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Presidencialismo às avessas

Ana Calzavara

Em 17 de julho de 1868, após a queda do Gabinete Zacarias, é apresentado o Gabinete Itaboraí — é nesse dia que Nabuco de Araújo profere um discurso tornado célebre. Era ele, o senador, que, junto com Zacarias de Góis e Vasconcelos, dividia a liderança do ministério liberal, legitimado pela maioria dos parlamentares e expurgado pelo Imperador. Em sua fala, Nabuco faz uma dura crítica do sistema político do Império brasileiro: “Sr. Presidente, sou chamado à tribuna por um motivo que, em minha consciência (talvez seja um erro), é muito imperioso. Este motivo, senhores, é que tenho apreensões de um governo absoluto; não de um governo absoluto de direito, pois não é possível neste país que está na América, mas de um governo absoluto de fato”.

Em seguida, ele assinala que a maioria do parlamento era formada por liberais, mas que essa maioria foi simplesmente descartada em prol de novas eleições: “Foi chamada ao ministério uma política vencida nas urnas, que tinham produzido a maioria que se acha vigente e poderosa no parlamento. Isto, senhores, é sistema representativo? Não”. Ele chega mesmo a questionar a verdade do sistema representativo, segundo ele falseado por uma espécie de autoritarismo:

Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado em que se acham as eleições em nosso país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo: O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país.

Reconhecido à época como modelar, o parlamentarismo inglês era organizado de baixo para cima: primeiro a eleição dos parlamentares, depois a escolha de um líder, enfim, a organização ministerial. Entretanto, no Brasil, ocorria o contrário. Era o Imperador que, por meio de eleições convocadas, forjava a maioria e então escolhia os ministros. Aquele que devia moderar tornou-se um ditador constitucional. Por conta desse funcionamento viciado que o Poder Moderador passou a ser identificado, a partir das turbulências geradas pela Guerra do Paraguai e a queda do Gabinete Zacarias, como a causa do autoritarismo político brasileiro. Após o episódio de 1868, com o conflito acirrado entre liberais e conservadores, houve sete dissoluções da Câmara pelo Imperador.

Clássicos como Sérgio Buarque e Raymundo Faoro consideraram esse modelo à brasileira como um parlamentarismo às avessas, ou orleânico, que funcionaria de cabeça para baixo: era o Imperador que detinha o poder, e não o Parlamento, evidenciando a fraude desse suposto sistema parlamentar. O sistema se organizava, nas palavras de José Murilo de Carvalho, como uma “monarquia presidencial”. Essa tese vigorou por anos e anos em nossos livros de história, passando a ser amplamente conhecida entre aqueles que estudam o modelo político que vigorou em nosso país durante uma parte do século XIX. Ainda que há algum tempo ela seja questionada, isso não nos impede nos inspirarmos nela para traçar um paralelo com nosso modelo atual.

Hoje, o povo elege o Poder Executivo, na figura do presidente, e também o Poder Legislativo, representado pelo Congresso, os deputados e senadores. Então os líderes parlamentares e o presidente ficam encarregados de organizar uma maioria congressual para viabilizar o governo, maioria que provavelmente não reflete de forma integral a ideologia presidencial. Essa forma de organização força um regime de coalizão, em que o presidente, longe de poderes imperiais, faz um governo mitigado pelos interesses do Congresso. O conceito de Presidencialismo de Coalizão reflete bem o modelo delimitado no texto constitucional de 1988.

Ora, se essa descrição esboçada acima é uma espécie de tipo-ideal, caberia perguntar: na prática, estamos diante de algo ao menos próximo disso? Há muito esse arranjo deixou de existir. Seria preciso reconceituar o regime em que vivemos: presidencialismo às avessas — talvez a expressão, como aquela que serviu de inspiração, seja exagerada, mas ela não deixa de chamar atenção para uma dimensão real do que vem ocorrendo há anos. O Centrão se organiza em ano de eleições, faz pressão sobre o Executivo federal — trancando a pauta do Congresso em troca de aumento de verbas através de emendas parlamentares polpudas —, coloca várias obras em andamento e ou tem seus parlamentares reeleitos, ou consegue eleger outros da mesma legenda. Assim, fazem o presidente refém do congresso: pautam o governo recém-eleito, seja ele de direita ou de esquerda, alegando uma suposta falta de negociação e usando esse pretexto para extorquir o governo.

As coisas se passam dessa forma ao menos desde a eleição de Cunha para a presidência da Câmara, sendo que nos últimos tempos o único que teve o “tom correto de negociação” foi Temer, que não por acaso foi presidente da Câmara, representando inteiramente seus interesses. Hoje o grande líder da nação é o presidente da Câmara, Arthur Lira, que deseja até mesmo usurpar a competência exclusiva do Executivo Federal de escolher os ministros. O presidente da Câmara se comporta como o viciado Poder Moderador de outrora. É esse modelo político disfuncional, dependente da boa vontade do baixo clero, que chamamos de democracia. Mas, afinal, o que é o tal Centrão que domina o sistema? Tema para outra coluna…