8

Ponto de não retorno

“Há uma superfície que quer voltar a ser superfície… e não pode”, reconheceu Flavio Motta em 1977 sobre a produção de Carmela Gross. Naquele momento, a artista paulistana já tinha pouco mais de dez anos desde as suas primeiras participações em exposições, e Motta escreveu o texto É o b-a-bá especialmente a partir da relação dela com o desenho, no contexto da exposição Carmela Gross: Desenhos (Gabinete de Artes Gráficas, SP). Hoje, quase cinco décadas depois, essa frase-imagem ainda parece muito certeira para continuar a pensar a produção de Carmela Gross. Desde a segunda metade dos anos 1960, Carmela vem lidando com superfícies que querem voltar a ser o que eram antes de encontrarem a artista, mas já não é possível desfazer as operações feitas por ela. Como deixar de ver, perceber, reconhecer tudo o que a artista traz à tona nas mais diferentes superfícies? Nas folhas de papel de desenhos ou gravuras, nas fachadas, janelas e outros elementos da arquitetura, nas telas, tecidos e projeções, nos espaços institucionais, no papel pardo, nos outdoors e painéis luminosos, nos espaços, mobiliários e limites urbanos.

Hino à bandeira começa no contexto da exposição coletiva Matéria-prima, que inaugurou em Curitiba o Museu Oscar Niemeyer, em 2002. A vontade de trabalhar com um material tão básico quanto incontrolável, como a água, encontrou a impossibilidade de espaço na sala expositiva, com piso coberto por carpete. Ocupou uma área dos pilotis um conjunto de lençóis em diversos tons de vermelho que, juntos, constituíam um retângulo de 12 × 18 m. A lógica modular vem das Gravuras rosas (2002), feitas como estudo para Hino à bandeira. O conjunto de 21 gravuras partem de uma única placa de metal riscada até ficar quase completamente fechada pela trama das linhas. Cada gravura é resultado de um novo tom de rosa adicionado aos resquícios dos tons usados nas gravuras anteriores. O resultado são gravuras únicas a partir de uma mesma matriz. O interesse pela matéria e pelo acúmulo também está presente em Hino à bandeira. Nos pilotis, os lençóis precisam ser molhados constantemente, produzindo uma densidade capaz de aderi-los ao chão. Imobilizados pelo peso da água impregnada, os lençóis não voam com as correntes de vento. A depender da temperatura, umidade do ar e condições meteorológicas, é preciso aguar mais ou menos, em intervalos de tempo maiores ou menores.

Somos colocados a ver um corpo-matéria-película de 216 m² em estado de atrito, desgastado e resistindo à relação de forças que se estende durante todo o período de exposição do trabalho. Esse me parece um dos elementos-chave. Esse estado continuo dá um caráter especialmente performático à instalação, sobretudo na participação constante de pessoas molhando os lençóis a todo momento em que eles finalmente parecem secar. Há certa crueldade, para além de um possível caráter mais lúdico. Quase impossível não pensar no castigo de Prometeu no alto do monte Cáucaso.

Muito difícil também não lembrar de alguns dos trabalhos que Carmela Gross apresentou em 1969 na 10ª Bienal de São Paulo — Bienal marcada pelo endurecimento da repressão empregada pelo regime militar brasileiro. Lonas com a superfície gasta, marcadas pela ação do tempo e por sua presença no mundo, deram corpo às obras A carga, A pedra e Presunto — que, na gíria das grandes cidades, faz referência a um corpo morto sem identificação. Os lençóis são como uma película, uma fina camada de pele do avesso — quase um escalpo — que apontam o urbano como uma arena, como espaço de disputa. Ecoam ainda outros trabalhos como Carne (2006) — o ônibus-instalação tomado pela luz, circulando com a palavra CARNE escrita no letreiro, e luminosos como Eu sou Dolores (2002) — letreiro luminoso que atravessa o espaço privado e avança pelo espaço público. Todos em tons de vermelho. Todos nos colocando em estado de atenção.

Trabalhos como Hino à bandeira (2002) nos fazem pensar como Carmela Gross construiu uma produção interessada na superfície, na aparência, no que é visível ou no que nos é dado a ver, e, por consequência quase obrigatória nos leva a pensar no que não é visível ou o que não é dado a ver. Voltando a Flavio Motta, na obra de Carmela, “Talvez seja necessário descolar algumas coisas. Talvez não seja apenas tirar a máscara que também é um processo per sonare — para tornar mais sonoro, mais evidente, mais pessoal”. Hino à bandeira dialoga com a ambição que as obras da artista parecem ter de se fazerem presentes na cidade. Ao mesmo tempo, como poucas vezes, revela o que isso lhes custa. A superfície de pouco mais de 200 m² formada pelos lençóis é nesse sentido quase como um grande espelho, que provoca nossa percepção sobre o que está à nossa volta. É preciso pensar na nossa condição de estar no mundo e o que isso nos custa. “Há uma superfície que quer voltar a ser superfície… e não pode.”