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Oxy: o mundo dá voltas numa papoula

Rafael Carneiro

That’s not just about a pill that kills a lot of people, it’s bigger than that.” Essa é uma das baforadas que a procuradora Edie Flowers (Uzo Aduba) solta na cara de quem está vendo O império da dor (Painkiller), na Netflix. A série narra a montagem do que talvez tenha sido um dos maiores esquemas de legalização de drogas na história mundial: a venda do opioide OxyContin por prescrição médica nos Estados Unidos. O negócio foi um blockbuster. Dizem que a fortuna de Pablo Escobar era de US$ 30 bilhões no ano de sua morte, em 1993. A Forbes estimou que a família proprietária do OxyContin, os Sacklers, chegou a possuir US$ 13 bilhões em 2016. Nada mal.

Drogas milagrosas são usadas em tratamento de pacientes terminais e pós-operatórios, mas os Sacklers achavam esse nicho de mercado apertado demais para seus bons propósitos e conseguiram que o OxyContin fosse liberado para aliviar quaisquer dores crônicas. Em 1996, as vendas começaram na casa dos US$ 50 milhões. Em 2000, saltaram para mais de US$ 1 bilhão. Em 2010, o Oxy, como era carinhosamente apelidado, redesenhou o mercado dos opioides, aumentando o consumo de heroína e de fentanil. Nos últimos vinte anos, mais de 500 mil pessoas morreram engolindo ou cheirando opioides nos Estados Unidos.

É impossível apresentar o jogo sujo da fabricante do OxyContin, a Purdue Pharma, em seus detalhes sórdidos. Vou apenas comentar dois aspectos que me capturaram a atenção por revelar padrões de longo curso entre narcóticos, império e economia mundial.

Depois de testar o Oxy em ratos de laboratório, a Purdue Pharma rodou seu primeiro teste em humanos não dentro de um estado norte-americano, mas em Porto Rico. Havia décadas a ilha era uma espécie de laboratório para experimentos duvidosos dos Estados Unidos. O status jurídico de Porto Rico, um território, e não um estado federativo; a etnia da população, hispânica, e não anglo-saxã; o nível de vida modesto dos moradores; as taxas menores de educação dos seus jovens: tudo ajuda passar o pano em escândalos morais. Não admira que as primeiras vítimas do Oxy tenham sido mulheres porto-riquenhas em estado pós-operatório. Se você quer entender um império, tem que começar visitando suas colônias. E nas colônias, olhar para os grupos mais vulneráveis.

O segundo aspecto se relaciona com a economia mundial. Segundo o jornalista Patrick Radden Keefe, no livro Empire of Pain (2021), a Purdue Pharma fabricou o Oxy contando com o desenvolvimento geneticamente modificado da papoula, a planta do ópio. Desenhada por uma empresa controlada pela Johnson & Johnson, nome candidamente associado a cotonetes, fraldas e talco para nenês, a variante turbinada possuía maior concentração de tebaína, matéria-prima do Oxy. Seu plantio em larga escala se dava na Tasmânia. À medida que subia o preço da papoula, puxado pelas vendas do Oxy nos Estados Unidos, pequenos produtores locais trocaram o plantio costumeiro de cenouras e couve-flor pela produção mercantil em larga escala da superpapoula.

Império, comércio mundial e narcóticos: do sofá de um Airbnb vagabundo onde passei os últimos dias, vi a história mundial se repetir em círculos inebriantes na minha frente.

No início do século XIX, a Grã-Bretanha mantinha sua posição de “oficina do mundo” graças a sua balança de exportações no Oriente. Os britânicos vendiam seus estoques de tecidos de algodão para a Índia, ao mesmo tempo que estimulavam exportações da Índia com o fim de gerar dinheiro para a compra de suas manufaturas. Com o tempo, descobriram que o melhor negócio, disparado, era vender ópio indiano para a China. A procura no Império Celeste era tamanha que os chineses pagavam em prata. Graças a isso, os britânicos podiam oferecer crédito sem juros aos cultivadores indianos da papoula e pagar valores relativamente altos pelo ópio cru. Tal como na Tasmânia do século XXI, o mercado mundial criou condições para montar um enclave agroexportador na Índia tendo por base a organização em larga escala de pequenos produtores locais.

Em 1839, Pequim tentou dar um basta no esquema britânico confiscando quase 1,5 toneladas de ópio, numa das mais espetaculares operações antinarcóticas da história — o recorde europeu no estouro do estoque de outro derivado da papoula, a heroína, aconteceu apenas em 2014, e foi de 2,2 toneladas. O confisco produziu convulsão, espasmo, síncope e fúria na Grã-Bretanha. Afinal, sem ópio, nada de China. Sem China, nada de Índia. Sem Índia… Marx ligaria os pontos alguns anos depois: “Na mesma proporção em que os produtos de algodão se tornaram interesse vital para o quadro social geral da Grã-Bretanha, a Índia se tornou interesse vital para os produtos de algodão da Grã-Bretanha.”

Londres reagiu ao desmame forçado movendo a Guerra do Ópio, uma das mais infames ações de sua história. No fim da guerra, em 1842, obrigou os chineses a pagarem 21 milhões de libras esterlinas pelo ópio que não tinham fumado. Eviscerou da China a ilha de Hong Kong, devolvida apenas em 1997. E ainda obrigou Pequim a abrir cinco portos marítimos ao comércio mundial: Cantão, Amoy (Xiamen), Fucheu (Fuzhou), Ningbo e Xangai. Garantido o ópio, o comércio do Oriente foi renormalizado. Com uma única guerra, Londres aplacara seus dois vícios, o do ópio e o do algodão.

Alguns dos muitos negociantes ocidentais a encher a burra de dinheiro entupindo os chineses de ópio eram da família Forbes. A mesma da famosa revista que anunciou a fortuna dos Sacklers em 2016. Hoje, os donos da Forbes são de Hong Kong. Não bastasse, a China é que produz os compostos químicos do fentanil, o opiáceo sintético que os norte-americanos aprenderam a consumir na esteira do Oxy. A grande história do mundo dá voltas numa papoula.