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Entrevista com Rafael Vilela

10 anos de junho de 2013

Mariana Guardani

Em 2010, Rafael entrou na rede Fora do Eixo a partir de um coletivo da sua faculdade. Algum tempo depois, ele se tornou um dos principais fotógrafos de junho de 2013. Fundador do Mídia Ninja, já acompanhava manifestações há um ano e meio em São Paulo quando cobriu o primeiro ato contra a redução da tarifa. “Ali já deu pra sentir uma intenção diferente.” Aquele mês foi intenso, com até quatro manifestações por semana para serem registradas e distribuídas em diversas cidades. Depois de todos esses anos, reflete que a comunicação que o coletivo Fora do Eixo faz “subiu no carro de som” e não desceu mais.

Dez anos depois, foi um dos poucos brasileiros a ter um dos maiores reconhecimentos no jornalismo: foi finalista do prêmio Pulltzer, pela série de reportagens The Amazon, Undone (A Amazônia, desfeita), pelo The Washington Post. E ao contrário do que produziu em 2013, hoje tenta cada vez menos seguir a temporalidade das redes sociais.

Você acompanhou o que foi publicado em junho deste ano pela imprensa? O que achou?

Me senti triste. Como a gente consegue deixar de lado uma parada que todo mundo tem certeza e afirma que foi tão importante, e sendo tão importante, ninguém debate profundamente? Não teve um especial de profundidade sobre essa porra, cara. E eu acho que isso é um sintoma mesmo da crise que a gente continua vivendo na imprensa, da crise informacional. Eu sinto que a gente aprofunda o buraco de junho nos dez anos de junho.

Diante do que costuma ser falado, quais te parecem os maiores erros?

O maior erro é o distanciamento da esquerda institucional das ruas. Aí está a chave para entender o que aconteceu nos anos vindouros, naquele momento que a gente tinha um governo de esquerda eleito no nível federal — e municipal em São Paulo — e esses dois governos sem capacidade de entender que aquilo era uma grande oportunidade. Ali é o racha e desencadeia tudo.

Um grande setor da esquerda prefere não falar, talvez por saber que errou, talvez achar que a memória daquilo não traz nada útil. É também um sintoma de um país em que a memória é muito pouco valorizada. No Brasil, os movimentos que lembram a ditadura são muito poucos, e são muito alheios à vida da maioria das pessoas. Quem vai pra rua falar de ditadura ou o jornalismo que faz isso não conseguem dialogar com a maioria das pessoas.

No meu contato com os Black Blocs, principalmente com a galera que estava nas ruas e começou as Ocupas depois de junho, tinha uma memória muito forte da ditadura. Essa galera falava de ditadura, uma memória do medo e da resistência. Os autonomistas tinham essa consciência também porque é uma galera que lê mais, que mantém um contato mais próximo com a história.

E essa valorização da história também passa por um reconhecimento do que aconteceu pós-ditadura e, portanto, compreender melhor o PT?

Acho que o Psol está num processo legal que passa por reconhecer a importância do PT. E isso não era feito naquele momento, foi uma negação por muito tempo. Teve um distanciamento do PT, como estratégia de se viabilizar como uma coisa nova. Isso mudou completamente, vejo como algo muito positivo. Eu sou filho de petistas que foram militantes muito ativos e isso é parte de reconhecer a luta de quem veio antes. Quando o Psol se afasta disso, fica difícil demais construir algo sólido negando completamente o que veio antes. O Boulos em São Paulo é muito potente e simbólico.

Pelo crescimento de novos movimentos sociais desde 2013?

Isso. Houve uma participação muito pouco falada do MTST em junho. O MPL não tinha a experiência de rua que o MTST tinha: técnica mesmo, de fechamento de rua, pneu queimado, trancamento.

Outra coisa pouco falada e que fui descobrindo com a minha pesquisa atual é que a juventude Guarani Mbyá, que tá muito ativa e militante hoje em dia, se iniciou politicamente também em Junho de 2013. Os movimentos de rua influenciaram eles a irem pra rua brigar por demarcação. Foi quando fecharam a Rodovia dos Bandeirantes pela primeira vez e isso formou toda uma geração de indígenas. A sensação que eles tinham antes daquele ano é que estavam perdendo a cultura, a língua. Hoje eles entendem que a cultura está mais forte do que nunca.

As formas de comunicação em rede de atos que explodiram em 2013, tanto de chamamento quanto de distribuição de imagens, foram rapidamente adquiridas por eles, certo?

Com certeza. Eu acho que aquilo criou um novo marco do ativismo, e enquanto alguém que ficou na Mídia Ninja por dez anos, passei muitos dos meus anos pós-2013 formando equipes de comunicação. Do MST, do MTST, do movimento Socioambiental, do Levante, da APIB (Associação dos Povos Indígenas do Brasil), da UJS.

A gente trabalhou pra caralho pra distribuir aquele conhecimento para um amplo leque de movimentos de esquerda que hoje tem ocupado lugares cada vez mais importantes, o Boulos e a Sônia talvez os dois maiores exemplos. A Mídia Ninja teve um papel importante de distribuir aquele conhecimento que ela acumulou naquele período curto, mas intenso.

Assim como aquela experiência e possibilidade de existência política a partir da comunicação que a Mídia Ninja inicia foi inspiração pra direita também. Foi o que o MBL [Movimento Brasil Livre] fez, se apropriando muito da linguagem e da ferramenta, assim como a imprensa corporativa.

Por que a direita conseguiu usar tão bem essas linguagens?

O principal é que esse pessoal de direita que cresceu pós-junho estava numa onda muito favorável. O ferramental é muito simples, o acesso é muito democrático, não tinha dificuldade técnica. Simultaneamente, vários outros movimentos passaram a usufruir desse ferramental, mas a esquerda não tinha esse momentum, e já estávamos no 3º governo da coalizão petista. Os desgastes eram óbvios e a força da imprensa e de uma opinião pública, bastante desfavoráveis.

Eu não sei quanto a gente vai lembrar dessa direita nesse período, como documentarista, hoje eu tenho o exercício de pensar: “o que vai ser lembrado daqui 50 anos?”. E o que vai sobrar de memória do que a gente viveu nesses dez anos de 2013 a 2023? O MBL parece estar longe desse lugar. Junho, ascensão da extrema-direita e Bolsonaro eleito, depois a pandemia e o retorno de Lula. Até mesmo a Mídia Ninja, como será lembrada? Quando eu estava lá dentro, eu tinha a impressão que era a coisa mais importante do mundo, hoje eu consigo entender que os processos são mais complexos e que todos fazemos parte de uma História maior, a ser definida pela memória que fica e é preservada.

Do mês em si, junho de 2013, o que te parece o registro mais significativo?

É aquele dia do [apresentador de TV] Datena, em que a Baderna ganha do protesto ordeiro na enquete. Eu sempre mostro aquela cena em palestras e conversas com estudantes, é o momento da clivagem, que a sociedade está mudando as suas referências. Aquele vídeo mostra isso explicitamente, é muito visceral e divertido. Das minhas memórias pessoais, acho que o primeiro ato do MPL em São Paulo, a primeira noite, que fecha Nove de Julho, quem estava lá sentiu que foi algo diferente. Eu estava cobrindo manifestação há dois anos em São Paulo e aquele lá, dava pra saber, estava diferente. Como se as pessoas tivessem ido com outra intenção, outra energia. Uma estratégia muito fina, de descer no lugar certo, de ter uma porrada de pneu pronta, foi uma afronta muito violenta à ideia de ordem que São Paulo e a Polícia Militar do estado representam.

O dia do Datena foi 13/6, do quarto ato, que produziu violência mais visível contra jornalistas da imprensa — e marcou também a virada dos editoriais. O que aconteceu ali, a repressão passou do ponto?

Não acho que esse dia foi o mais reprimido, mas é que o ato já estava grande demais pra polícia fazer aquilo que ela sempre fazia. O que mudou é que naquele dia já tinha muita gente que nunca tinha ido para um ato, que nunca tinha visto a Polícia Militar, com a classe média que era uma grande maioria na rua. A polícia fez a mesma coisa, mas a escala do ato era outra, você tinha muito formador de opinião, artista, muita gente “não iniciada”. Pra muita gente foi a descoberta do que é e significa o Estado brasileiro.

Uma coisa que definitivamente mudou nesses 10 anos, foi a possibilidade de registrar isso…

Definitivamente. A documentação audiovisual, principalmente de celular, foi central, porque ela vem em escala. Tem a ver com a ideia do [Ignacio] Ramonet das “massas de mídia”, quando você tira a concentração da capacidade produtiva e distributiva da imprensa e passa para as massas. A consciência sobre a polícia, para uma parte da classe média que estava na rua, abriu o olho pra muita gente sobre o que ela significava, para elucidar o que ela significa na história do Brasil. Fez a classe média se conectar minimamente com um pouco da realidade da periferia. Acho que junho foi isso também: ampliação de muitos níveis de consciência sobre muitos temas.

Quando você sentiu que o clima no Brasil tinha virado?

A primeira vez que eu senti foi cobrindo a campanha de 2014. Teve um dia que eu fui ver um ato do segundo turno do Aécio. A galera já era exatamente essa que foi depois tirar a Dilma e eleger o Bolsonaro. Era o bolsonarismo ali, ainda com o Aécio como referência central. Com o discurso que se perdessem, iam derrubar. Muita bandeira do Brasil. Cheguei a esconder a minha identidade, porque senti medo de ser identificado como de esquerda e já era um ambiente bastante violento. Era muita gente e eu saí com a forte sensação “essa galera não vai aceitar o resultado”. A energia era bem mais forte do que eu vejo hoje no bolsonarismo depois de tudo que aconteceu, era o início desse movimento.

Depois de tantos anos de Fora do Eixo, que balanço você faz da experiência?

Eu tenho me questionado sobre muitas verdades que eu vivi nos dez anos dentro do Fora do Eixo, o que eu acreditava… Hoje eu consigo relativizar as metodologias e ponderar também o lado negativo de como tudo isso foi feito e o efeito colateral que teve para quem participou do processo. Obviamente que a interferência feita pela Fora do Eixo e pela Mídia Ninja na história fortaleceu lutas imprescindíveis de nossos tempos, gerando protagonismo e visibilidade para movimentos e personagens fundamentais, mas isso é o que muita gente já sabe. Acho que a percepção de quem participou ativamente lá dentro ainda vai ser mais discutida, e poderemos ter um equilíbrio melhor entre o resultado público alcançado e processo interno.

A Mídia Ninja escolheu um caminho de deixar o jornalismo em último plano e fazer política, de forma mais crua. Não que tenha um teor negativo, mas é uma escolha. E depois de um tempo, eu entendi que eu não queria fazer isso. Me frustrou muito tentar fazer jornalismo nesse ambiente. Eu tinha acesso privilegiado a certos espaços mas em termos de comunicação não podia falar/publicar o que eu pensava, não poder fazer uma crítica pública, porque você está fazendo campanha, marketing, não é mais jornalismo. A Mídia Ninja traçou esse caminho e acho que isso a diminuiu. Virou um instrumento muito útil das organizações de esquerda, mas enquanto um fenômeno da sociedade civil para guiar o debate público perdeu muita força, considerando o que havia angariado em 2013.

Pela Mídia Ninja passou uma nova geração muito potente que hoje eu vejo em vários lugares, nos jornais, nos veículos independentes, fazendo documentários, fazendo jornalismo na alta. A Mídia Ninja, enquanto instituição, por outro lado, não faz mais isso. Eu acho que a gente abdicou desse lugar de produzir conteúdo original e cedeu espaço para onda de influenciadores e dos perfis individuais. Você vira o hub, o republicador, e deixa de fazer o mais importante: ter autonomia para colocar uma leitura crítica em cima da informação e da reportagem inédita.

Uma imagem que eu lembro muito forte é em abril de 2018, naqueles dias no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC com um dos fundadores da Ninja, o Bruno Torturra, nas ruas entrevistando a galera, enquanto a Mídia Ninja mesmo, em cima do carro de som.

Subir no carro de som é uma boa analogia para a Mídia Ninja, o que aconteceu nesse processo. Talvez ela tenha subido no carro de som e não tenha descido mais. Como algo surgido totalmente de fora, talvez ocupar esse espaço tenha sido uma forma de se “conformar” em um lugar poderoso, de fácil manutenção, de fácil acesso, mas que também tira toda sua fluidez e autonomia.

E o fotojornalismo? Os profissionais que já estavam naquele momento tentando inovar dentro das redações.

Os fotojornalistas já estavam num processo de precarização muito forte em 2012/2013, que continua até hoje. Naquela época, muito pouca gente era contratada, e já era muito freela. Dali muita gente se organizou, muitos coletivos foram criados. Na Mídia Ninja, a gente dizia muito que em vez de ficar esperando alguém te contratar, você pode juntar seus colegas e começar a fazer o trabalho que acredita, hoje. Não acho que era uma questão de inovação, talvez fosse mais sobrevivência. A Mídia Ninja e outras redes de comunicação independente possibilitaram uma geração inteira do fotojornalismo brasileiro florescer e aos poucos se viabilizar com as precárias estruturas que a atividade profissional proporciona em nosso país, mas não fomos capazes de gerar uma possibilidade de renda ou de sustentação para esses profissionais. Seus ganhos dependem ainda majoritariamente do que oferece a imprensa corporativa, as marcas e a publicidade, ou os veículos internacionais, favorecidos pelo câmbio (em que os pagamentos, também insuficientes, se multiplicam por 5).

Como você enxerga hoje o excesso de imagens que atravessam o debate público, muito além da política?

Acho que a gente tá vivendo um pesadelo. Um pesadelo que eu espero que a gente acorde. Essa ditadura da tela é uma doença induzida, porque é muito lucrativa para big techs e de enorme prejuízo para saúde mental de milhões. É uma desgraça que as imagens tenham que ser mediadas quase exclusivamente pelas telas nesse momento. Precisamos construir outras possibilidades para elas. Falam muito dos jovens, mas nós adultos, de 30, 40, estamos completamente tomados por um negócio que a gente não sabe lutar contra. Existe uma luta política incipiente contra a tela e esse vício que nos acomete, a gente ainda tá na fase de nomear o que está nos dominando, é uma luta muito preliminar.

A sensação que eu tenho é que o que se entende hoje como algoritmo, como código, que rege a nossa percepção da realidade permitiu figuras como Trump e Bolsonaro terem a capacidade de fala e desenvoltura que tiveram. A gente ainda está para ver as consequências dessa dominação absoluta que o capitalismo está tendo nas nossas mentes e no nosso cotidiano, no nível de você depender de um aplicativo para encontrar alguém para sair, para se apaixonar.

Você, que esteve na linha de frente de uma produção e distribuição de imagens velozes que mudou a política, hoje me parece que tenta cada vez mais trabalhar com formas que buscam esse caminho inverso.

Sim, é bem consciente. Depois de dez anos no Mídia Ninja trabalhando em tempo real. Eu publicava foto no Twitter ainda com fumaça no meu olho, lacrimejando, para milhares, às vezes milhões de pessoas. Não passava por uma agência, por um editor, nada podia ser mais rápido daquilo.

Eu cansei muito do que a gente chama no jornalismo de “tempo real”. A capacidade de disputar opinião é grande, mas volta para aquela história: “o que vai sobrar daqui 50 anos?”. Porque a gente tá produzindo pra caralho não porque é necessário, porque estamos produzindo memória, mas estamos produzindo porque os algoritmos exigem isso da gente. Porque se acredita hoje que a forma de você ser relevante é produzindo muito. Então, a qualidade dessa produção não interessa em absoluto pro algoritmo, nem para muitas organizações. O que interessa é que tem uma produção cadenciada para alimentar essa estrutura.

Hoje eu acredito que é desacelerar, é olhando pro passado que se revela muito mais sobre o futuro. A ideia que as pessoas têm em geral dos indígenas é de uma coisa que está arraigada no passado, né? Você escuta, vê um modo de vida que ainda coexiste com essa desgraça que o pensamento branco e colonial faz, e que segue mostrando outras formas de relação com a terra e com outros seres humanos e não humanos. Talvez seja nossa única chance de ter um futuro.

O [Davi] Kopenawa fala que o branco é aquele que se define pelas coisas que tem. E a gente hoje não consegue mais ver a nossa vida sem ter o celular, as redes, essa mediação. Tenho a sensação de que a gente precisa começar de novo, “resetar”, a mediação da informação.

É o clichê verdadeiro: de que o capitalismo incorpora tudo. No caso, o que veio de novo daquelas ferramentas que foram muito bem usadas por ativistas no começo da era das redes sociais.

Isso. Sinto que a Mídia Ninja e outros processos de ativismo digital foram fagocitados por isso. Assim como o Napster, assim como outras iniciativas desses momentos em que existem brechas para algo realmente libertário e democrático na internet. Isso parece muito distante nesse momento com as redes sociais.