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Sal de fruta

Regla curva, Renata Pedrosa

Tenho um pouco de medo se me dizem que determinada obra de arte é “radical”. Se for em música clássica, já espero muita vociferação no coro, acompanhada de sons bizarros com fita magnética, e, se for filme, o contrário: silêncio de sepulcro enquanto o close de uma avestruz piscando se prolonga por dez minutos.

Mas isso são lembranças de outros tempos. Esse tipo de radicalismo saiu de moda, e posso agora qualificar como “radical” o último livro de Bruna Beber (Sal de fruta, Círculo de Poemas) sem achar que estou assustando ninguém.

Por que “radical”? Acho que, em primeiro lugar, porque todos os textos do livro se subordinam a um mesmo projeto, um mesmo “design”, se posso chamar assim. Bruna Beber dedica cada um de seus poemas em prosa a uma fruta específica. Começa com a laranja, passa para a banana e o figo, até terminar na maçã.

Só de ver o índice dá para perceber que a autora segue um método. Começa e termina com as frutas mais comuns, fazendo a gente “provar” as mais raras (nêspera, romã) só aí pelo meio da leitura.

Mas o radicalismo de Sal de fruta se revela melhor em outros aspectos. Primeiro: a autora não está muito aí se o leitor não conseguir entender cem por cento de um texto. Sabe que sua escrita é tão expressiva, tão forte, e às vezes tão “clara”, que o risco de algum estranhamento vale a pena — é o toque de acidez, ou de “sal” que faz suas frutas mais interessantes, menos digeríveis.

Compreende-se, portanto, a antipatia de Bruna Beber pelo melão (concordo plenamente com ela). “O priminho insosso”, começa o poema. Reconheço a figura. Mas o texto vai ficando um pouco mais complicado.

O melão “aprendeu a ser desinteressante fumando escondido com um grupo de peras maduras numa rua de condomínio logo depois do alagamento”. Aqui, tenho mais dificuldade em entender. “Depois do alagamento”, sim: trata-se de uma fruta aguada. Peras maduras: verdade, podem ser brancarronas, parentes de um melão mais jovem, e, portanto, esverdeado.

“Fumando escondido” me deixa em dúvida: seriam os fiapos amarelos que o melão tem dentro, como grumos de tabaco? Mas que importa? A obscuridade do texto não está, aqui, funcionando como um “gesto”, como sinalização de que se está sendo “moderno” e “radical”, naquele sentido vanguardista antigo.

Sente-se que a coisa simplesmente “tinha de ser dita”, tal como veio — talvez em razão de alguma lembrança pessoal da autora.

E, nisso, Bruna Beber dá um passo para além dos textos de Francis Ponge, em que certamente se inspira. Ponge, como se sabe, adotou a perspectiva “das coisas” (a porta, o pão, o caracol), cada uma delas dotada de personalidade, dúvidas, tiques, hábitos, história e geografia. A circunstância biográfica do autor aparecia pouco; já em Sal de fruta, a memória pessoal, as vivências da autora, como mulher nascida em Duque de Caxias, sem dúvida de origem pobre, entranham-se nos textos.

Há a conserva caseira guardada num pote reciclado de maionese; a romã, fruta “adventista”, e o figo que, por alguma razão, “frequenta a mesma igreja”; ou o cajá, de que Bruna diz ter sido vendedora aos 7 anos, enquanto “ao redor dos rádios daquela rua imunda da Alabama fluminense, em todas as casas, muita gente já tomada banho conversava”.

O reconhecível se mistura ao que fica guardado em segredo, dentro da memória da autora, e que, por vezes, brota em metáforas que sinto não precisar entender para que concorde mesmo assim. O melão (volto a ele) é “o parvo das previsões”. Não sei o que isso significa exatamente — mas acho certo.

Fico pensando um pouco mais. Será que a imagem vem daquilo que se costuma fazer para saber se o melão está maduro — percutir seu cocoruto e julgar se o som é oco? “Cabeça-de-melão”, como diziam as antigas dublagens dos seriados cômicos?

A manga, essa entendi direitinho; tem a ver com uma professora, que reaparece no poema da maçã, fruta “tão calminha [que] nem parece viver em sociedade”.

Calminha? O erotismo de alguns textos é para lá de radical, mas — de novo — sem a gestualidade, a sinalização, o caráter “afirmativo” de tanta literatura identitária que se faz atualmente. Nada contra — quem sou eu? Mas o mundo da metáfora, da poesia, do segredo, não combina bem com “afirmações”. Importa, também, negar o mundo, para aí sim reconstruí-lo, em fruta e sal.