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Resenha de A razão dos centavos, de Roberto Andrés

Mariana Guardani

As Jornadas de Junho de 2013 irromperam como um clarão no horizonte político e social brasileiro, abalando as estruturas do país de maneira inesperada, profunda e duradoura. O que começou como aparentemente um protesto contra o aumento das tarifas do transporte público em algumas das principais cidades brasileiras rapidamente se transformou em uma onda de manifestações massivas, reunindo uma diversidade impressionante de vozes e reivindicações. Junho não se encerra no mês de Junho de 2013, influenciando a década política que se seguiu. Dez anos depois, múltiplas são as interpretações conferidas sobre as origens e os desdobramentos de Junho. Para alguns, o mês que se seguiu a Junho de 2013 foi Agosto de 2016 (impeachment de Dilma), ou ainda Outubro de 2018 (eleição de Bolsonaro).

A interrogação que ecoa de forma persistente gira em torno da classificação ideológica de Junho: seria ele essencialmente de esquerda ou de direita? Ou, quiçá, Junho teria contribuído para a reconfiguração da própria direita? Poderia, porventura, ter emergido como uma alternativa à esquerda tradicional? Essas inquirições, a bem da verdade, guardam mais relação com as fronteiras tênues de “direita” e “esquerda” do que com a complexidade intrínseca do fenômeno em análise. Permitam-me confessar que as etiquetas “direita” e “esquerda” não suscitam em mim um ardoroso entusiasmo, e, sinceramente, sinto certo pesar ao testemunhar que tais categorias assumem a centralidade das discussões sobre Junho. Em face de um acontecimento tão singular e intricado, como ousamos reduzir sua complexidade a meras dicotomias como “direita” e “esquerda”? Tal abordagem assemelha-se mais a um julgamento moral de um fenômeno social do que a uma apreciação autêntica. Nos tempos em que os algoritmos nos forçam a nos posicionar sobre todas as coisas, ter um julgamento moral se tornou quase que uma obrigação social.

Nos últimos anos, presenciamos estudos e artigos elaborados por destacados intelectuais brasileiros, nos quais Junho é abordado como resultado das movimentações de direita. Algumas análises chegam até a caracterizar Junho como uma espécie de “ovo da serpente” do lava-jatismo e do bolsonarismo. Ainda que essas abordagens apresentem argumentos intrigantes, muitas vezes, com poucas exceções, parecem deslizar rapidamente em direção a uma discussão moral em vez de uma análise política. Ao tentar encaixar categorias ideológicas ou institucionais em um acontecimento tão complexo, corremos o risco de simplificar em excesso.

O que se destaca no livro A razão dos centavos1 é a habilidade de não limitar a compreensão de Junho ao dualismo “direita” e “esquerda”. O autor, Roberto Andrés, não se propõe a responder à questão de se Junho foi um movimento de direita ou de esquerda. Ele evita superdimensionar as categorias políticas clássicas em detrimento de outros aspectos do acontecimento. Pelo contrário, Roberto adota uma abordagem mais ampla, buscando compreender Junho como um todo, sem perder de vista a complexidade e a multiplicidade de suas facetas.

Embora a discussão em torno da política institucional (e o binômio esquerda/direita) não seja o enfoque principal, esses aspectos estão, sem dúvida, incluídos na análise. É relevante ressaltar que Roberto Andrés não adota uma postura de neutralidade distante em relação aos acontecimentos. Pelo contrário, desde o início, ele reconhece sua participação como parte ativa dos eventos. Ele não estava nas ruas apenas para observar etnograficamente, mas como um entre milhares de pessoas que se juntaram aos protestos nas ruas de Belo Horizonte naqueles dias. Portanto, sua análise é inegavelmente influenciada por seu envolvimento, como ocorre com qualquer outra análise. A obtenção de um verdadeiro “distanciamento axiológico” em relação a Junho de 2013 me parece difícil de alcançar, até mesmo para os acadêmicos. Todos nós vivemos Junho de algum jeito.

Roberto possui uma posição singular para interpretar esse fenômeno: como professor de urbanismo na UFMG, ensaísta político reconhecido e com uma longa trajetória de militância. Nos encontramos pela primeira vez após o período de Junho, em um contexto no qual novos movimentos políticos estavam se formando para as eleições municipais. Roberto, naquela ocasião, me apresentou o coletivo Muitas, do qual fazia parte, e que viria a ser responsável pela eleição de duas vereadoras em Belo Horizonte em 2016, incluindo a mais votada da cidade, a Áurea Carolina (que em 2018 seria eleita deputada federal). Desde então, mantemos uma contínua e rica troca intelectual, além de considerarmos um ao outro como amigos. De modo que esta resenha tampouco tem qualquer distanciamento axiológico…

O livro A razão dos centavos está organizado em três partes distintas, intituladas “Antes”, “Durante” e “Depois”. A sequência escolhida se revela acertada, já que suaviza a interpretação abrangente e complexa do fenômeno para o leitor. A primeira seção, denominada “Antes”, se dedica a compreender os eventos que precedem, antecipam ou desencadeiam o Junho de 2013. No âmbito das análises políticas, é comum examinar Junho à luz de acontecimentos tradicionalmente políticos, como a relação da imprensa com o governo, a interação entre o judiciário e os movimentos anticorrupção, bem como as contradições geradas pelo lulismo. Sua análise político-institucional concentra-se nas questões urbanas: como chegamos a uma situação em que nossas cidades carecem de uma mobilidade mínima? Por que temos cidades que minam a cidadania? A falta de acesso à moradia e à mobilidade emerge como uma constante na história desenvolvimento urbano brasileiro e é abordada com grande competência no capítulo intitulado “As cidades e os ninguéns”.

O lulismo provocou mudanças na sociedade brasileira, ao incluir parcelas significativas da população no mercado de consumo e despertar expectativas crescentes por mais direitos. Porém, também se associou ao patrimonialismo tradicional brasileiro, e muitas de suas políticas públicas fortaleceram elementos desse “velho Brasil”. Roberto Andrés retoma essa análise; abordando-a com maior enfoque territorial.

As políticas urbanas dos governos petistas atenderam, em parte, às demandas dos movimentos sociais ao estabelecer o Estatuto da Cidade. Contudo, suas diversas políticas públicas, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Minha Casa Minha Vida e a política de incentivo aos automóveis, acabaram fortalecendo dinâmicas excludentes nas cidades brasileiras. Em vez de promover cidades mais equitativas, houve uma busca por democratizar um padrão urbano profundamente excludente, marcado pela prevalência de condomínios, carros particulares e shoppings. Notavelmente, não foram implementadas políticas de subsídio para o transporte público, apesar do amplo subsídio concedido às montadoras.

No entanto, Roberto Andrés vai além dos governos petistas. Ele retoma a questão da indústria automobilística desde os tempos de JK, atravessando o período da ditadura e prosseguindo até o presente. De maneira similar, realiza uma análise histórica e comparativa dos modelos de financiamento do transporte coletivo. Destaca a tentativa frustrada de implementar o passe livre durante a gestão de Luiza Erundina, assim como a significativa oportunidade perdida durante a Constituinte de instituir um subsídio para o transporte coletivo. Em contrapartida, surgiu o vale-transporte, que resulta em desigualdades, desmobilização e incentivos ineficazes para as empresas de ônibus.

Roberto não se limita à análise das políticas públicas e de seu impacto na sociedade brasileira; ele transcende essa perspectiva ao recuperar o histórico das revoltas urbanas. A trajetória do Brasil é marcada por episódios de “fúrias populares” relacionadas ao transporte coletivo, e Roberto traz à luz os principais acontecimentos. O autor evoca a Revolta dos Vinténs em 1881, ocorrida no Rio de Janeiro, o movimento “Quebra-bondes” anterior à Revolução de 1930, a “turba urbana” de 1947 em São Paulo, bem como a Revolta do Buzu em Salvador em 2003, entre outros exemplos significativos.

Na segunda parte, Roberto reconstitui os diversos movimentos sociais urbanos que antecederam Junho em várias capitais. Ele narra a evolução de iniciativas de luta pela tarifa zero, destacando o Movimento Passe Livre (MPL), bem como o surgimento de outras mobilizações cruciais pelo direito à cidade, como o Ocupe Estelita no Recife, Largo Vivo em Porto Alegre e Praia da Estação em Belo Horizonte, entre outros. O autor vê essa trama social preexistente como peça-chave para a compreensão das “Jornadas de Junho”. Sua tese, à qual adiro, é que Junho emerge como um movimento pelo direito à cidade.

Nessa seção, o autor também busca responder com mais profundidade a grande pergunta que surgira na mente dos tomadores de decisão há dez anos: quais eram as demandas dos manifestantes? Onde estavam suas lideranças para a negociação? Não havia lideranças. Pelo contrário, os movimentos seguiam uma dinâmica horizontalista, como minuciosamente retratado no livro de Rodrigo Nunes, Nem vertical, nem horizontal. Nessa empreitada, Roberto utiliza um método interessante e, até onde sei, inovador: catalogar exaustivamente fotografias de cartazes de manifestações de rua em diferentes cidades brasileiras. A partir da análise desses registros visuais, ele argumenta que, embora polissêmicos, predominavam clamores por expansão de direitos e aprimoramento dos serviços públicos. Embora o discurso de caráter mais “punitivo” também estivesse presente, ele não era majoritário.

Roberto propõe a classificação dos manifestantes em cinco grupos distintos. O primeiro agrupa segmentos da esquerda, englobando tendências socialistas e autonomistas. Esses manifestantes trouxeram à tona pautas associadas à justiça social, igualdade e mudanças estruturais. Em contrapartida, o segundo grupo abrange manifestantes avulsos que aderiram ao movimento à medida que este ganhava visibilidade. Muitas vezes, eles possuíam pouca formação política prévia e carregavam uma diversidade de visões de mundo em debate. O terceiro grupo representa correntes de pensamento de direita antipetista, que se mobilizavam em prol de suas próprias demandas e perspectivas políticas. Além disso, emergiram também grupos mais extremistas, como os conhecidos grupelhos fascistas, que promoviam ideologias autoritárias e intolerantes. Por fim, o quinto grupo compreendia adeptos da prática black bloc, que adotavam táticas de protesto mais confrontacionais e diretas. Essa gama diversificada de grupos refletiu a complexidade das motivações subjacentes aos protestos, evidenciando uma ampla gama de vozes e repertórios.

Na terceira seção, Roberto traça um panorama do período imediatamente após Junho de 2013. Ele inicia essa parte com a seguinte observação:

Multidão nas ruas. Tarifas reduzidas em mais de cem cidades. Confrontos intensos com a polícia. Greves de professores. Ocupações de câmaras municipais. Assembleias estaduais ocupadas. Residência do governador do Rio de Janeiro cercada. Estradas bloqueadas nas periferias. Mobilizações ambientais. Rolezinhos em shoppings pelo país. O aumento das ocupações urbanas. Vitória expressiva na greve dos garis, ecoando o grito de “Não Vai Ter Copa”.

Após Junho, foi instaurado um experimento intenso de vida democrática. As lutas se expandiram para diversos setores de trabalhadores. A busca por moradia ganhou novo fôlego, com a explosão das ocupações urbanas em todo o Brasil no segundo semestre de 2013. O MTST ganhou ainda mais destaque e força. Greves de professores e garis também eclodiram, mesmo sem o apoio sindical, resultando em paralisações marcantes.

A intensificação da violência policial, a repressão midiática e as próprias dinâmicas dos movimentos acabaram por afastar as pessoas das ruas. Quando a Copa do Mundo chegou, o ânimo já havia diminuído. O apoio social tornou-se limitado, e escapar da violência era considerado um saldo positivo. A fissura que se abrira estava se fechando gradualmente. Embora atribua mais à influência externa do que a fatores internos, Roberto aponta para as limitações do horizontalismo, sublinhando que ele pode gerar paralisia ao ser tratado como valor absoluto. A ideologia da horizontalidade tende a prolongar debates, tornando o custo de participação elevado e afastando aqueles com menos disponibilidade de tempo.

Roberto também observa o surgimento de novos movimentos de direita, inclusive extremistas, mas destaca que, durante o período de 2013 a 2014, eles eram marginais. A força desses movimentos emergiu após a reeleição de Dilma e, de fato, a partir de 2015, a rua passou a ser dominada pelas direitas. Ele identifica Junho como um despertar político para essas correntes poíticas, mas não como um fenômeno viabilizador.

Quando o Movimento Brasil Livre (MBL) criou sua página em Junho de 2013, os membros do Estudantes pela Liberdade sabiam que estavam se inserindo em um protesto que não era de sua autoria. Mesmo não se tornando protagonistas ou influenciando diretamente, perceberam o despertar político que estava ocorrendo. O slogan “Vem pra rua”, uma das expressões-chave de Junho presente em cartazes e gritos, foi apropriado por um grupo de empresários de classe média e se transformou em um importante elemento articulador das manifestações de 2015/2016.

Em resumo, Roberto apresenta a análise mais abrangente que já encontrei sobre Junho, explorando diversos aspectos e procurando capturar a riqueza polissêmica do evento. Pode-se argumentar que um elemento que mereceria maior ênfase é a influência da sociabilidade das redes sociais — onde cada vez mais se difundiam oportunidades de ação e engajamento — como elemento convergente para o tipo de organicidade observado nos movimentos (como denotado pelo cântico de Junho “Saí do Face”). O impacto duradouro de Junho na pauta urbana é evidente: o tema da Tarifa Zero passou a ser implementado em dezenas de cidades, tornando-se viável, quando antes era tido como impossível.

No livro Transforming the Revolution, publicado em 1990, o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein sustenta que as revoluções ocorridas nos últimos séculos representaram transformações globais no senso comum da política, engendrando movimentos de alteração de mentalidades que, a médio prazo, modificaram profundamente sociedades de distintos continentes. Em consonância com essa visão de Wallerstein, o escritor e urbanista Roberto Andrés declara: “É possível enxergar o ciclo de revoltas de 2011 a 2013 como um movimento global que conferiu espaço a ideias tidas como absurdas ou pouco relevantes no âmbito do debate público”. Junho mudou para todo sempre o debate público no Brasil.