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Pegar, subir, correr

A artista está, ela mesma, montando o trabalho em cima de alguma montanha ou pé de estrada. Na imagem, pega as nuvens com as mãos. Essas nuvens foram transformadas em um desenho bastante comum, e então solidificadas — tornadas fatias, cenário, carne. Pegar com as mãos — descê-las à terra, ou até mesmo puxá-las — finca outro modo de olhar para aquilo que é paisagem, fundo, que está na categoria de coisas que olhamos, e não coisas que pegamos. Assim, esse gesto literal, documentado na imagem, parece ser parte da operação do trabalho em si — e talvez daí também a graça da foto.

I.

Há algo nessa fotografia que me deixa sentimental. E lembro que a palavra, seu uso e mesmo o tipo de olhar pega mal — ao menos dentro de uma parcela do meio artístico, talvez de extração universitária. É uma coisa meio caída, meio kitsch. Um olhar mais comum ao observar fotos de família do que obras de arte. E embora não seja uma foto de família, a imagem na qual Carmela posiciona as peças na paisagem tem um lance, algum feitiço.

O formato escolhido para o trabalho da fotografia é um desenho que se assemelha àqueles de desenhos infantis, dos cartoons, da linguagem publicitária démodé, da cultura de massa. Aspecto exacerbado pelo acabamento: suas formas precisas são cobertas por tinta esmalte, lisa e brilhante, em um tom de azul que contrasta com o vermelho da espessura. É também o formato de balões vendidos em porta de churrascaria; das nuvens pintadas em globos de neve, onde nem sempre neva onde sempre há algum pedaço de paisagem presente; dos pirulitos de chocolate cobertos de açúcar colorido produzidos em diferentes fôrmas, corações, rosas, Nuvens. De dentro desse universo kitsch que engloba bibelôs, miniaturas de plástico, prazeres baratos e apelativos, o trabalho se constitui como uma cisão. No momento em que a artista opera a solidificação e o corte dessas formações atmosféricas conhecidas por cúmulos, quaisquer nuvens se tornam estas Nuvens — do desenho que não exige muito de quem vê, o objeto é convertido em algo que demanda uma observação detida, própria da arte.

Na montagem exposta no acervo da Pinacoteca de São Paulo se encontram quatro inteiras e uma quinta fatiada ao meio. Cinco cúmulos, mas seis unidades de madeira esmaltada. Através de um corte, a coisa, o desenho da coisa, a concretude da coisa assim se distinguem numa outra: o trabalho.

O trabalho arrasta consigo o sentimentalismo do desenho genérico das nuvens para então cortá-lo. Agora, as fronteiras borradas entre kitsch, pop, trabalho e, sobretudo, meu olhar sobre a fotografia ganham alguma nitidez. Não é que o trabalho seja sentimental. O que me deixa sentimental é, isso sim, o lembrete de que artistas podem pegar o mundo com as mãos, até qualquer pequena coisa que aí esteja, inclusive das mais desgastadas e barateadas. Tudo pode ser examinado dentro e através dos nossos trabalhos: qualquer coisa pode ser da arte, objeto. Mesmo aquelas que são examinadas extensivamente na história da pintura ocidental há pelo menos cinco séculos. Mesmo aquelas cujas formas de representação já são encontradas nos museus de arqueologia em objetos funerários de milênios atrás. Esta imagem faz parecer que não se trata dos objetos que observamos, mas do modo como olhamos para essas coisas, do que está entre nós e o mundo. Se trata de uma relação cambiante daquilo que forma a própria maneira de olhar,1 de como o sentido e o significado mesmo da materialidade estão em negociação.

II.

Não se sabe se é de fato Carmela de costas na foto com as Nuvens. Mas se não era, basta olhar para a sequência de fotos no final dos anos 1960 que ela começa a ser. É uma espécie de álbum de família: há uma certa intimidade com os trabalhos, lugares, o figurino de época, a visualidade característica da película, e com a personagem das fotos, que agora reconhecemos. Escada, Presunto, e Carga (obras fotografadas acima) são decerto mais austeros que os cúmulos. Mas o que faz essa personagem, que pega, sobe, corre? Para enxergar melhor, corto a personagem fora.

A terra de “um barranco na periferia de São Paulo”2 se converte em rocha sedimentar. Cada uma dessas camadas de solo tem agora três, talvez 4 metros de altura — a baianca da foto é, na verdade, só um pedaço de uma montanha de escala colossal. Esculpida pela sedimentação, cada degrau é uma escalada íngreme com um platô para descansar. Nenhuma vegetação nas superfícies imediatas. Um desenho monumental foi visto naquela região mais erma do Estado. Arqueólogos, para investigá-lo, seguiram em direção à área fronteiriça, de urbanização parca e irregular. Em seus diários, relataram que a vista era bonita, no contraplano da fotografia que passou a fazer parte da documentação.

Descobriram uma caverna de larga abertura. Esgueirando-se por seus buracos, pelos caminhos baixos, só encontraram vida em pequenas criaturinhas com muitos pares de pernas e segmentos de exoesqueleto, que sobreviviam na umidade da terra mesma. Surpreenderam-se ao se deparar com pedaços de obsidiana, que pareciam fazer as vezes de lâminas, em meio a outros instrumentos feitos de cerâmica, cuja dimensão sugeria que fossem manuseados entre palmas e dedos. Poucos anos depois, um desabamento tornou inacessível o grafismo imenso. Nas amostras do pigmento preto foram encontrados traços de carbono e enxofre.

III.

Parece que, sem o corpo presente na fotografia, o trabalho perde seu lastro. Sem a figura de Carmela não há a escala da paisagem, ou da obra. Se isso parece tautológico — já que no mais das vezes um corpo no registro de um trabalho serve para demonstrar sua escala —, aqui parece que é essa figura que o constitui. Como se o corpo constituísse a genealogia da obra. Se uma das sensibilidades da instalação é revelar as condições visíveis e invisíveis do lugar onde é produzida,3 a operação parece só se completar com a presença da personagem na foto. É a mulher que demonstra, pela posição de suas pernas, o fato de que o desenho e os degraus do solo têm, em sobreposição, a forma e a escala de uma escada. E é isso que a torna escada; não é rampa, não é escalada.

Se Escada revela o espaço tal como ele é, e funda a condição desse espaço tal como o compreendemos a partir do trabalho, é por conta da coreografia espacial e mental contida no trabalho, e encenada pela personagem da foto. Um barranco pode ser uma escada. E também uma escada pode ser um barranco, uma Cascata (2005), uma Escada-Escola (2016), uma Escada de emergência (2012).

Escada existe no repertório da arte contemporânea brasileira como documentação: há uma sobreposição entre obra e registro. É a fotografia, enquanto documento, que situa o trabalho na moldura social onde a arte acontece, e o insere no campo discursivo e receptivo4 da produção da arte contemporânea brasileira. Pouco importa o destino do barranco: se desabou, se o desenho continua lá, ou se foi tudo demolido no processo de urbanização da cidade de São Paulo. Onde a imagem está presente enquanto documento de trabalho é onde Escada existe.

Pouco importa mesmo? Pego-me pensando se Carmela lembra onde era o barranco — tenho certeza que sim —, se ela me contaria — isso já não tenho certeza —, e se ao visitá-lo, ainda estaria lá. A ruína do trabalho — o trabalho em ruínas — poderia ainda ser considerada o trabalho? Retomo o local concreto porque é preciso desambiguar: a obra nunca foi exposta enquanto documentação, como uma foto em um cubo branco qualquer. O trabalho é a intervenção, que circula como narrativa a partir da fotografia. Parece-me que o trabalho em ruínas então já não seria o trabalho, pois não seria mais Escada, o espaço enquanto tal fundado pelo desenho.

IV.

Na fotografia de 1969, Carmela aparece correndo para fora do quadro. Se movimentar no momento do clique é uma estratégia comum utilizada por artistas que, ao figurarem nas fotografias de seus trabalhos como referência de escala humana, pretendem que não sejam reconhecidos. Ou ao menos, demonstram a tentativa de não serem reconhecidos. Timidez de muitos, talvez. Outra hipótese seria perceber o rosto borrado de artistas como sintoma de uma herança modernista, da estrutura de pensamento em torno da obra de arte — esta que deve ter autonomia em relação à artista quando posta no mundo, quando faz a passagem do ateliê para o espaço expositivo, muito embora seja inextricavelmente ligada à ela.5 Nossa personagem aparece com mais um vestido de época. Uma estampa de bolinhas, talvez, ou florzinhas, quem sabe — manchas azuis cuja forma não tem contorno nítido na imagem, borradas e desordenadas.

Nos últimos anos, vi Presunto em duas ocasiões: na Pinacoteca, em 2018, e no seu regresso ao prédio da Bienal em 2021. Toda vez que vejo Presunto é como se estivesse encontrando um amigo antigo. O trabalho de fato faz parte do meu repertório de formação, como de muitos estudantes de arte. É sempre um pouco contraditório, um pouco bizarro, porque frente ao que a obra tem de sinistra, não consigo evitar de abrir um sorriso discreto de cumprimento, o mesmo de quando encontramos alguém com quem temos um tanto de intimidade, mas vemos pouco. Uma escultura mole de lona de caminhão, surrada, de cor de lona (não de presunto). Uma fatia de carne agigantada, pedaço bem generoso, diga-se de passagem. Presunto, gíria que descreve cadáver — dando ao trabalho o aspecto de saco funesto, corpo velado.

Volto ao Brasil de 1969, e àquela edição da bienal que ficou conhecida como “Bienal do boicote”, justamente pela recusa de diversos artistas à participação, dado o endurecimento da estrutura política que construiu a ditadura militar brasileira, instaurando os anos de terror. Daí também o caldo violento da obra, embora a própria artista pontue que, se pode ser lida como engajada, não era algo explícito à época.6 Presunto carrega algo do interdito, nessa sua forma que recobre algo, continente mole, chulapa amorfa e fechada. Não deixa de haver algo de podre — já que é carne — na sujeira da lona arrastada para dentro do espaço expositivo. Lona que levava consigo o rescaldo dos anos recentes: as novas e imensas rodovias, os caminhões, os caminhoneiros; os desaparecimentos, a vida urbana simultaneamente efervescente e interdita. Reivindica existência, frente à censura daquele espaço que se tornaria cada vez mais privilegiado na obra de Carmela: o espaço público. A participação na X Bienal anuncia o que a artista diria décadas mais tarde, “só é possível 'pensar arte' como máquina social e urbana, que se produz nesse meio e a ele se destina, em suas trocas ativas e múltiplas”.7

V.

Tive algumas poucas conversas com Carmela um tempo atrás. Eu quis convencê-la a orientar meu mestrado. Foram uns dois ou três finais de tarde em seu ateliê — provavelmente dois, mas a minha memória tende a aumentar as coisas. Em um desses encontros eu falava sobre as circunstâncias de acontecimento de um projeto meu, tentando responder às perguntas que me fazia. Num dado momento, enquanto eu justificava alguma decisão que, honestamente, era mal resolvida, Carmela pousa o cigarro no cinzeiro, se ajeita na cadeira, me interpela, e diz algo como “mas vocês só pensam no que já está pronto, nos lugares que estão dados, naquilo que já é possível. É por isso que é tudo pequeno. Não adianta só usar o que já está pronto. Assim não dá”. Num suspiro, bate o olho nos papéis com os desenhos do projeto — ou na foto na tela do computador, já não lembro mais — e levanta o olhar por debaixo do osso da sobrancelha, que se arqueia mais ainda para cima. A mirada se divide entre vários olhos: dois por cima da moldura dos óculos, e pedaços de olhos que vejo através das lentes emolduradas pelo desenho arredondado do policarbonato preto. Todos me encaram, sérios.

Sentávamos em torno de uma mesa grande e quadrada que ficava numa espécie de amplo hall entre dois outros espaços. Não lembro do material do qual era feita sua superfície. Vindo da passagem lateral do jardim, uma porta de correr dava ali. Às minhas costas, depois de um degrau, uma sala bem ampla rodeada de estantes, povoadas por mesas extensas, mapotecas, secadores metálicos, prensas, arquivos. E trabalhos, muitos trabalhos. À minha frente se constrói, na imagem confusa, uma outra sala, fechada. A densidade que há no trabalho de Carmela parece de algum modo estar naquele espaço de pesquisa e trabalho. E é também o meu olhar que procura e constrói os índices daquela densidade ali.

As palavras que me marcaram talvez fossem outras; as que escrevo agora são como consigo desembaralhar o sentido que construí para elas. O mesmo posso dizer sobre seus gestos e toda a reconstrução que tenho na memória. Carmela fuma mesmo? Ou foi um copo d'água que ela pousou sobre a mesa, quem sabe, depois de tomar um gole? Ou, ainda, na verdade, ela mudou de posição um grande anel prateado que percorria seus dedos? É preciso um gesto para essa narrativa, pois é o gesto que se reconstitui cinematograficamente como o antecessor da fala, que prepara os ouvidos, que prepara o leitor, que marca a imagem. No fim, acho que era um cigarro mesmo.

Carmela pega o cigarro do cinzeiro, a cena continua a se desenrolar, e a memória difusa vai se esvaindo até desaparecer. Meus olhos, que estavam dentro da minha cabeça, se reviram e fitam de novo as fotografias dos três trabalhos que compõem esse texto. “Não adianta só usar o que já está pronto. Assim não dá”: não consigo mais olhar as fotografias sem ver nelas as frases refletidas. Isto é, percebo que são seu espelho refratário. Os gestos e coreografias, especialmente nas imagens de Nuvens e Escada, reforçam e revelam possíveis sentidos das obras: pegar o mundo com as mãos; subir, coreografando o espaço, para fundá-lo enquanto tal. E talvez sair correndo do Presunto, correr da imagem — e se despedir desse texto —, como quem deixa o trabalho animar a si mesmo, reivindicar sua existência, e estabelecer suas próprias trocas ativas e múltiplas. Assim, as frases ditas anos atrás encontram as fotografias: é o próprio trabalho de arte que, por vezes, precisa construir e expandir seus espaços dentro da máquina urbana. É por isso que não basta pensar naquilo que já é possível, não se pode recuar de enfrentar aquilo que o trabalho demanda. É pegar, subir, correr. E, então, coreografar, construir, fundar, revelar, expandir. “É esse o esforço, de você calcar no elemento da realidade, que já está ali, e fazer isso virar para fora. Ou seja, tornar real a realidade.”8 Está aí o feitiço.