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Entrevista com Lucio Gregori

10 anos de junho de 2013

Mariana Guardani

Secretário de Transportes durante o mandado na prefeitura de São Paulo de Luiza Erundina, Lucio Gregori é o grande mentor da Tarifa Zero no Brasil. O projeto não estava na campanha de Erundina: foi proposto por ele, enquanto pensava em alguma solução estrutural para os problemas viários de São Paulo, episódio narrado e relembrado nesta entrevista.

Após derrota do projeto devido à feroz oposição na Câmara dos Vereadores de São Paulo, decidiu sair da política, mas “acompanhou Erundina” durante todo o resto da vida. Mais de quinze anos depois da ideia proposta, aposentado, foi procurado pelo Movimento Passe Livre — que naquele momento exigia o direito apenas pra estudantes. Gregori os convenceu que o adequado seria a gratuidade universal. O resto é história.

Gregori recebeu a Revista Rosa em sua casa, em Jundiaí. Na mesa central da sala de estar, uma cópia de A razão dos centavos, um dos principais lançamentos editoriais sobre junho de 2013. Ao fim da conversa, ao ser questionado se “faltou alguma pergunta”, respondeu: “música”, e teve a gentileza de compartilhar um momento ao piano com os entrevistadores.


Pode nos falar sobre sua vida e formação?

Eu nasci na cidade de São Paulo em 1936. Sou filho caçula, me formei em engenharia na Politécnica de São Paulo. Fiz muita política estudantil nos tempos de UNE (União Nacional dos Estudantes) e UEE (União Estadual dos Estudantes). Fazia parte inicialmente do grupo da Juventude Universitária Católica, a JUC. Depois eu saí e fiquei mais ligado aos grupos de esquerda que existiam, desde o Partidão à esquerda mais solta, entre 1955 e 1960.

Eu me formei em engenharia e como eu tinha feito um curso muito tumultuado, eu resolvi dar aula para ver se eu era realmente competente. Dei aula na própria Politécnica, de Mecânica dos Fluidos, me pós-graduei, parei de dar aula e fui fazer várias coisas. Construí uma casa, cheguei à conclusão que eu não queria ser engenheiro civil para o resto da vida, e fui fazer várias coisas que culminaram em ser secretário de Transportes da Erundina.

Como a política permeou esse período da sua vida entre o golpe de 1964 e a prefeitura?

Eu sempre fiz uma política não-partidária e não-sistemática. Fazia política de tudo quanto era jeito. Em 1964, passei a noite acordado ouvindo o golpe, cheguei à conclusão de que realmente “o Brasil é isso aí”. Depois, cheguei a conclusões mais profundas de que o Brasil sempre foi essa esculhambação — então fui fazer atividades “técnicas”, que na verdade não eram técnicas coisa nenhuma, mas eu posava de técnico.

Você nunca passou por nenhum tipo de perseguição?

Pelo contrário, acabei sendo diretor da Emurb (Empresa Municipal de Urbanização), e da Emplasa (Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano), no período da ditadura. E era muito curioso, porque eu tinha minhas posições de esquerda, então as pessoas não me identificavam muito bem e como técnico eu fazia as coisas mais de esquerda possível.

Um belo dia estou em casa e um cidadão chamado Roberto Cerqueira César, um arquiteto muito competente, que até então eu não conhecia, nunca tinha ouvido falar dele, me chamou para diretor de planejamento da Emurb. Ele vira presidente da Emurb — que depois foi fechada pelo senhor João Dória. Lá fizemos um monte de coisas. Fizemos as primeiras leis de desapropriação, para fazer os prédios perto de estações de metrô, coisas que depois o setor privado fez, porque a Câmara Municipal não aprovou os projetos dele.

Em 1975, ele diz: “Olha, o Paulo Egydio Martins [governador biônico de SP entre 75–79] pediu para fazer um grupo para estudar a grande São Paulo, fazer um diagnóstico. Como eu sei que você lidou com isso, eu queria que você coordenasse esse grupo para mim”. Fizemos o diagnóstico de São Paulo.

Ele virou secretário e me chamou para ser diretor técnico da Emplasa, e lá mais uma vez fiz coisas, fiz a primeira lei metropolitana de proteção de mananciais, lei que existe até hoje. Até gente que tinha sido presa pela ditadura trabalhou comigo. Fiz uma gestão extremamente à esquerda, botei um monte de gente de esquerda lá. O Cerqueira César era um cara extremamente aberto, embora um liberal, mas não liberal stricto sensu. Era um homem muito sério, se era tecnicamente correto, ele apoiava.

Também tive vários refugiados na minha casa, que eu escondi.

No momento da fundação do PT, o sr. estava ali em torno do grupo do Sion?

Acho que estava, já nem me lembro mais. Mas a minha filiação ao PT sempre foi particularmente ligada a Erundina. Eu conheci a Erundina por acaso, eu era do PT, mas meio marginal, ficava dando palpite aqui e acolá. Adriano Diogo ficou muito meu amigo e vivia me telefonando.

Tem a famosa história que você não sabia que seria indicado…

Isso. Quando a Erundina foi eleita prefeita, um belo dia eu acordo e minha mulher me diz: “Então você vira secretário da Erundina e não me conta nada”. Eu falei: “Como?”. Ela responde: “Tá aqui no jornal”.

Vi no jornal e fiquei muito irritado, porque eu não sabia de nada. Liguei para uns amigos. Aí falaram: “vai conversar com ela”. Fui conversar com ela, ela me convenceu numa boa, eu virei secretário de serviços e obras. Acabou a reunião, ela apresentou o secretariado todo. O PT aceitou numa boa porque o Zé Dirceu me conhecia muito bem, o Adriano Diogo que eu mencionei, todo mundo me conhecia. Eu participava de reuniões numa subsede do PT, o pessoal me conhecia.

Mas eu nunca fui um cara de filiação partidária, de disciplina, organização de disputa interna, nunca.

Como foi recebido a Tarifa Zero quando você estava no governo?

Quando apresentei o projeto da Tarifa Zero no governo da Erundina foi numa reunião com o Secretariado, nem tinha esse nome tarifa ainda, era ônibus gratuito. Alguns perguntaram algumas coisas e nessa reunião ficou claro para mim que apenas dois secretários realmente falaram “é isso aí”: Paul Singer e Marilena Chauí — realmente apoiaram, foram nas reuniões.

Depois da experiência na prefeitura não se engajou com nenhuma candidatura?

Eu seguia a Erundina, grosso modo, se você quiser saber minha posição política, é a da Erundina, né? Voto nela, se ela tiver no Psol, onde tiver.

Acho que eu tenho uma opinião muito sucinta sobre o Brasil — no limite sobre a esquerda do Brasil — que comete um equívoco, no meu modo de ver grave, mas que tem razão de ser. A razão de ser é que eles gostam de ter poder na mão. É que eles disputam o Poder Executivo, e eu fiz um levantamento detalhado: quem manda no Brasil é o Poder Legislativo. Não é à toa que a direita, que não é burra, basicamente disputa e domina os parlamentos. Para eles, tanto faz se é Bolsonaro ou Lula. Eles continuam mandando e a esquerda continua cometendo esse equívoco.

Esses dias mandei um Whatsapp pro [Guilherme] Boulos dizendo: “você tem que fazer campanha e eleger um monte de vereador. Se não você não vai fazer muita coisa”. Ele até respondeu agradecendo, mas não sei se vai fazer ou não.

E é porque a esquerda “quer poder”, entre aspas mesmo, e tem toda aquela história de ter empreguinho, vantagem aqui e já conheço essa história. A meu ver, a esquerda não é muito séria nesse sentido.

Como a experiência secretário mudou a sua vida profissional?

Mudou completamente, no sentido de colar à minha pessoa uma identidade que eu tinha, mas não era pública. Ficou público que eu era um cara “ligado à esquerda”, ou com pensamentos radicais de modificação da organização social. Mas eu me fechei, não quis mais saber de cargo público coisa nenhuma. E vim morar em Jundiaí. Depois de andar aquela cidade inteira por quatro anos, cheguei à conclusão que aquilo não tem solução no sistema que aí está. E hoje penso assim ainda mais.

Por que você acha que não tem solução?

Porque o sistema econômico não tem interesse nisso. Aqui em Jundiaí, ao menos me atinge menos, eu consigo ter um grau de qualidade, esse terreno que eu moro, hoje mais ainda, aposentado. Aqui eu consigo um padrão e uma qualidade de vida que em São Paulo eu não consigo.

Em julho deste ano, o diretório nacional do PT aprovou como bandeira o transporte público gratuito. Como você avalia a forma e o momento em que isso aparece?

Isso é um retrato do PT, né? Quer dizer, 33 anos depois que uma prefeita do partido faz o projeto dessa natureza, com a repercussão nacional que tem até hoje, o partido incorpora a bandeira 33 anos depois. Isso é porque o Lula nunca quis botar azeitona na empada da Tarifa Zero. E eu não tenho gravado, infelizmente, mas eu tenho bem registrado a opinião do Lula sobre a Tarifa Zero no governo.

Ele disse “o trabalhador não precisa de ônibus de graça, o trabalhador precisa ganhar um bom salário para pagar o transporte de qualidade”. Eu pensei: “ou ele não entendeu nada, ou, se ele entendeu, não entende nada de transporte público”. E passado todo esse tempo, o Lula jamais falou nos debates, discursos, campanhas, governo etc. Nada demais para mim. Para mim, é isso que é o PT.

A Tarifa Zero conseguiu ser implementada em alguns municípios brasileiros, um famoso, sob prefeitura petista foi o de Maricá no Rio de Janeiro…

Maricá, eu acho ótimo, faz bastante propaganda, é dos municípios do Brasil que mais se organiza falando de Tarifa Zero, mas é um caso particular que eles têm dinheiro porque eles têm o fundo de petróleo.

Eu conheci municípios outros que não são do PT, que tem muito menos repercussão nacional porque são menores, e que tem prefeitos com posições e entendimento da Tarifa Zero absolutamente surpreendentes.

São mais de setenta municípios hoje no Brasil. Tem algum outro modelo que te parece educativo de como implementar bem?

Acho que Vargem Paulista. Porque acabou com a ideia de vale-transporte que não funciona bem e fixaram um valor único por trabalhador. Independente de renda. Tem cidade que diminuiu o quanto gastava com aluguel de transportes privados.

Um pouco antes você mencionou o Boulos, que tem se mostrado um candidato competitivo para a prefeitura de São Paulo. Ele te lembra a Erundina de 1989 de algum modo?

Olha, eu não conheço tanto o Boulos, mas ele me parece um sujeito que tem uma característica que eu acho extremamente interessante: um homem que tem a história dele, a trajetória dele de filho de professor universitário, é universitário, e de repente ele pega tudo isso chuta pro ar e vai ser um uma liderança popular. Ele deu uma demonstração muito forte de que ele tem compromisso com aquilo que diz.

O que ele vai ser quando ele assumir o comando, se ele assumir e espero que sim, isso é uma outra coisa. Porque aí existe todo uma superestrutura na sociedade brasileira que pode confundir mesmo uma pessoa como Boulos, se não tiver boas assessorias, bom entendimento, como a Erundina teve. Ele pode acreditar que está fazendo muita coisa, quando na verdade não tá. Eu tenho profunda admiração e respeito pelo Boulos, mas o tempo vai dizer como vai ser.

Sobre o MPL (Movimento Passe Livre), pode relembrar como eles chegaram até você?

O primeiro contato que eu tive com o MPL foi bastante formal. Um rapaz me telefonou aqui, se apresentou, queria fazer uma reunião num sábado em São Paulo, um debate. Fui lá e falei para eles que o que eles propunham era uma burrada. Porque quando você faz gratuidade para estudante no sistema tarifário, você aumenta um pouquinho a tarifa para bancar a gratuidade.

Ou seja, o resultado é aumentar a tarifa dos outros. Aí falei da Tarifa Zero. Quando terminei a reunião, eles estavam de um lado atingidos, e de outro, curiosíssimos. Me chamaram pra um evento no Nordeste, expliquei o mesmo pra jovens de outros Estados e aí eles adotaram. Eu considero uma sorte desgraçada, porque nisso já tinha mais de 70 anos e convivi com a moçada de igual pra igual, isso faz muito bem pra saúde. O MPL é uma coisa que chegou a um nível de fraternidade mesmo.

Antes de 2013 você já entendia que eles teriam importância?

Antes de 2013, dava para perceber uma ascensão. Sempre achei que era uma coisa muito consistente, com muito poder de crescimento, por ser jovem havia uma pureza ali. Curiosamente, depois de 2013, o MPL ficou até mais fraco, enquanto organização.

Quais lições de junho de 2013 te parecem mais significativas?

Aquilo foi, para mim, a comprovação de como aquilo que se chama “esquerda”, no Brasil, não é de esquerda. Eu dou um exemplo clássico disso: o Haddad se recusou a conversar comigo. A Emília Maricato, que é muito amiga minha, assim que começou o movimento, me encontrou e ligou pro Haddad. Falou: “Você precisa conversar com o Lucio Gregori”. Ele resistiu e não conversou. E, para ficar em São Paulo, depois vendo a reação da esquerda e do grupo em torno do Alckmin, no dia que eles revogam, eles dizem que aquilo até poderia criar algum problema financeiro, que poderia eventualmente faltar dinheiro para educação, saúde…

E eu volto para dezembro de 2012: Dilma Rousseff pediu para que prefeitos e governadores não fizessem reajuste tarifário em janeiro/fevereiro de 2013, como é habitual, porque a inflação era crescente e eles aceitaram e não fizeram.

Em 2014, ano de eleição da presidência da República, também não fizeram. E, em 2013, os 20 centavos poderiam criar problemas financeiros. Isso tem nome: falta de vergonha na cara. Então, eu perdi o respeito. Não dá, não são sérios.

Sobre a tese de que o legado 2013 teria sido a ascensão dos movimentos golpistas, você tem alguma avaliação própria?

Isso vem de uma incapacidade da esquerda de fazer autoanálise e autocrítica. Se não fosse a incompetência do PT no governo, sobretudo na prefeitura de São Paulo, para lidar com o que estava acontecendo. Para ficar só no caso de São Paulo, o que o Alckmin e o Haddad fizeram em 2013 foi incompetência política, despreparo, e revelador do quanto não eram nem social-democracia e nem esquerda, respectivamente.

O livro do Roberto Andrés, na sua mesa, demonstra o quanto a Tarifa Zero cresceu depois, mesmo sem que as grandes figuras do momento tenham incorporado a pauta.

Muito, era marginal no debate até que mudou de escala. Ficou no imaginário como se a Tarifa Zero tivesse o poder de fazer aquele estrago todo. No fundo, se trata de uma disputa que, ao ser malconduzida pelas forças políticas, deu uma repercussão que não tinha, até mesmo por conta dos movimentos de direita.

Duas concepções resultaram de 2013. Uma, que é a do Roberto e tantos outros e outras, que mostra como foi uma coisa extremamente complexa, mas não foi um movimento que deu margem à direita por equívocos, não. Deu margem à direita por causa de um equívoco de interpretação por parte da esquerda. A outra é que 2013 mostrou o quanto nós não temos uma política organizada e estruturada que possamos chamar de esquerda.

Para ter a ideia da Tarifa Zero, você observou alguma experiência internacional?

Nada. Eu era originalmente secretário municipal de Serviços e Obras, virei secretário de Transportes pra quebrar um galho. A sede ficava na Marginal Pinheiros. Eu olhava pela janela, 7 horas da noite, um monte de carro na rua. Eu pensava: “O que um secretário de transportes pode fazer aqui? Coisa nenhuma…” E daí, de repente, nessa de buscar uma solução, eu me lembrei do lixo: passa o veículo na porta da sua casa e você não paga na hora, você paga proporcional ao tamanho da sua propriedade. Então pensei: por que que não se adota uma coisa semelhante no transporte coletivo?

Ao mesmo tempo simplifica pra burro o sistema, essa burocracia de cobrar, conferir cada passageiro de cada trajeto e quanto arrecadou. Ao mesmo tempo, abre a possibilidade de utilização para o sujeito que não tem dinheiro. O problema é que o sistema que a gente vive é ilógico, por si. E a Tarifa Zero é uma espécie de murro, porque torna isso escandalosamente visível. Se eu te mostrar uma cena de uma cidade qualquer do planeta Terra, e te perguntar onde é, você não vai conseguir dizer. Porque é igual. É um monte de avenida, viaduto, túnel, isso serve pra China, pro Brasil, pros Estados Unidos, pra Austrália. Por quê? Porque o automóvel virou um enorme business, tudo, o aço, tinta, plástico. Então, no Brasil que ainda não tem nem um sistema ferroviário, é escandaloso. O que se gasta em rodovias no país é uma loucura. É tão “irracional”, que só se explica por conta do sistema socioeconômico.

O sistema capitalista é contraditório em si mesmo. Ele busca uma coisa que é incompatível com o equilíbrio da natureza, a vida social, a igualdade, porque capitalismo é fundamentalmente acumulação. Pra fazer isso, cada caso ele vai de um jeito. Portanto, nesse sistema, não tem como.

Na hipótese de um governo de esquerda realmente comprometido com Tarifa Zero, qual te parece a melhor forma de implementar a ideia?

Para mim, é sendo feita numa cidade do porte de São Paulo. Porque tem tamanho efeito, repercussão, impacto, que fica difícil para o próprio sistema capitalista atrasado ficar combatendo. Precisa ter uma Tarifa Zero em uma grande escala.

A PEC 25 da Erundina diz com muita clareza: o transporte é um direito social, mas se você entrar no ônibus e não tiver dinheiro para pagar, você fica sujeito a uma pena de prisão de noventa dias. É direito social ou é direito à prisão? Então, ela regulamenta isso. Outra coisa, ela cria a ConUSV, a Contribuição pelo Uso do Sistema Viário. Se houvesse algo como a ConUSV, você cria uma condição de realmente o transporte coletivo virar um problemão para a disputa de utilização de sistema viário e transporte de pessoas numa escala que hoje não tem. A PEC da Erundina, reitera o que tá na Constituição de que o transporte não é só um problema municipal, mas Estadual e Federal.

Eu fiz uma hipótese em São Paulo: carro pequeno e moto paga R$1 por dia, em até 10 prestações por ano. O carro grandão e potente paga R$ 3,50, o do meio paga R$2,50. Caminhão paga pouquinho para não encarecer o frete. Com a frota de veículos de São Paulo, no ano de 2019, deu 6,5 bilhões de reais. Exatamente o preço dos sistemas de transporte da cidade daquele ano. Ou seja: essa taxa cria condições para fazer transporte coletivo zero e ao mesmo tempo penaliza o carro.

É diferente de outros países: aqui não é questão de tirar carro da rua. É que quase 50% da população passa a usar a cidade, que não usa. Porque não tem dinheiro para pagar transporte coletivo nenhum, muito menos carro. A Tarifa Zero não é só andar de graça, ela vai mostrar uma quantidade enorme de problemas sociais que são característicos do sistema econômico do Brasil. Por isso que você consegue em Caeté, que tem 30 mil habitantes, mas não pode ter em São Paulo?

O transporte ter sido gratuito na eleição de 2022, pode dar alguma oportunidade de mudar a situação da pauta?

Acho que sim, sobretudo por conta de ter sido gratuito transporte no dia da eleição. Eu acho que isso foi um fato que marcou muito fortemente. Se isso ajudou o Lula, importa menos, porque poderia ter ajudado X ou Y. Mas demonstrou como a tarifa pode impedir inclusive o voto.

Você se considera parte de alguma filiação mais teórica?

Eu conheci bastante a teoria marxista, acho ela extremamente consistente. Grosso modo, sou um materialista histórico, no sentido amplo, mas nunca fui especialmente conectado com a União Soviética. Eu tinha as minhas simpatias e minhas antipatias e hoje eu diria que eu tenho uma admiração profunda por um lugar só do mundo que se chama Cuba. Eu estive lá, conheci de perto, acho uma coisa impressionante. Eu sou um socialista, isso com certeza. Comunista não sei. Mas socialista democrático, e pra valer. Eu tenho clareza que os meios de produção não podem ser propriedade privada, uma série de coisas assim. Então, me declaro um cara de esquerda radical.

Você falou algumas vezes sobre Guilherme Boulos aqui. Além dele, tem algum pitaco sobre o que considera bom pra o futuro da esquerda?

Além do Boulos, me ocorre agora principalmente os movimentos sociais jovens. Que trazem a questão ambiental, ativismo LGBT, tudo que sai um pouco desse esquema meio quadradinho que a esquerda tradicional teve e que demonstra que não levou muita coisa.

Alguma consideração sobre a sua contribuição?

Eu ficar conhecido como o mentor da Tarifa Zero ou coisa do tipo é a comprovação de que a vida tem uma dose de acaso, de absurdo e eu só posso agradecer pela sorte que tive. E diria, retomando sua pergunta de futuro, que tenho mais esperança nos indivíduos que nas instituições. Porque mesmo os sistemas econômicos ditos mais avançados têm um quê de burocracia, de organização que acaba levando as pessoas a certo modo de comportamento que tende à conservação. Acho que eu sou mais pelas pessoas, mas um individualismo stricto sensu, não esse individualismo safado do capitalismo.