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A reconstrução de um contrapúblico da oposição de esquerda (2013, 2023 e além)1

Mariana Guardani

Todos os eventos, presenciais ou virtuais, sobre os dez anos de Junho que eu participei no decorrer do intenso mês de junho de 2023 (seja como ouvinte, seja como palestrante) tinham duas características em comum, em termos de tentar: (1) resgatar e intensificar a circulação de uma memória alternativa sobre Junho de 2013 (alternativa com relação ao senso comum “ovo da serpente”, sobre o qual não vou perder tempo aqui3); e (2) reconstruir um contrapúblico que eu chamaria de oposição de esquerda.

Ideias não circulam em um vazio, mas sim em públicos, isto é, redes ou arenas criadas pela interação de pessoas, instituições e textos ou discursos; e quando essa rede entra em uma relação de choque, fricção, repulsa ou transgressão com as normas, valores e significados propalados por públicos maiores e dominantes, esses públicos menores e subordinados podem, portanto, ser chamados de “contrapúblicos”.4

E “oposição de esquerda” ao PT, obviamente.5 E trata-se hoje, como há dez anos atrás, de uma frente ampla, que reúne pessoas e instituições com inúmeras divergências, mas que se unem, de um modo ou de outro, pela atribuição de um significado positivo à revolta (que pode atender por diferentes nomes: levante, rebelião, insurreição, insurgência, etc.). A corrente majoritária do PT, por sua vez, tem repulsa e horror à revolta, por motivos que não importa aqui desenvolver, apenas constatar (o que pode ser sintetizado no termo “esquerda da ordem”); contudo, ressalvo que na organização de eventos e coletâneas nessa efeméride de 2013 existe uma vertente minoritária da esquerda do próprio PT que aceita debater, conviver e colaborar com anarquistas, autonomistas, socialistas e comunistas, uma vez que não atribui significado negativo à revolta.6

O evento que durou um dia inteiro (24 junho 2023) na Casa do Povo organizado por uma frente ampla da esquerda e extrema-esquerda (MPL-SP, Jacobin Brasil, Autonomia Literária e outras editoras e instituições) e foi bastante paradigmático desse contexto de públicos e ideias, além de seus nada desprezíveis dissensos, desafios e dilemas. A seguir, resumo de modo parcial alguns dos principais temas das mesas que ocorreram, relacionando com alguns dos argumentos que tenho buscado desenvolver em intervenções no debate público — ou seja, minha intenção aqui não é propriamente realizar mais um balanço sobre o passado histórico seja do acontecimento de Junho de 2013, seja dos seus desdobramentos posteriores, mas sim, partindo da descrição de um evento singular sobre os seus dez anos, vislumbrar alguns dos bloqueios e dos potenciais para o avanço das lutas sociais na passagem do presente para o futuro.

De saída, a primeira mesa era composta por (co)autores e (co)organizadores de livros sobre Junho de 2013 eleitos por esse contrapúblico da oposição de esquerda como relevantes.7 Minha leitura foi que as múltiplas divergências que existiam entre os debatedores ficaram apenas latentes (só sendo explicitadas um pouco mais na última mesa) e o ponto em comum entre todos os debatedores foi a defesa de que Junho de 2013 precisa necessariamente ser analisado e explicado pela chave da “luta de classes” (mesmo que a luta de classes tenha sido concebida de modos diversos em cada intervenção, dando ênfase seja na degradação neoliberal do mundo do trabalho seja na reprodução social fora dos locais de trabalho como o solo a partir do qual nascem os movimentos sociais populares), o que contrasta com as leituras que circulam mais intensamente na grande mídia (mais centradas no sistema político, como crise de representação) ou no público lulista (de modo geral centradas em uma espécie de determinação geopolítica em última instância, com os protestos sendo reduzidos a uma fabricação estrangeira que manipulou pessoas a fim de desestabilizar um regime político supostamente não-alinhado aos EUA).

Mesmo sem ser capaz de desenvolver mais profundamente aqui minha perspectiva, tenho defendido que, embora a luta de classes seja inescapável para a interpretação do ciclo de protestos dos anos 2010 no Brasil (afinal de contas, testemunhamos um verdadeiro ciclo de greves8 que durou, no mínimo, entre 2012 e 2016, mas que poderia ser identificado como tendo seus primeiros sinais em 2011 e seus últimos suspiros em 2017), existem pautas e lutas que não podem ser facilmente reduzidas a ela.

Em seu livro recém-publicado, Angela Alonso9 cria uma explicação que identifica os protestos de junho de 2013 como a culminação do acirramento de três “zonas de conflito”: [i] redistribuição (de renda, de recursos e de terras); [ii] moralidade (moral privada — “costumes” — e moral pública — “corrupção”); e [iii] violência legítima do Estado (seja pela via da segurança pública, seja pela via do confronto em torno da memória da ditadura militar). Se, por um lado, ela amplia o foco analítico, por outro, ela não parte de um quadro teórico que integre essas três zonas de conflito: por que essas e não outras? Tratou-se de procedimento indutivo a partir de um banco de dados de eventos de protesto?

O último livro de Nancy Fraser10 avança exatamente no sentido de integrar a multidimensionalidade de fenômenos, processos e lutas em um quadro teórico-crítico que revela uma raiz única, no capitalismo entendido como uma ordem social e não apenas uma esfera econômica. Ao apresentar uma sistematização original de múltiplas vertentes de marxismos heterodoxos (marxismo negro, marxismo feminista, ecomarxismo, etc.), ela demonstra que as crises de hegemonia dos regimes históricos de acumulação de capital não decorrem apenas da luta de classes, mas também do que ela chama de lutas de fronteira. Isto é, lutas sociais nas quais grupos sociais dominantes e subalternos entram em conflito para reinterpretar simbolicamente e redesenhar institucionalmente quatro fronteiras com o que ela chama de panos de fundo ou condições de possibilidade da acumulação do capital que são sistematicamente obscurecidos pelo marxismo ortodoxo: [i] exploração e expropriação; [ii] produção e reprodução; [iii] sociedade e natureza; e [iv] economia e política. Com esse quadro teórico complexo, Fraser mostra que os diferentes sistemas de opressão (classe, raça, etnia, gênero, sexualidade, “especismo”, etc.) tem bases estruturais no capitalismo, mas sem se comprometer com qualquer abordagem funcionalista já que ela coloca no centro de sua análise as disputas simbólicas: a construção, desconstrução e reconstrução de significados contestados (hegemônicos vs. contra-hegemônicos).

Vejamos, então, como os debates posteriores do evento na Casa do Povo acabaram tensionando o ponto de partida do consenso de que a luta de classes tem uma capacidade explicativa totalizante, o que acaba por expor as limitações dessa tese economicista e, assim exige uma ampliação do marxismo ortodoxo em direção aos marxismos heterodoxos, com a irrupção das lutas de fronteira, mesmo que essa não fosse a intenção original e explícita de seus debatedores.

A mesa seguinte cumpriu uma função de combater o apagamento histórico de desdobramentos à esquerda de Junho de 2013, destacando os efeitos positivos da revolta popular nos movimentos sindical, indígena, secundarista e nas torcidas organizadas. Além dessas lutas terem sido potencializadas de diferentes modos (sempre em uma chave da esquerda radical), ficou evidente como Junho de 2013 não foi composto por uma massa amorfa e acéfala de jovens despolitizados de classe média (termos que circulam impunemente entre acadêmicos e jornalistas), mas foi, do contrário, um processo de politização, de criação de consciência política em pessoas que não se sentiam representadas ou confiavam na política institucional tradicional (ou seja, no sistema político-partidário como um todo e no PT em particular) por motivos absolutamente justificáveis. Como Heudes Cassio, ex-secundarista, sintetizou muito bem, Junho de 2013 foi para ele um aprendizado de como a política pode ser feita fora dos gabinetes. Essa “política das ruas” aposta em ações diretas para lutar por direitos sociais (como nas revoltas de 2013 em torno do transporte público ou nas ocupações secundaristas de 2015–16 em torno da educação pública).11 A criação de uma causalidade simplista, linear e mecânica entre Junho, o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 depende da invisibilização dessa luta e de diversas outras que ocorreram nos anos posteriores a 2013.12

A terceira e a quarta mesas resgataram temas cruciais para a oposição de esquerda, em especial para a vertente composta por autônomos, autonomistas e anarquistas que hegemonizaram esse campo no início do ciclo de protestos que vivemos na década passada: (1) a Polícia Militar; e (2) a questão urbana.

Houve uma leve divergência entre debatedores se a atuação violenta e repressiva da PM em Junho de 2013 teve um caráter singular (com relação ao que havia sido estabelecido no pacto de 1988, separando violência e política) ou se foi tão somente uma reprodução de um padrão histórico que vem desde o século XIX.13 De qualquer modo, para mim ficou explícito que um dos elementos centrais para se interpretar a violência da PM é o processo de racialização, uma vez que o argumento de um dos debatedores foi que o contexto de surgimento da PM é a passagem do controle privado de pessoas negras escravizadas para o controle público da população negra liberta. Se essa hipótese está correta, além do imbricamento entre questão urbana, transporte público e luta de classes como raiz explicativa de Junho de 2013, precisaríamos levar em consideração a luta de fronteira entre exploração de classe e expropriação racializada, tal como concebida pela última Fraser.

A última debatedora dessa mesa, uma representante do Intervozes, trouxe a função que a grande mídia cumpre ao legitimar a violência policial com os programas policialescos; e ela também trouxe a hipótese, com a qual eu concordo, que a virada na cobertura da mídia entre 13 e 17 de junho de 2013 foi muito menos um plano político de manipular a direção dos protestos e muito mais uma reação corporativa diante do paradoxo de que os editoriais dos grandes jornais clamaram durante dias pela intensificação da repressão aos manifestantes, mas no exato momento em que a PM atende a esse pedido autoritário, seus próprios funcionários são atingidos com violência e balas de borracha (e a negação por eles exigida da liberdade de manifestação se torna negação da liberdade de imprensa para si próprios).

A quarta mesa debateu a questão urbana sujacente a Junho de 2013.14 Tanto (ex)ativistas do MPL quanto especialistas (do urbanismo ou dos transportes) sempre insistem que a fagulha da revolta ter ocorrido com base na questão do transporte público não é aleatória, mas tem uma razão de ser, destacando que as revoltas populares urbanas são parte da realidade histórica brasileira desde o final do século XIX. Tenho defendido15 que esse histórico de revoltas — a Revolta do Vintém em 1879–80, os quebra-quebras em São Paulo em 1947, a paralisação dos bondes no Rio de Janeiro em 1956, a Revolta das Barcas em Niterói em 1959, o quebra-quebra em Salvador em 1981 e muitos outros episódios — são, mais do que exemplos de espoliação urbana, indicativos da existência de uma economia moral16 em torno do transporte público. Aqui eu não poderia deixar de homenagear o saudoso Lúcio Kowarick, cientista social incontornável para o estudo crítico das lutas sociais urbanas. Em um exemplo de sua grandiosidade intelectual, ele apresentou em um evento de homenagem17 à sua obra clássica, uma verdadeira autocrítica de que quando ele cunhou inicialmente a noção de espoliação urbana — a soma de extorsões refletidas na precariedade ou inexistência de serviços de consumo coletivo socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores no espaço urbano — ele ainda não havia lido a obra de E. P. Thompson; por esse motivo, sua abordagem da questão urbana ainda era excessivamente estruturalista, determinista e dedutivista. Ao entrar em contato com a obra do historiador marxista britânico, Kowarick percebeu que não era possível deduzir as lutas sociais a partir de condições objetivas e macroestruturais. O que faltava em sua análise eram as mediações entre as estruturas e a ação coletiva: a produção de experiências, sentidos, significados e subjetividades.18 Como defendeu Lucas Monteiro, ex-militante do MPL-SP em uma live19, tal produção de experiências passou, em grande parte, por um intenso e microscópico trabalho de base do movimento nos 8 anos anteriores à eclosão da revolta de 2013, voltado em especial para secundaristas de escolas públicas e privadas espalhadas por toda a cidade de São Paulo.

Além da dimensão do passado histórico de revoltas populares urbanas (sejam elas na longa duração entre os finais do século XIX e do XX, sejam elas na média duração do pós-2003), também foi debatido no evento da Casa do Povo o futuro da luta por transporte público, diante da surpreendente adesão de prefeitos que majoritariamente não são de esquerda à proposta da tarifa zero; por que isto está acontecendo e o que isto significa para os movimentos sociais que lentamente construíram a legitimidade dessa pauta na esfera pública? Como explicar que, em 2016, o então prefeito Fernando Haddad (PT) citava o economista neoliberal Milton Friedman (“there is no free lunch”) para comparar a tarifa zero a uma viagem gratuita à Disney20, buscando deslegitimar os ativistas do MPL por meio da sua infantilização e, hoje, o atual prefeito da mesma cidade de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), aventa a possibilidade de propor a tarifa zero a fim de barrar a eleição de Guilherme Boulos (PSOL)21 em 2024? Para mim, esse deslocamento discursivo em apenas sete anos é um enorme indício de que as fronteiras entre os poderes políticos públicos e os poderes econômicos privados estão sendo atualmente redesenhadas para além do senso comum neoliberal, o qual entrou em crise.22 Destaco, a seguir, as falas de dois debatedores no evento da Casa do Povo.

Raquel Rolnik, urbanista, apresentou a interpretação de que a base estrutural do modo de funcionamento do sistema político23 é a questão urbana; é por meio da negação dos direitos sociais de cidadania para as classes populares, que se cria o clientelismo e o fisiologismo, pois os profissionais do sistema político em âmbito municipal negociam tanto com o grande capital do setor imobiliário quanto “entregas” para os excluídos, que lhe retribuem com votos. Ao final de sua fala, ela explicita que essa “economia política da corrupção” (meus termos) não foi enfrentada pela esquerda institucional e, portanto, nem se articulou uma reforma política com uma reforma urbana, nem foi capaz de disputar a construção simbólica desse fenômeno real com a direita (que simplificou a corrupção em uma chave antipetista e anti-esquerda).24

Já Paique Santarém, militante do MPL-DF, fez uma brilhante fala que articulou de modo sociologicamente complexo a estrutura (a economia política do transporte público urbano) e a agência (dos movimentos sociais), concluindo que a recente adesão da direita à Tarifa Zero não é um "sequestro da pauta", mas sim uma vitória histórica do movimento, uma vez que a ação direta das revoltas de 2013 elevou o custo político do aumento da tarifa. Não sei o quanto a sua leitura é tributária do operaísmo italiano (que articula o desenvolvimento das forças produtivas com a luta de classes), mas foi nesse quadro que eu situei a complexidade de sua intervenção.25 Um ponto que não foi debatido diretamente na mesa foi: o que significa então essa mudança estrutural pós-2013 para o futuro não apenas das pautas e táticas dos movimentos em torno do transporte público, mas também das revoltas populares urbanas no Brasil contemporâneo.

Essas reflexões sobre a economia política da corrupção e a economia política do transporte mostram, no meu entender, que a luta de classes novamente não esgota a explicação da gênese de Junho de 2013, muito embora ela seja, repito, fundamental. Novamente, a noção de luta de fronteira de Fraser — dessa vez voltada para a fronteira entre economia e política — pode ser mobilizada para avançarmos na compreensão multidimensional da gênese da revolta popular, inclusive de como se conectam o que sempre aparece nas análises como fenômenos díspares ou até mesmo opostos (a pauta pela revogação do aumento da tarifa e a pauta anti-corrupção).

Por fim, a última mesa explicitou aquelas divergências que tinham ficado apenas latentes no início do evento. O título da mesa prometia respostas à questão formulada classicamente por Lênin: “Esquerda e poder: o que fazer frente um levante popular” (meu grifo). E mesmo que o clima respeitoso e diplomático entre os debatedores tenha sido mantido (afinal, esse é o espírito de uma frente ampla como a da oposição de esquerda), as discordâncias eram evidentes se você prestasse atenção nos termos, pressupostos, horizontes e propostas.

De um lado, a visão anarquista ou autonomista atribui um tal significado positivo à revolta popular que, de certa forma, esvazia a legitimidade da pergunta “o que fazer”; a inevitabilidade da revolta anda lado a lado com a probabilidade de sua repressão (seja pelas forças policiais, seja pela esquerda institucional). Como defendido por Mayara Vivian, a revolta tem um significado positivo por conta da alegria da ocupação das ruas e pelo vislumbre de uma revolução das formas de vida e do modo de produção. A abordagem anarquista não almeja “dar direção” a essa energia das ruas; uma das tiradas de um dos debatedores (Paulinho Albuquerque, ex-coordenador do MST) foi que o melhor a se fazer é buscar não atrapalhar.

De outro lado, a visão socialista ou leninista, mantém, obviamente, a centralidade da pergunta “o que fazer?” e responde com noções como “organização”, “estratégia”, “direção” e “liderança” (diferentes termos que sempre remetem a necessidade de uma vanguarda). Breno Altman usou um vocabulário originado no século XX para criticar que o PT foi fundado com um espírito insurgente, mas que, ao substituir a estratégia insurrecional pela estratégia democrático-popular e, em seguida, esvaziar até mesmo o que ele enxerga como um radicalismo de longo-prazo dessa estratégia, o partido ficou incapaz de reconhecer e dirigir as energias insurgentes das ruas de 2013.

Já Rodrigo Nunes teve a responsabilidade de fechar o evento, estando engajado em um projeto intelectual de atualizar essa discussão para o século XXI, no que ele já chamou em outras ocasiões de “leninismo em rede”. E apresentou um horizonte um pouco mais arejado, que pode ser sintetizado na ideia de que esquerda institucional e esquerda autônoma podem conviver em uma tensão produtiva caso seja estabelecida uma dialética na qual a energia das ruas é estabilizada em instituições que permitam em momentos posteriores novas lutas sociais nas ruas e assim por diante.26

Aparentemente, socialistas prometem entregar respostas sem muitas vezes levar em consideração as questões historicamente contingentes que estão em jogo; e foram os anarquistas que conseguiram formular no passado recente as melhores perguntas, que costumam gerar novas perguntas, sem necessariamente chegar a respostas. Além disso, é preciso reconhecer que socialistas e anarquistas têm, em última instância, discordâncias de princípios que são mutuamente irredutíveis e inegociáveis, o que não quer dizer que não se possa produzir alianças contingentes para avançar lutas sociais concretas.

Mesmo que nenhum dos debates naquele dia na Casa do Povo tenha tido suas divergências explicitadas até o fim e, portanto, não se tenha avançado tanto em como essa diversidade de diagnósticos, pautas, táticas e estratégias possa ser articulada de modo que a oposição de esquerda ao PT seja efetivamente reconstruída, o evento na Casa do Povo cumpriu múltiplos papeis. Permitiu que as pessoas se reencontrassem face-a-face depois de anos de repressão, desmobilização, depressão e pandemia, além de ter feito circular discursos que são invisibilizados por redes e instituições com muito mais recursos, prestígio e poder (como a grande imprensa e os públicos lulistas). Circularam discursos fundamentais sobre luta de classes, violência racializada da PM, repressão estatal à ação direta e à desobediência civil, questão urbana, transporte público, tarifa zero e como as revoltas populares urbanas do passado e do futuro se relacionam com a política (seja ela pensada em uma chave mais institucionalista e estatocêntrica, seja ela pensada de modo extra ou até mesmo anti-institucional).

É do futuro desses debates que depende a reconstrução de uma oposição de esquerda que seja capaz de produzir novas unidades de ação entre socialistas e anarquistas sem apagar suas diferenças e divergências a fim de incidir tanto na luta de classes quanto nas quatro lutas de fronteiras (que produzem de modo estrutural respectivamente: a exploração de classes, a opressão racial, a dominação de gênero e heterossexual, a devastação da natureza e a hegemonia do presente regime de acumulação capitalista). Como tem insistido Agnes de Oliveira Costa, intelectual travesti e autonomista, até nos meios autônomos os balanços sobre os 10 anos de Junho de 2013 pecaram pela ausência da temática da dissidência de gênero27; ou seja, nem todas as lutas de fronteira foram tematizadas publicamente nessa efeméride, muito embora elas também tenham sido estruturantes da eclosão da revolta — o mesmo poderia ser dito sobre a fronteira entre sociedade e natureza, muito embora em eventos no Rio de Janeiro e em São Paulo, lideranças indígenas tenham sido convidadas, por exemplo, para participar dos debates.

Por último, a reconstrução de uma oposição de esquerda também vai necessariamente precisar se defender da sanha repressiva e violenta vinda de múltiplas direções: das forças de segurança, do sistema político e de quase todo o espectro político-ideológico. Estamos, hoje, em uma tal situação paradoxal que, enquanto a extrema-direita se apropria da ação direta28 para criar “revolta”, “baderna”, “caos” e “desordem” (com um horizonte reacionário de fundir militarismo e fundamentalismo religioso e de restaurar a Lei e a Ordem), a centro-esquerda é empurrada por forças externas e abraça por motivação interna cada vez mais a posição política de Esquerda da Ordem. É absolutamente impossível a esquerda construir uma hegemonia pós-neoliberal sem antes ela resgatar seus impulsos antissistêmicos e contra-hegemônicos — do contrário, a esquerda estará limitada e, pior ainda, condenada a uma defesa oca das ruínas do neoliberalismo progressista à la brasileira.

Na atual toada, é fácil visualizar a desconcertante convergência entre, de um lado, os aplausos do campo progressista a Alexandre de Moraes (exatamente o mesmo que reprimiu as ocupações secundaristas com inventividade jurídica autoritária29) e, de outro, a simplificação corrente nos públicos lulistas da gigantesca complexidade de todos os temas em torno de Junho de 2013 aqui abordados, como se fossem meros produtos de uma “revolução colorida”. Tal convergência implica que, se a revolta ousar surgir novamente nos próximos meses ou anos sob a guarda da Esquerda da Ordem, haverá uma legião de webativistas prontos para legitimar que ela seja violentamente perseguida e esmagada, de modo muito mais intenso do que já ocorreu no pós-2013. Convoco todas as pessoas que estão lendo esse texto a se incluírem fora dessa.