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R, de rua

R, de rua, mas também poderia ser erre, o imperativo do verbo errar.

De errans também deriva a palavra “errante”, como que sem destino, ou sem destino certo, de quem vagueia ou que simplesmente erra. Já a palavra “rua” tem sua origem em “ruga”, como algo que marca, um caminho, uma dobra. Milton Santos falava das rugosidades no espaço: alterações que vão se acumulando e que precisamos compreender, manter, alterar, mas jamais ignorar. Rugosidades não são necessariamente ruas, mas nelas também se concretizam. Pensando no conjunto de obras de Carmela Gross — e isso não é uma constatação só minha — é fácil dizer que seu lugar ou sua fonte é, por definição, a rua, que nasce de suas errâncias não só pela metrópole paulistana mas por tantos outros lugares, mais ou menos urbanizados. E sua obra constitui, assim, mais um aspecto dessas rugosidades no espaço público. Então falar nesses erres (erros, errâncias, ruas, rugosidades) é uma forma de falar de algumas das obras que compõem esse conjunto e, sobretudo, falar de arquitetura e de arte, sem grandes amarras conceituais.

O exercício proposto é passar por alguma dessas obras, sem necessariamente analisá-las ou relacioná-las dentro da produção da artista, mas perto de onde se manifestam, onde foram experimentadas (ou não). Cesare Brandi, ao tratar do restauro, falava de elementos que são matéria da obra, mas que não se confundem com sua materialidade física. Falava da atmosfera e da luz no Parthenon, em Atenas, como matéria a ser considerada naquele espaço, tanto quanto o mármore de que é feito. As obras de Carmela Gross têm sua materialidade própria, é certo. Mas têm também uma matéria que diz respeito ao lugar em que estão, para onde foram criadas ou que passaram a ocupar. É a cidade, a rua, a errância. É uma artista que consegue trabalhar essas duas formas da matéria em sua obra: aquela física, da qual é feita e que também incorpora as errâncias de quem as executa; aquela atmosférica, dos variados lugares que passam a ocupar.

Antes de passar a essas obras, gostaria de lembrar um belíssimo texto de Salvatore Settis, intitulado “Desenho, memória, cidade”, em que comenta a obra Lamentos e triunfos, que Willian Kentridge realizou nos altos muros que cercam o rio Tibre em Roma. Faço menção a esse texto por dois aspectos: o primeiro terço do texto é todo dedicado a uma sintética história de Roma, para só então adentrar na análise da obra de Kentridge e, mais uma vez, comentar essa história, a partir de seus desenhos. Ao fazer isso, Settis coloca a questão: “Mas é mesmo necessário acompanhar, reconhecer, declarar as fontes de Triunfos e lamentos, figura por figura? Não”. Para então justificar a negativa categórica:

Como em geral a arte pública na sua tradição milenar (por exemplo em Roma), assim o friso de Willian Kentridge não foi concebido para uma visão privilegiada e analítica de intelectuais e especialistas, mas para uma visão sinótica e sintética do forte impacto emotivo que possa capturar um público vasto.1

Justifica, em contrapartida, a escrita de seu próprio texto (e toda a publicação em que se encontra) como documento que servirá a conservar a memória daquela obra que, com o passar dos anos, já desapareceu. Desnecessário dizer que o título de Settis articula três palavras — desenho, memória e cidade — que se prestariam muito bem ao trabalho aqui proposto. Mas voltarei a Roma para encerrar essa deambulação. E por que escrevemos sobre as obras públicas de Carmela Gross? Neste texto, Carmela,2 nome próprio, sequer aparece, e tampouco suas obras são comentadas em primeiro plano, mas passam a compor esse espaço rugoso de lugares/obras escolhidas por um critério muito pessoal, pois, sim, fui capturado por elas, por suas visões sinóticas e sintéticas.


Andar pelas ruas, numa errância sem fim, e ficar pensando nas rugosidades e nos erros e acertos do ambiente construído é um de meus passatempos preferidos. Então vou pensar nesses erros e errâncias, não para falar mal, mas para pensar numa possível construção crítica do que vejo por aí, no espaço público. É nas ruas que encontramos muitos museus que, vez ou outra, pelo gesto dos artistas, tornam-se verdadeiros espaços públicos; ou são essas ruas que, pelo gesto dos artistas, tornam-se verdadeiros museus.

Em 2005 fui assistir pela primeira vez, se não me falha a memória, a uma palestra no auditório da Pinacoteca.3 Achei confuso, não conseguia chegar ao auditório. A intervenção de Paulo Mendes da Rocha no edifício de Ramos de Azevedo é belíssima, tenho que admitir. Mas depois fui aprender (ou compreender) que ele errou. A começar pela mudança do eixo de circulação, ainda que tenha criado outros eixos, é verdade. Atravessando as galerias avistei um belvedere que dava para a rua. É um belvedere que não tem muito de uma “bela visão”: a avenida Tiradentes foi alargada, retiraram o monumento a Ramos de Azevedo, virou uma pista expressa. Devia ser um deboche dele (olhar para o triunfo rodoviarista que ele tanto criticava), pois não é muito agradável permanecer ali. Sim, a entrada principal da Pinacoteca era ali, perdemos, o arquiteto ignorou a possibilidade de circular pela larga calçada da avenida, junto aos carros (quem sabe assim um dia estreitariam a via!). Entrei mais uma vez no edifício e mais uma vez me perdi. Costumo olhar pelas janelas para me localizar, pois ao olhar para fora percebemos referências, monumentos, nuvens, luzes, cores (por isso prefiro andar de ônibus a andar de metrô), e de quebra mais um erro: as janelas foram todas fechadas, a rua, o parque, o exterior, na altura dos olhos do observador, foram todos ignorados. Mas ainda assim a intervenção é linda. Desci as escadas e cheguei ao auditório.

Naquele espaço escuro (é a base do octógono, o centro do edifício), uma espécie de porão, um pouco arena, um pouco calabouço, foi possível encontrar um ar especial: sobre o palco descansavam duas nuvens. Talvez não fossem duas, não me lembro bem, talvez tivessem rodinhas para deslizar. Eram de um azul muito bonito, iluminante. Uma delas era cortada ao meio, e o corte vermelho, saturado, sangrento. Aquelas nuvens pareciam erradas (nuvens não deveriam ser brancas? Cinzas? Choram, mas sangram?), mas tanto faz, pareciam brinquedos, ou desenhos infantis, formavam um céu inimaginável naquele espaço. Ficaram horas falando disso lá.4

Agora, em 2023, fui ao DOI-Codi, na rua Tutoia, pela primeira vez (e aqui a memória não falha). Uma visita pesadíssima, enquanto faziam escavações arqueológicas. Três pessoas conduziram a visita e visivelmente estavam tão imersos naquela história que conseguiam quebrar a tensão com momentos de riso (um riso constrangido, a história é constrangedora). Não era falta de respeito ou piada descabida, era um riso, ou alguma palavra debochada que tornava a visita suportável. A visita era insuportável. Em vários momentos tive que me virar para a parede, fingindo buscar qualquer coisa, para que não vissem as contrações no meu rosto.5 Angústia ou choro. Cada vez que falavam a palavra “tortura” as contrações vinham.

Dois dias depois fui à Pinacoteca. A coleção Roger Wright tem muitas obras relacionadas ao período da ditadura. A sala ao lado também. Tinha um presunto lá. 6 Um presunto enorme, ocupando a sala toda, obrigando a gente a dar a volta nele. A gente chama de presunto o corpo, o defunto, o morto. Não qualquer morto, mas quem foi morto (morte matada). O presunto era feito de lona de caminhão. Lembrei das histórias que contaram no DOI-Codi dois dias antes. As escavações que estão fazendo não têm como intuito achar corpos. Os corpos eram desovados longe dali. Os presuntos deviam sair em carros ou caminhões. Cruzavam a cidade. Parece que iam para Perus… para longe. O presunto atravessou a cidade, passou pela Tutoia, pelo Ibirapuera, foi até Perus. Lembra as nuvens: errantes, erradas, talvez fora do lugar. Constrangedor, mas não podemos nos esquivar dele (ou das histórias que carrega).

De repente o espaço público é a obra, vira obra, ou o contrário. A nuvem azul vira céu, o presunto de lona vira uma atmosfera pesada. São objetos, matéria, e outras matérias também conformam esses objetos, não dá para negar.

Saí da Pinacoteca, virei a esquina e fui até a Pina Contemporânea. Prédio novo (?). Insistiram nos erros de PMR (se ele soubesse que a escola moderna viraria museu, que a entrada seria pela Tiradentes, talvez ainda tivéssemos a escada), ou talvez pior: se ainda conhecemos o prédio de Ramos de Azevedo, a escola de Hélio Duarte foi totalmente ignorada. Estão lá, os tijolos, mas o que é uma escola? Não andamos mais pelos seus corredores, não conhecemos mais suas salas de aula. Atravessa-se seu saguão como se não existisse. E claro, as janelas mais uma vez foram fechadas. Essa mania que muitos arquitetos têm é realmente indecorosa. Por isso gosto quando os artistas quebram as paredes, deixam a luz entrar, ou se projetam para fora do espaço, ficam pendurados nas janelas.7 Vez ou outra alguém faz isso, e é muito bonito… Artistas que encaram a cidade, barulho luz atmosfera como matéria da obra ou da exposição. Deixam a cidade entrar para também intervir na cidade. Lembro que colocaram sinalizadores, desses de carro de polícia ou ambulância, envolta da Estação Pinacoteca (que por sinal funcionou como Deops, e hoje abriga também o Memorial da Resistência). O prédio parecia apontar para algo urgente acontecendo ali (ou talvez fora dali…). Iluminava a cidade. Sirenes sem som, pareciam um grito mudo, de quem pede ajuda sem poder se pronunciar, algo tão comum no centro da cidade, que ainda hoje padece de melhores políticas públicas.8

Mas essa negação da escola e da escada me fizeram lembrar de outra intervenção que vi há algum tempo. Na rua da Consolação. São Paulo tem uma rede de instituições agrupadas sob o nome de Museu da Cidade de São Paulo. Não são museus em senso estrito, mas recebem/promovem ótimas exposições. E os espaços são muito variados. Um dos mais recentes é a Chácara Lane (nasceu na verdade como Gabinete do Desenho). Aqui acertaram: construíram paredes para as exposições, mas elas atravessam os cômodos, abrem frestas ou simplesmente se descolam das paredes originais, permitindo a visão entre espaços ou para fora. Mas o que achei curioso é que a Chácara Lane, uma antiga casa, faz fronteira com uma escola. Dois equipamentos públicos, municipais, fronteiriços, mas que não se conectavam. A permeabilidade visual existia (uma grade as separa). Mas não se podia passar de um lado ao outro. Então construíram uma escada. Claro, parece que erraram, não segue norma, não é “acessível”. Mas é um outro acesso, ou conexão, entre esses dois mundos, da cultura e da educação. E claro que esse acesso ou conexão não é fácil nem pode ser normatizado, afinal sempre nos vai exigir algum esforço.9

A fronteira entre os dois equipamentos me lembra ainda de quando fui a Laguna, uma cidade que já foi fronteira (ainda era o tratado de Tordesilhas). Fui para conhecer o núcleo histórico, muito bem conservado. É uma cidade linda. A cidade cresceu para o lado oposto a esse núcleo, ocupando a praia, a orla toda… Bem no final dessa faixa de areia, antes de um morro, achei uma praça curiosa: sem árvores, sem bancos, nada. Mas tinha um desenho no piso (chamamos de pedras portuguesas), que parecia extrapolar o espaço da praça. Parecia esse ondular das areias das dunas. Subi o morro, contornei a rua e tentei avistar a praça de cima. O que era abstração começava a sugerir alguma outra coisa. Ainda não sei o que é. Um pouco antropomórfico. Mas continuava vertiginoso, mesmo de longe. Enfim, tanto faz. As vezes é melhor não saber o que as coisas são, elas podem ser só uma pausa nessa nossa mania de querer entender tudo. O problema é que voltei a Laguna, e lá vem erro: cercaram a praça! Não com grades, mas com esses balizadores de concreto, para carro nenhum passar por cima. E jogaram uns bancos e lixeiras de concreto, sobre aquele desenho tão delicado. Como pode? Não precisamos saber o que é o desenho, o vazio, mas ele estava lá, era suficiente.10

Todas essas errâncias, andanças, exigem esforço. Daí quase me esqueço de falar do MAC USP, pois ficou mais difícil, para mim, chegar lá. É meu museu preferido: público, universitário e gratuito (os outros que me perdoem). Talvez porque ele ficasse no caminho entre o bandejão e a FAU, talvez porque admirasse seu acervo, ou porque fiz algumas disciplinas lá. Mas ele mudou de sede (não digo que foi um erro, seria egoísmo de minha parte). E na nova sede foi nosso outro prêmio Pritzker que errou. Não que o prédio do Palácio da Agricultura (e depois Detran) não fosse bom, mas a adaptação para o MAC não foi das mais felizes. Mais uma vez as janelas fechadas… bem ele, que tem de um lado o Ibirapuera e do outro o espigão da Paulista como vistas. Demorou anos para que costurassem ali um projeto expográfico realmente interessante. Um zigue-zague.11 Paredes na diagonal abriam espaço para melhor contemplação das obras e uma visada mais dinâmica daquele piso livre. Alguém pode falar que a linha no chão (por isso remeto à costura) é didática em excesso. Não acho. Foi graças a ela que percebi que falta um pilar! Claro que não falta: quebrando a modulação dos pilares, próximo às torres de circulação vertical, o pilar não existe (pois essa caixa de circulação funciona como uma sucessão de pilares, então suprimidos). Foi graças a essa linha, também, que um enorme volume de tule preto sobre uma plataforma móvel teve seu deslocamento sugerido. Obras nos museus, habitualmente, não podem ser tocadas, movimentadas. Parece que essa obra foi criada para andar pela Paulista. O fato de ser exposta no térreo do museu e estar sobre a linha são duas soluções lindas: mais que sugerir seu deslocamento, aquele volume, nos pilotis, parece querer quebrar o vidro, lançar-se para o parque, descer aquela rampa mal ajambrada que conecta o museu ao ponto de ônibus, subir a Brigadeiro e então voltar à Paulista. De ônibus. Mas exige esforço. Alguém precisa tomar a iniciativa, encarar o peso, puxar, tracionar (seria leve ou pesado aquilo? O tule, leve? O carrinho, pensado? Ou o contrário? Seria a condição. Tem que haver alguma condição para fazer isso).12

Sigo falando das janelas fechadas para a cidade. Mas às vezes a cidade ou a rua também dá as costas para outros elementos preexistentes (quando será que nós, arquitetos, vamos parar de dar as costas?), como os rios. Lembro de visitar Porto Alegre antes da reforma da orla fluvial, que ainda não conheci, então não posso dizer se ficou bom mesmo. Mas tinha uma obra ali que trazia muita dignidade ao espaço. Era muito simples (como não pensaram nisso antes?), uma espécie de escadaria, no talude, voltada para o rio. Escada talude. Seria tão bonito se reaprendêssemos a desenhar tudo isso.13 Aliás, essa escada no talude, como desenho, é bastante sofisticada: primeiro porque não seguia uma fórmula ou norma, nem como escada, nem como lugar para se sentar (a irregularidade da pisada em uma escada é um grande problema, bem como a altura, muito baixa ou muito alta, de algo que se pretende como espaço para sentar). Para um engenheiro ou arquiteto diríamos que errou no desenho. Mas acho que foi um desenho acertado. Sem contar a fita de metal que delimita a altura de cada degrau (chamamos de “espelho”), e aquele espaço entre o espelho e a pisada do degrau seguinte (talvez seja apenas um centímetro, mas que faz os degraus flutuarem). Espero que ainda esteja lá, mesmo com as obras de requalificação da orla.14


Eu ainda poderia passar por outros lugares, em que estive ou não, que são mais ou menos públicos. Talvez contar de coisas que existiram e não conheci. Mas o modelo da escrita também vai ficando saturado (não sei se chamamos de modelo, forma…, é o que se escreve mesmo, o conteúdo, mas também a forma como determinado conteúdo é apresentado, que não é só a tipografia, nem o estilo, é tudo junto). Ou quem escreve vai ficando cansado. Ou porque não existe espaço para escrever. Na verdade, a forma/modelo não estaria saturada se eu soubesse usá-la bem.15 Fato é que muito já foi escrito sobre a obra de Carmela Gross, então preferi não falar exatamente de suas obras, mas passar por elas, usá-las como referências de um texto. Eu certamente seria injusto se indicasse os textos de que gosto mais. Quase todos estão disponíveis no próprio site da artista, fica o convite. Mas não posso deixar de citar a última monografia publicada pela artista (Cobogó, 2016) e, em especial, o catálogo de sua exposição na Pinacoteca, em 2011, pois a capa é também linda: a estação da Luz vista da Pina Estação (ou teriam errado?).

Aqui retomo o texto de Settis e a obra de Kentridge: o artista desenhou nos muros do Tibre uma certa história de Roma, mas não usou tinta: desenhou limpando o muro, aquele estrato de sujeira acumulada em anos ou décadas. Em determinada porção, deixou um grande bloco negro, com uma única frase: “aquilo que não recordo” (quello che non ricordo). Sobre essa figura específica Settis escreveu: “Declarando um vazio de memória, esse ‘buraco negro’ pretende por si um peso não apenas igual às figuras que o circundam, mas ainda maior”16. Então é melhor parar por aqui. Assim o leitor pode pensar em tudo aquilo que esqueci de comentar.17