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Eu, o sonho, a frustração

Correndo em praia na Grécia, Fernando Henrique

O atletismo pode ser uma espécie de tripé para a compreensão de si mesmo. A junção entre mente sã e corpo saudável faz a ótica do seu universo se transformar. É a tal questão existencial do sentido da vida.

Correr fez com que eu “enxergasse” soluções práticas para tudo e com que eu desejasse, em vários momentos, uns 5 km por dia para sentir alguns prazeres.

O “corre” é uma atividade presente na vida de um ser humano periférico desde os primeiros passos. Acontece que, infelizmente, na forma substantivada do termo, ao invés da medalha, a ação está relacionada à sobrevivência, e a vitória, nesse caso, supõe instrumentos para os próximos capítulos da vida.

Mesmo que não haja treinador para essa modalidade, a experiência tem, inevitavelmente, algo de transformador. Para mim, hoje, digo que o “corre” foi e é conhecimento. A maneira como aprendi a desenvolver resistência fez toda a diferença para a minha personalidade. Trinta e poucos anos depois eu me sinto e me vejo mais forte.

A complexidade daquela época, se comparada ao dia de hoje, era, para mim, a parca consciência sobre o preparo físico, a falta de informação sobre o que é atletismo e seus benefícios e, o mais importante, o despreparo mental. Nada disso eu tive. Eu adquiri com muito custo.

Escolher mudar de vida é um risco. Pode dar muito certo, mas também pode dar muito errado. No meu caso, o processo da mudança me fez entender que tudo está no caminho que eu quero que esteja.

Fiz muitos “corres” cotidianos. Entender e crescer em um lugar que representa o abandono da instância pública, e da sociedade, complementa, de modo geral, a minha reclamação e insatisfação. Pois vem daí muito da dificuldade que eu tive em me abrir e receber o esporte em minha vida.

A periferia é carente de centros esportivos, de centros culturais e de áreas verdes. Até aí sem muita novidade, a diferença é que eu sei disso porque hoje vivo em Paris.

A Casa Verde, bairro em que nasci, não é mais o lugar escolhido para eu ser enterrado, por várias razões. Depois de muito correr eu descubro que os limites não existem. Ou pode ser que existam. Afinal, há situações em que a polícia pode te confundir: em poucos segundos você corre o risco de passar de atleta que corre de capuz à noite a suposto criminoso. E, num aperto de gatilho, já era. Mais um preto assassinado.

O campo de visão para com os esportes é confuso e limitado, em alguns casos.

O futebol é exceção: visto a flexibilidade popularesca desse esporte, ele está presente na periferia onde eu nasci.

Não gostar de correr atrás de uma bola com mais outras 21 pessoas desde criança era quase um crime. Não ser interessado em futebol, por exemplo, ferrou muito com a minha vida. Porque no subúrbio as regras “pré-estabelecidas” nem sempre funcionaram para mim.

Eu “falhei” por não querer.

Me lembro de ver todos os negros do bairro, ou uma grande maioria deles, investir no sonho de deslanchar na carreira de jogador e, claro, ficar milionário, como a televisão vendia à época. Óbvio que ninguém discutia ou questionava a dificuldade dessa conquista.

Atletismo em São Paulo, ou no Brasil, na minha opinião, é um esporte que o benefício segue da necessidade de ser manter vivo. Correr no centro da cidade da capital paulista é um desafio.

Na maioria das vezes, as condições são ruins. O acesso às calçadas é difícil, devido às condições de manutenção, estamos sempre expostos ao frenético trânsito de carros. Os motoristas, muitas vezes, não são civilizados para coabitarem com pedestres. Prova viva é o número crescente de acidentes envolvendo ciclistas nos últimos anos: em 2021, foram 321 óbitos, em 2022, o estudo registra quase uma morte por dia, ou seja, 357 mortes, segundo o Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito (Infosiga).

Eu metamorfoseei. A corrida, entre todos os desafios, contribui para que possa ter uma saúde que considero de ferro e estar e me sentir cada vez mais feliz. O regime, a nova vida, a disciplina e o vício ao esporte foram determinantes para a formação da pessoa que acabei me tornando. Mas vamos por partes porque não foram só rosas, muitos espinhos também se fizeram presentes.

A minha história é simples e tem dois momentos: o primeiro é que o esporte nunca foi um tema para mim; e o tempo atual representa a mudança.

Eu queria compromisso com a alegria, não com a dor. Explico: na minha percepção, tudo na vida de um esportista era chato.

Quando se é obeso — sim, eu era gordo, sempre fui — existe ainda outro componente contra você. Existe uma decepção e uma validação social sobre os corpos. Eu nunca era considerado bom em nada. Sim, em ser guloso, talvez. Eu fiz isso bem.

Estar gordo aos olhos dos outros faz de você alguém “café com leite”, como diziam na minha época, nos anos 1980. Sempre te excluem dos grupos, e sem razão aparente, pelo fato de você ser uma pessoa fora dos padrões. Todos veem obstáculos em você existir. Todos.

O fato é que eu nunca fui o cara mais rápido, o mais ligeiro. Em nada. O meu talento estava em um completo limbo, numa várzea.

A tentativa com o futebol foi um fracasso. Nunca entendi as regras. Eu fui uma criança com muitos trejeitos, o que para essa modalidade não era possível e aceitável à época. Primeira frustração.

A agressividade e a masculinidade tóxica me expulsaram desse lugar.

Anos depois: o judô. Ser gordo não era uma barreira. Vislumbrava um relacionamento novo e com possibilidade de permanência. A oportunidade de se concentrar em algo representava algo atual para mim. Me encontrei nesse esporte porque eu percebi que ali eu podia fazer um pouco de exercício, fortalecer o cérebro e expulsar a raiva. Viver esse lugar me mostrou um outro tipo de perfil que havia em mim. Aliás, me fez enxergar como pessoa, mesmo que uma pessoa adolescente gorda, mas, enfim, me ensinou a me respeitar.

Essa alegria durou pouco. A ideia de vencer o medo me pareceu constante e obrigatória. Eu tinha muitos medos. A força e a agressão, em alguns casos, eram parte da técnica. Não cabia nos meus princípios.

Próximo passo: natação. Uma escola pública de bairro me acolheu. A piscina era algo quase que de luxo ali. Entre falta de professor — que era constante —, problemas na piscina e diversidades do clima, logo a frustração dois é anunciada.

Sem direção, eu parto para o básico: a musculação. Academia do bairro. Também sem sucesso. Os exercícios de repetição não faziam o menor sentido para mim. O menor. Frustração três com muito peso neste momento.

Resolvi passar pelo vôlei, pois percebi que era um esporte que considerava pessoas acima do peso. Mas não deslanchei. Perder era uma violência para mim. Frustração quatro. Não tive estrutura para lidar com a derrota, ainda que ela seja um fenômeno natural.

Depois de todos esses desacordos, a decisão foi parar e assumir que o tipo de vida proporcionada para os seres esportivos exigia muito de mim. Nada estava funcionando.

Ali fui eu, comer mais uma coxinha, tomar outro refrigerante e, à noite, bater aquele prato de feijoada. Sinceramente,tudo isso era mais fácil. O que eu buscava era facilidade para existir. E uma das minhas maiores alegrias sempre foi e é comer.

Com o passar dos anos, chega o álcool, que não contribui em nada para a evolução ou para iniciação esportiva. Com ele, outras drogas também me atrapalharam muito.

Aos 35 anos de idade, 140 quilos me descreviam. Tem hora que doía. Tem hora que a militância fazia doer menos. Mas sempre foi ruim.

Não demora para que as coisas piorem. Chega a hora em que a saúde decide apontar as consequências de uma vida inteira de exageros. A culpa. A diabetes. As dores musculares. A insônia. A ansiedade. E um derrame de presente aos 17 anos, e por aí vai.

A derrota se torna o seu melhor amigo. Eu me acostumei a viver com a ela.

Como um filme de comédia, mas sem ser engraçado, eu comecei a perceber que enxergava meu pênis com dificuldade no banho, tinha dores no joelho, transpirava sempre e muito. Tinha assaduras em todas as dobrinhas. Ganhei mil apelidos, ouvi milhões de piadas de gordo.

O ódio venceu.

Odiar.

Me odiar trouxe o melhor de mim. Existir.

É 2018, depois de anos vivendo na França volto ao Brasil. A alimentação continuava péssima. Mas estava muito melhor que antes. Eu já entendia a diferença entre dois carboidratos em uma mesma refeição.

Tive uma discussão séria na terapia e o dilema passou a ser “viver melhor“. A questão ali foi: o que posso mudar para eu continuar sendo eu, mas em uma versão feliz e saudável?

Foram vários pensamentos, mas nada de muito claro nem objetivo.

Resolvi buscar informação ou resposta na fé, na religião, mas isso não me rendeu mais saúde.

A caminhada foi um conselho médico. E na minha cabeça, quem caminha são os velhos. Mas eu estava e já me sentia mais velho.

Comecei a caminhar muito em Nova Iorque. A essa altura eu morava nos Estados Unidos.

No país dos fast-foods eu entrei para o clube dos que comem menos e saudável. Escolha essa que pode ser muito chata.

Um dia decidi fazer algo novo de novo. Parar o álcool. A vida ficou, sobretudo, insuportável, boring. Todos ao meu redor eram péssimos, eles bebiam e comiam batata frita. Imaginem a minha raiva.

Fui em uma nutricionista, e, depois, em um outro especialista em alimentação, todos muitos legais. Conversa fluida e honesta. Encontrei minha turma.

E no momento a fase “tudo ao mesmo tempo agora” começa a funcionar e ter sentido.

Em 2019, ainda na big apple, desejo entrar numa academia. Os valores mensais são surrealistas para o meu bolso. Não posso.

Era inverno e o inverno americano é foda. Duro. Eu (re)comecei a nadar. E passei a correr lento e não mais a caminhar.

Mudei.

Sentia falta de algo mais. Nada concreto, mas uma necessidade existia ali.

E um almoço com uma amiga foi de grande valor para que eu desse início ao que mudaria minha vida para sempre.

Eu me lancei. Comecei a correr com seriedade, treinando. Respeitando esse esporte como ele merecia.

Era difícil. Mas eu estava ali. Feliz. Não queria parar.

Receber a minha dose de endorfina diária virou uma necessidade.

Neste momento eu assumo meu casamento com a corrida.

Conheci um coach. Comecei a treinar com amor e fidelidade, algo que alguns casamentos exigem se ambas as partes estão de acordo. Nós estávamos.

Foram semanas, e cada dia eu corria um pouco mais por Manhattan, que hoje eu considero o melhor lugar do mundo para correr. Tem pista de corrida em vários lugares da ilha, vários.

Semanas mais tarde os primeiros resultados visíveis: perca de peso.

Mais leve, eu comecei a correr mais rápido — a sensação de poder ‘voar’, era, em muitos momentos, quase uma realidade.

Eu podia correr durante horas.

Muito apaixonado por essa relação, comprei um Garmin, relógio inteligente para esportistas. Naquele dia eu vi que nada podia me parar e nos separar. Nada.

Treinar corrida é um estado que só quem corre sabe. O começo tem tudo de ruim até alcançar o bem-estar. E, diferentemente da minha vida anterior, eu estava viciado nesse esforço.

A minha dose de endorfina valia cada segundo de sacrifício correndo.

Alguns meses depois, já não existia sacrifício, era pura satisfação. Correr sou eu resistindo. Sou eu tentando ser melhor do que ontem.

Se neva, eu corro. Se chove, eu corro. Se está quente, eu corro. Correr virou o melhor de tudo para mim.

Quando corro, sinto que o tempo trabalha a meu favor. Eu nunca tive alguém que trabalhasse para mim ou por mim. A sensação de que tudo vai ficar ainda melhor é possível na corrida.

A corrida me fez querer correr na direção em que eu vejo luz e afeto.

Eu corria. E corri muito nestes últimos anos.

Atualmente, são muitos quilos a menos. O que facilita ainda mais a corrida.

Eu estou mais leve em relação ao ódio social e injusto que não me concedeu acesso ao atletismo. Alegre porque hoje eu tenho a minha experiência como base para contar a minha história.

Já participei de algumas provas de corridas, inclusive maratonas.

Fiquei em segundo lugar em uma competição curta.

O tempo, que já me foi um problema na vida, hoje é sinônimo de responsabilidade e organização. Porque eu preciso de tempo para correr.

Sem correr minha organização não é mais a mesma, e amo essa organização que tenho atualmente.

Frequentar esse lugar é o sentimento mais profundo que eu senti.

De certa maneira, sinto-me uma pessoa melhor.

Eu tive um orgasmo correndo, na verdade foram três. Correr todo gozado me fez ter tesão para enfrentar esse mundo de competição injusta.

O atletismo me fez ressignificar a ideia de limite. Sou uma pessoa mais eficaz por ter encontrado um modo de me identificar.