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Israel/Palestina: a guerra da informação e a descolonização do mundo

18 dez 2023

Gostaria de começar com uma advertência importante. Nunca estive nem em Israel nem nos Territórios Palestinos Ocupados (TPOs). O mais próximo que já estive dessas terras foi cerca de 10 a 15 km da fronteira entre Israel e o Líbano.

Também é importante para mim me posicionar em relação a Israel/Palestina. Não sou israelense; não sou palestino; não sou árabe; não sou judeu; e não sou muçulmano. Sou um canadense francês que, não custa reiterar, nunca esteve em Israel/Palestina. Meus pensamentos são baseados na experiência de ser um “outsider”, cujo envolvimento com Israel/Palestina tem sido mediado pela política global de informações e pela pesquisa acadêmica em relações internacionais e descolonização.

Dito isso, quero deixar claro: não sou neutro em relação à atual guerra de Israel contra a Palestina. Sou a favor da libertação universal e, portanto, contra a dominação. Estou empaticamente ao lado dos palestinos, israelenses e todos os outros que se oponham à ocupação de Israel na Palestina e rejeitem o sionismo como uma permanente ideologia e cultura imperial.


A ocupação israelense das terras e do povo palestino deve acabar agora. Por quê? Porque a ocupação de Israel é impulsionada por uma relação de dominação. As relações entre palestinos e israelenses são desiguais e opressivas. Israel domina política, militar, econômica e culturalmente os TPOs. Isso é um fato histórico que, a bem da descolonização e da humanidade em geral, não pode nem deve ser contestado.

Durante estes tempos de guerra na Palestina, é importante não perder de vista o fato de que Israel/Palestina é governado por uma relação imperial. Os israelenses são os “colonizadores”. Os palestinos são os “colonizados”. Em 2023, os “outsiders” estão mais bem posicionados para reconhecer esse imperialismo graças a décadas de escritos anti-imperialistas baseados em diversas visões do Sul Global (especialmente as palestinas), suas trocas Sul-Sul e as circulações subsequentes pelo Norte Global e outras regiões do mundo.


Em termos históricos, a informação tem sido fundamental para o fenômeno global da descolonização. A informação, noutras palavras, tem sido e continua sendo uma forma de libertação, reparação, (re)conciliação e transformação no mundo. Os eventos liderados pelos palestinos em Gaza, Cisjordânia e além revelam atualmente a dimensão mais frágil na armadura imperial de Israel: a cultura. Ou seja, os domínios inter-relacionados de percepções, ideias, emoções e envolvimentos humanos.

A informação é crucial para humanizar os palestinos e libertar a Palestina na consciência mundial. A informação literalmente informa como os palestinos e a Palestina são vistos e compreendidos em todos os lugares. Ela também foi (e continua sendo) fundamental para o imperialismo, pois possibilita as práticas de exclusão racial, subjugação e representação distorcida do “colonizado” em relação ao “colonizador”. Para incluir ativamente e capacitar o “colonizado”, além de desestabilizar os privilégios raciais do “colonizador”, a informação tem sido e deve continuar a ser fundamental para a descolonização.

Um dos muitos desafios que os libertadores palestinos enfrentam tem sido o estabelecimento de uma infraestrutura viável, informal e global de informações que permita aos palestinos narrar, ou seja, contar e disseminar a história de Israel/Palestina a partir da perspectiva do “colonizado”. Historicamente, os nacionalistas palestinos só começaram a se envolver com a política global de informações na década de 1970. Foi apenas com o advento da revolução palestina, que coincidiu com um boom nas comunicações internacionais, que os palestinos realmente começaram a falar com o mundo em geral.

A primeira oportunidade global real para os palestinos narrarem com efetividade foi em meio aos destroços, poeira e horror do massacre de Sabra e Shatilaem em 1982, facilitado e apoiado pela invasão de Israel ao Líbano. Foi com a cobertura televisiva e impressa da mídia internacional sobre as comunidades de refugiados palestinos de Sabra e Shatila no Líbano (ou seja, fora dos Territórios Palestinos Ocupados) que muitos “outsiders” testemunharam pela primeira vez o modo de dominação de Israel.

Desejosa de se emancipar da mídia internacional para suas informações, as Nações Unidas reuniram uma comissão internacional de seis juristas para examinar, de modo autônomo, a invasão de Israel ao Líbano. A comissão da ONU foi presidida de forma notável por Sean McBride, primeiro presidente da Anistia Internacional e chefe da comissão da Unesco para estudar a Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (Nomic) no final da década de 1970. A Nomic foi um movimento liderado pelo Terceiro Mundo que denunciou o papel da mídia internacional em preservar hierarquias raciais ao redor do globo e defendeu a descolonização da informação.

Em seu relatório de março de 1984, os membros da comissão da ONU denunciaram unanimemente Israel por desafiar o direito e as normas internacionais. Mais especificamente, criticaram os bombardeios deliberados, indiscriminados e irresponsáveis de Israel a “escolas, hospitais e outros alvos não militares” no Líbano. Israel negou isso na época e culpou outros pelo massacre. Seus apoiadores nos círculos da mídia internacional aceitaram esmagadoramente a negação israelense. Quatro dos seis membros da comissão da ONU foram além da mera denúncia de Israel: qualificaram as ações de Tel Aviv como genocídio. As atuais acusações globais de genocídio israelense contra os palestinos (assim como os bombardeios de hospitais no norte de Gaza por Israel) não são novas para os nossos tempos. Tragicamente.

Edward Said, o intelectual palestino sediado em Nova York, reconhecido como um dos fundadores do polêmico campo acadêmico dos Estudos Pós-coloniais, refletiu abertamente sobre as conclusões da comissão da ONU na London Review of Books (LRB), em 1984. Juntos, a Nomic e o relatório da comissão da ONU sobre a invasão de Israel ao Líbano ofereceram a Said um ambiente para criticar o papel do ecossistema global de mídia na dominação de Israel sobre os palestinos. Naquele momento, essa revista de língua inglesa, de renome internacional, serviu como um espaço raro que “concedeu” (à la façon impériale, se preferir) a um palestino “permissão para narrar” — que foi, aliás, o título do ensaio de Said na LRB.

Compreensivelmente, Said não mediu palavras. “Os fatos não falam por si mesmos”, argumentou, “mas exigem uma narrativa socialmente aceitável para absorvê-los, sustentá-los e circulá-los.” Said pontuou como, entre 1970 e 1982, que as narrativas palestinas mal existiam na mídia internacional; elas não eram socialmente aceitáveis. Isso, inferiu ele, era devido ao desígnio imperial do sionismo. A Palestina não era percebida pelo ecossistema vigente de informações globais como um fato no mundo, apesar de as Nações Unidas reconhecerem a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) como a única representante dos palestinos no fim de 1974.

Said se aliou a atores anti-imperialistas no Sul Global, estudiosos de comunicação no Norte Global e defensores da Nomic em todos os lugares, incluindo Beatriz Bissio, editora dos Cadernos do Terceiro Mundo, uma importante revista trilíngue do Terceiro Mundo sediada no Rio de Janeiro naquela época. Importante destacar que o ensaio de Said na LRB revelou uma instância específica e contemporânea em que o mundo realmente poderia ver como o modo de dominação do imperialismo funcionava pelas lentes da mídia internacional. As “notícias mundiais” sobre a invasão ilegal do Líbano por Israel e o massacre israelense de Sabra e Shatila demonstravam, em particular, como as formas de ver e ser do imperialismo eram controladas:

  • que informações eram apresentadas ao mundo;
  • como essas informações eram apresentadas;
  • quem tinha o privilégio de apresentar as informações;
  • e onde e como essas informações eram recebidas, pelo menos até certo ponto.

É claro que, como um povo dominado, os palestinos já conheciam muito bem essa realidade trágica que impulsionava a guerra de informações entre Israel e Palestina. Israel era uma parte integral de um ecossistema global de mídia que, no início dos anos 1980 e antes, realmente não queria que os palestinos existissem aos olhos do mundo. Se os palestinos existissem nessas imaginações, então Israel precisaria coexistir com eles lado a lado em termos mais iguais que aqueles existentes e que haviam historicamente predominado. Israel não queria que os palestinos existissem nesse ecossistema.

O reconhecimento internacional da existência palestina justificaria a solução de dois estados para o que então era comumente chamado de conflito árabe-israelense, observe a exclusão da palavra “palestino” nessa expressão. Israel não queria essa, por assim dizer, solução; queria o status quo (ou nenhuma solução), que era uma realidade de um único estado. O estado existente de Israel privilegiava constitucionalmente os judeus no mundo em detrimento dos muçulmanos e cristãos palestinos que eram/são nativos de Israel/Palestina.

Coexistência genuína, afinal, não é o mesmo que dominação. Israel praticava a dominação em suas relações com os palestinos. Dada sua posição de dominação, Israel não queria paz com os palestinos.

A solução de dois estados havia sido a abordagem preferida pelas Nações Unidas para resolver o conflito israelense-palestino desde o final da década de 1940. E a OLP oficialmente aceitou a solução de dois estados durante uma Cúpula Árabe em 1982 em Fez, Marrocos. 1982: ou seja, aproximadamente dois anos antes tanto da mencionada comissão da ONU que denunciou a invasão do Líbano por Israel quanto do ensaio de Edward Said sobre a permissão palestina para narrar na LRB. Mas as Nações Unidas não eram a mesma coisa que o ecossistema global de informações. As Nações Unidas, pelo menos em termos numéricos e organizacionais, por meio do G-77, eram dominadas pelo Sul Global (com a única exceção sendo o braço do Conselho de Segurança da ONU). Conforme argumentava corretamente a Nomic, o ecossistema global de mídia era dominado pelo Norte Global, em grande parte devido às suas bases imperiais.


Em resultado dos eventos de 1982 e do modo como a informação sobre eles se espalhou pelo mundo, os nacionalistas palestinos entenderam de maneira mais sólida a importância de integrar a frente global de informações em sua revolução contínua. Assim, palestinos como Edward Said buscaram mudar o consenso internacional sobre Israel/Palestina, concentrando mais energias no fortalecimento profissional do jornalismo palestino. Como intelectuais públicos, jornalistas, colaboradores, fotógrafos, videomakers e, posteriormente, editores, os palestinos afirmaram seu direito de informar o mundo. Apresentaram proativamente fatos ao mundo sobre Israel/Palestina. Desde então, a existência do jornalismo palestino gerou uma mudança descolonizadora na cobertura e na interpretação da mídia internacional sobre Israel/Palestina. “Outsiders” agora veem os palestinos e a relação de Israel com a Palestina de maneira muito diferente do que faziam antes de 1982.

O sucesso da narrativa palestina em nosso ecossistema global de mídia explica por que Israel está atualmente mirando as vidas de jornalistas palestinos no norte da Faixa de Gaza. Fato: a guerra de Israel contra jornalistas palestinos é parte integrante da segunda Nakba. No entendimento de Israel, as narrativas palestinas não existirão no mundo sem a presença de jornalistas palestinos no norte da Faixa de Gaza.

Tragicamente, o ataque de Israel a jornalistas palestinos coloca um novo viés imperial num mito sionista original, segundo o qual a Palestina seria “uma terra sem povo”. Em última análise, as ações atuais de Israel revelam que Tel Aviv deseja que o mundo pense (e veja) que não há palestinos no norte da Faixa de Gaza. Na ausência de um povo palestino nativo, Israel (tanto como estado colonizador quanto como sociedade) pode justificar sua capacidade exclusiva de ter mais terras nos TPOs — reproduzindo uma estrutura conhecida como colonialismo de povoamento.

Mas o que Israel está ignorando, ou simplesmente se recusa a entender, é que a atual guerra na Palestina é diferente por causa da descolonização e da política global de informações. É diferente por causa do legado da Nomic. Graças ao trabalho e sacrifício de jornalistas palestinos, Israel não pode mais esconder do mundo sua relação de dominação com os palestinos e a Palestina. Valendo-se do poder da narração, auxiliados por tecnologias e plataformas digitais, os palestinos factualizam sua existência contínua no mundo. Graças ao jornalismo palestino, o mundo agora possui (para evocar as palavras de Said na LRB) “uma narrativa socialmente aceitável” sobre a libertação palestina. Isso não era o caso até quatro décadas atrás.

Para concluir, a atual guerra israelense contra a (e na) Palestina nos mostra três coisas. Primeiro, as narrativas palestinas agora existem firmemente no ecossistema global de mídia. Segundo, a consciência e a solidariedade da descolonização para com os palestinos são provavelmente as mais poderosas de todos os tempos. E, finalmente, é socialmente inaceitável que os palestinos não existam no ecossistema global de mídia, não importa o quanto Israel tente e quão ignorante a imprensa mainstream da América do Norte e alhures escolha ser.