e pode encontrar um barranco e ficar longe demais para a próxima tacada. Um pouco menos, já pode significar falta de confiança do jogador, o que seria um sinal positivo para o adversário. Acrescente-se a esses fatores um incômodo inseto zumbindo na orelha, um flash de celular no momento do putt, um grito fora de hora de um espectador, o estado emocional e físico dos jogadores, suas reações à pressão, e o fato de que, após Tiger, todos os outros competidores foram se sentindo cada vez mais intimidados pela maneira como o tigre driblava cada uma dessas situações de modo a se tornar quase insuperável num esporte tão cheio de variáveis. E o que aconteceu em seguida e fez com que eu ainda acompanhe com interesse o esporte é que ele se tornou muito mais competitivo e, no rastro de Tiger, outros jogadores interessantes e muito mais preparados foram surgindo, renovando a cena ano a ano.

Autorretrato com kwilt escocês tradicional, Jimmie Durham, 2010

E por fim, só para coroar, mais uma idiossincrasia: me divirto muito observando os uniformes que alguns jogadores usam. Há um filme dirigido por William Wyler (Avanti! 1972) que tem um início irresistível: dois personagens estão sentados lado a lado num avião. Nota-se de antemão que não conhecem um ao outro. Um deles, vestido com uma roupa excêntrica, bastante chamativa, cochicha alguma coisa no ouvido do outro. Depois disso, ambos entram juntos no banheiro e, minutos após, voltam com as roupas trocadas. Mais tarde, sabe-se que o que vestia a roupa extravagante estava indo ao enterro do pai na Itália. Convencera o que se sentara a seu lado de que havia saído de um campo de golfe direto para o voo e, portanto, não estava trajado adequadamente para o funeral. Como o filme ilustra, não há nada de uniforme em alguns uniformes do golfe. Embora existam regras conservadoras quanto à vestimenta, e a maioria se curva a elas, alguns resolvem se vestir da forma que lhes convém. Calças estufadas com meias que sobem pelas canelas quase até os joelhos, sapatos bicolores, camisas com um colorido que só pode ter a função de ofuscar a visão do adversário, paletós xadrezes, e o que quer que surpreenda e chame a atenção. Tiger sempre se veste de vermelho na última rodada. Ah, e é claro que também não posso deixar de mencionar os caddies,17 esses mistos de conselheiros, guarda-costas, psicanalistas e o que mais se possa imaginar do incontornável carregador de tacos do golfista. O caddie pode ser o golfista que não conseguiu se firmar na carreira, pode ser um parente, um amigo de infância, ou até um profissional vocacionado para a coisa sem a companhia de quem muitos dos maiores jogadores não teriam alcançado o sucesso. Não há como não se sentir comovido com um sujeito que carrega uma sacola com 30 quilos ou mais por 7, 8 quilômetros por dia, para que o golfista esteja leve e descansado na hora de executar seu swing.18 O caddie é o grande abnegado do golfe.

Por fim, devo admitir que embora adore esse esporte, aceito e relevo todo tipo de crítica ao seu elitismo, conservadorismo e caretice em geral. O golfe tem uma história antiga, que remonta aos romanos, mas sua popularidade centenária teve início nas frias e eólicas terras escocesas. No início como um jogo simples, de marinheiros esperando para embarcar, foi aos poucos se tornando diversão também de reis e da nobreza, trajetória que deixou marcas duradouras. Hoje é um esporte bilionário, com uma nova e controversa liga criada por países árabes que tem arrastado alguns dos melhores jogadores do mundo para si em troca de altos cachês, independente de premiações.19 Patrocinado por marcas de luxo, grandes bancos e instituições financeiras, dividido hoje entre os que acreditam que, além do dinheiro, o golfe deixa um legado histórico, e os que desejam simplesmente acumular fortunas que atravessem gerações, o golfe profissional tem servido nos tempos recentes também e cada vez mais como palco de propaganda política. Por aqui, na 29º Bienal de São Paulo, em 2010, para ilustrar sua visão da elite econômica e política brasileira, o artista norte-americano Jimmie Durham, montou uma instalação chamada Centro de pesquisa sobre a normalidade brasileira e, entre outros objetos, colocou dentro de uma vitrine um manequim trajando um terno elegante, trazendo um rolex no pulso, um revólver na cintura e uma óbvia sacola de tacos de golfe ao seu lado.

Second Life, Jimmie Durham, 2010

Mas, como em todo lugar, e por contraponto, sempre há histórias de jogadores que começaram sem grana, que eram caddies de clubes e tiveram alguma oportunidade e assim foram se destacando no esporte, como o argentino Angel Cabrera (o do churrasco e vinho), vencedor do Masters e do US Open. O próprio Vijay Singh, meu primeiro ídolo, praticava com coquinhos na infância por falta de grana para comprar bolinhas. Tiger começou em campos públicos, treinado pelo pai. Acompanho exclusivamente o golfe profissional pelo mundo, e é uma coisa que faço sem construir propriamente uma ideia sobre ele. É mais como ter sido tomado por um acontecimento de desenrolar lento, marcado por longas pausas, bem longe do padrão de transmissão da maioria dos eventos esportivos intensos e barulhentos, narrados por tenores ensandecidos. Quase como aquelas pessoas, eu incluído, que durante um tempo acabaram encantadas por documentários sobre a vida selvagem, pela rotina dos leões na savana, pelos enormes crocodilos submarinos de quem só se vê a cabeça e os olhos fora d’água ou ainda por um mergulho de ave de rapina atrás da presa impotente. Fui sendo seduzido pelo golfe como quem vai a um safari fotográfico num ambiente controlado. Não conheço quase nada da realidade do golfe no Brasil, profissional ou amador. Sei que existem uns lugares onde você pode alugar um equipamento e dar umas tacadas sem gastar muito, mas certamente para se jogar golfe direito por aqui é preciso ter uma graninha razoável, ser sócio de clubes exclusivos, comprar um equipamento caro, pagar por aulas anos a fio, conviver talvez com gente meio chata, etcétera e etcétera. Mas, também projetando um outro lado, como utopia poética, eu sei que Jorge Ben Jor joga golfe e tudo que Jorge faz só pode ser bom. Ouvi dizer que ele anda tentando levar Paulinho da Viola para jogar com ele e para mim faz todo sentido. Posso imaginar facilmente Paulinho com toda sua elegância realizando swings perfeitos e mandando a bolinha com precisão a qualquer canto do campo. De minha parte, continuo aqui no sofá, esse meu tee, meu fairway,20 meu green perfeitos, vendo tudo através do silencioso dirigível mesmo quando no mesmo horário há alguma transmissão de futebol (contanto que não seja uma final) do meu querido Santos Futebol Clube.