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A armadilha do nacionalismo étnico-cultural judaico e o genocídio em Gaza

6 nov 2023

Como é possível o povo vítima de um genocídio perpetrar um genocídio?

Questão semelhante a essa sempre é levantada quando se busca compreender as razões que levam os israelenses a provocarem massacres contra os palestinos, como o que observamos desde o 8 de outubro na Faixa de Gaza em resposta ao ataque do Hamas no dia anterior. De largada, é importante ressaltar: o genocídio cometido pela Alemanha nazista contra os judeus tem e não tem relação com o genocídio cometido por Israel contra os palestinos.

Não tem por que quando a solução final foi empregada para o extermínio dos judeus nos campos na Europa a partir de 1941, o processo que viria a resultar nos massacres contra os palestinos já estava lançado. Não há causa e efeito entre o genocídio dos judeus na Europa e dos palestinos no Oriente Médio. Não há o que aprender sendo vítima de um genocídio. Mas há conexões indiretas. E que fique claro: o objetivo aqui não é fazer uma comparação direta entre Israel e a Alemanha nazista, mas apontar que o processo social que levou à formação destes estados caracterizados por supremacismo raciais responsáveis por genocídios têm raízes comuns: o nacionalismo étnico völkish.

Do nacionalismo judaico ao nacionalismo palestino

O sionismo político surgiu no final do século XIX no leste europeu como um movimento nacionalista judeu inspirado no nacionalismo étnico völkish, que é a mesma raiz que também levou ao movimento nazista na Alemanha. O nacionalismo é aquilo que os integrantes da nação fazem dele. Não há modelo universal de nação e toda nação é, como afirma o historiador estadunidense Benedict Anderson, uma comunidade imaginada.1 Todas são artificiais, construções sociais dos humanos. Mas há processos materiais distintos de formação de nações.

O sionismo, como um nacionalismo völkish, entende como parte de uma mesma nação aqueles que partilham uma história comum. Os alemães interpretaram de forma romântica o folclore de seu país como um passado histórico. Os sionistas, a história bíblica da terra prometida de Israel. David Ben-Gurion, primeiro primeiro-ministro de Israel, escreveu em seu diário que não importava se a história da Bíblia era verdade, mas que as pessoas acreditem nela.2

Essa narrativa construiu um passado comum entre judeus de diferentes locais do mundo, como os ashkenazim do leste da Europa e os sefaradim do norte da África. Mas a fé judaica era exercida de várias formas, com costumes e celebrações distintas, além de língua e tradições culturais diferentes. No entanto, o judaísmo na Europa não era compreendido somente como uma fé, mas como uma etnia. Particularmente no leste europeu, onde os judeus eram submetidos a um sistema de discriminação racial semelhante ao apartheid moderno. Na Rússia czarista, os judeus podiam viver exclusivamente em uma região conhecida como Zona de Assentamento, eram destituídos de diversos direitos e sofriam sistematicamente ataques violentos conhecidos como pogroms que destruíam os seus vilarejos e assassinavam pessoas.

O sionismo entendia que os judeus eram uma nação étnica e apenas se libertariam por meio da criação de um estado-nação de maioria judaica. Então houve um processo de criação do povo judeu moderno, que partilha um passado — bíblico — e também uma cultura comum. Essa cultura seria formada pelas tradições judaicas e também por uma língua comum. Eliezer Ben-Yehuda foi um linguista russo responsável por construir o hebraico moderno a partir de diferentes línguas modernas, como o alemão, o russo e o árabe. O hebraico então se tornou a língua oficial do movimento sionista e do novo homem hebreu. Este novo sujeito é a oposição da representação antissemita do judeu fraco e subjugado que falava ídiche (dialeto dos judeus do leste europeu). Logo, o ídiche se tornou proibido nos espaços sionistas por ser associado a esse judeu fraco. O novo homem hebreu era forte, orgulhoso da sua identidade nacional, que não seria mais subjugado e que construiria com as suas próprias mãos a sua nação em território inóspito.

O sionismo entendia que os judeus faziam parte de uma nação comum que não tinha espaço na Europa. Logo, deveriam construir essa nação para libertar os judeus fora do continente. Depois de considerar Uganda e Argentina como opções, o movimento sionista optou pela Palestina como forma de construir legitimidade para as suas intenções coloniais a partir do discurso de retorno do povo judeu à terra prometida. O objetivo era pôr fim à diáspora pois não haveria forma de acabar com o antissemitismo.

Como um nacionalismo étnico-cultural europeu, o sionismo racializou o judeu a partir do Outro indígena da terra que desejava colonizar: os árabe-palestinos. O intelectual palestino Joseph Massad afirma que foi a partir da subjugação de um Outro considerado ainda inferior que o judeu sionista passou a ser visto como um igual pelos demais ocidentais e teve o seu projeto colonial no Oriente Médio apoiado pelo imperialismo europeu.3 A construção de uma relação racial de superioridade fundamenta todo projeto colonial: o povo racialmente superior possuiria o direito de colonizar para levar a civilização para os povos inferiorizados. Esse típico paternalismo colonial é possível ser visto em sionistas de direita, como Theodor Herzl, e de esquerda, como Ber Borochov.4

O povo que habitava o território milenarmente conhecido como Palestina não se identificava de forma homogênea como palestinos. O nacionalismo palestino se origina a partir do nacionalismo árabe do século XIX, que abrangia os diferentes povos levantinos sob o Império Otomano. Mas os palestinos logo se distinguem por causa do colonialismo sionista. Primeiramente, nos círculos intelectuais e nos jornais críticos à venda de terras por grandes proprietários árabes aos sionistas europeus. A identidade nacional palestina se populariza a partir da resistência ativa à colonização sionista e ao imperialismo britânico nos levantes dos anos 1920 e 1930.

Aqui reside uma diferença fundamental entre os nacionalismos judeu e palestino que desfaz a suposta simetria na reivindicação ao território que existiria no interior da assimetria de poder que vemos por trás dos massacres israelenses contra os palestinos. O sionismo é um nacionalismo étnico-racial colonizador enquanto o palestino é um nacionalismo territorial anticolonial. Certa vez escutei de uma palestina que trazia o relato do seu pai a respeito de quem era palestino no início do século XX: todos aqueles que viviam e trabalhavam a terra de forma conjunta e harmoniosa. Não há uma característica étnica, racial ou religiosa que define o povo palestino. O nacionalismo palestino é uma identidade forjada na resistência dos povos nativos da terra ao colonialismo estrangeiro. Enquanto o sionismo é um nacionalismo étnico materialmente forjado na colonização da Palestina, na negação dos palestinos do direito à terra e à autodeterminação.5

O exclusivismo sionista

O sionismo nunca permitiu que não-judeus gozassem dos mesmos direitos e liberdades que os judeus. E aqui reside o problema central do projeto sionista: o seu exclusivismo étnico-racial que resultou na construção de um Estado que busca assegurar de forma permanente os privilégios aos seus cidadãos judeus a partir da expropriação constante da terra e do trabalho palestinos, da negação à autodeterminação dos palestinos e da repressão brutal de toda forma de resistência que busque alterar essa situação.

O sionismo surgiu como uma reação ao racismo que os judeus estavam submetidos na Europa, mas que não buscou combater a raiz do problema: a sobreposição homogênea entre estado, nação, povo e território que buscou controlar ou extirpar à força elementos “estranhos” considerados os responsáveis pelos problemas enfrentados por essas sociedades sob a ascensão do capitalismo industrial no final do século XIX. A figura do judeu errante, desenraizado e símbolo do multiculturalismo, da convivência com o Outro, foi transformada, por um lado, no capitalista financeiro e, por outro, no comunista-bolchevique. Isto é, o judeu foi racializado como o responsável por todos os males enfrentados pelos europeus. O resultado foi o apartamento em guetos e campos e, depois, o extermínio dos judeus para “purificar” a nação alemã.

O sionismo reproduziu essa sobreposição homogênea entre estado, nação, povo e território na construção do Estado de Israel. Contudo, se depararam com o que os intelectuais sionistas chamaram de “problema árabe”. A solução foi a ideia de “transferência”.6 Os sionistas enxergavam a necessidade de expulsar os palestinos para abrir espaço para a imigração e o assentamento judeu. Os palestinos foram racializados como povo expulsável, que não teria uma conexão particular com aquela terra e por serem árabes poderiam viver em qualquer outra nação árabe.

A “transferência” passou a ser planejada nos anos 1930 por meio da elaboração do “arquivo dos vilarejos”, que fez um mapeamento detalhado de todos os vilarejos palestinos. A sua execução começou a ganhar corpo após a ONU determinar a partilha da Palestina em 1947. Os dirigentes sionistas elaboraram quatro planos de expulsão. O que ficou para a história foi o quarto, o Dalet (quarta letra do alfabeto hebraico), que determinava como os palestinos deveriam ser expulsos e os seus vilarejos destruídos. Ainda no final de 1947, militares israelenses que participaram da guerra contra o nazi-fascismo na Europa integraram a Operação Naschom, que tinha como objetivo “limpar” a costa da Palestina a partir de Tel Aviv-Jaffa. O resultado foi a Nakba sob a névoa da Guerra Árabe-Israelense que se seguiu à criação de Israel em 1948. Foram 750 mil palestinos expulsos, 15 mil mortos e 550 vilarejos destruídos pelas milícias sionistas.7

O nacionalismo étnico sionista buscava libertação, proteção e prosperidade exclusivamente aos judeus. Os palestinos foram representados como obstáculos a ser eliminados. Os sobreviventes da Nakba foram inicialmente subjugados sob um regime militar para torná-los adaptados à nova realidade israelense como “bons árabes”. Estes são permitidos sobreviver. Aqueles que insistem em resistir e lutar por sua libertação nacional, os israelenses lhe reservam a expulsão, a prisão, a morte ou o confinamento à céu aberto. Essa é a realidade dos palestinos destituídos de quase todo direito que vivem em enclaves em Gaza e na Cisjordânia. A necessidade israelense de manter a maioria demográfica judaica entre os cidadãos israelenses para salvar o projeto sionista e manter o controle sobre todo o território da Palestina para expandir os assentamentos judaicos os obrigou a erguer um complexo regime de apartheid.

Ao combater o racismo, os judeus caíram no que Frantz Fanon chamou de armadilha do nacionalismo.8 Fanon nota, em relação ao movimento de negritude de meados do século XX, a importância de afirmar a identidade negra através de projetos culturais para retirar o sujeito negro do lugar de inferioridade e objetividade que o branco o confinou. Esse movimento era fundamental para humanizar o sujeito negro, para ele passar a ter orgulho da sua estética, da sua cultura e da sua história. Mas Fanon aponta para o perigo dessa autoafirmação se tornar essencialista. Pois o negro passaria a ser visto como essencialmente superior aos demais a partir da identidade étnico-racial. O que era visto como sinal de negatividade, como a dança, passaria a ser visto essencialmente como positividade. Isso é o que Douglas Barros aponta como identitarismo.9

Barros aponta como Marcus Garvey, importante intelectual negro do início do século XX, flertou com o fascismo através de seu projeto de nacionalismo negro.10 Garvey teria uma visão romântica, idealista e ficcional da África e buscaria retornar os negros da diáspora ao continente africano para torná-los novamente africanos. O Partido dos Panteras Negras criticava este nacionalismo cultural por não atacar as estruturas do racismo. Para os panteras, era preciso enfrentar a estrutura racista e trazer dignidade para todos os subalternos de forma a acabar com a racialização. Por essa razão, eles fundaram em 1966 a Coalizão Arco-Íris, que incluía negros, latinos, asiáticos e trabalhadores brancos. O objetivo final era acabar com a supremacia branca para libertar todos os oprimidos, não somente os negros. O perigo que essa coalização representava fez os seus integrantes serem perseguidos, presos e assassinados pelo Estado americano.11

A Coalização Arco-Íris representa o que Fanon apontava para a necessidade de escapar da armadilha do nacionalismo para impedir que autoafirmação se torne essencialista e, consequentemente, opressora. Isto é, a autoafirmação cultural deveria ter um limite para se dirigir no sentido do universal na luta contra todas as opressões e pela emancipação de todas e todos. Por essa razão, Fanon e os Panteras Negras viam no comunismo e no internacionalismo a melhor alternativa para enfrentar o racismo. Pois o capitalismo está na raiz do racismo moderno.

Combatendo o essencialismo sionista

O exemplo do nacionalismo cultural negro revela que o caso sionista não é particular. Os comunistas judeus do início do século XX já viam os limites do sionismo e combatiam as suas ideias. Alguns judeus europeus participaram de movimentos de trabalhadores comunistas sem se preocupar com a questão judaica. Outros buscaram trazer o antissemitismo como uma questão particular na opressão da classe trabalhadora.

O Bund era um partido dos trabalhadores judeus do leste europeu que buscou trazer a questão racial para o interior da luta dos trabalhadores por emancipação. O partido reivindicava um nacionalismo cultural a partir da cultura ídiche. Mas o nacionalismo cultural do Bund não pretendia trazer emancipação somente aos trabalhadores judeus, mas buscava que a luta dos trabalhadores incluísse o sofrimento particular dos judeus dentro da luta universal dos trabalhadores por emancipação. Infelizmente, as reinvindicações do Bund não prosperaram e grande parte dos seus integrantes foi morta na II Guerra Mundial.

O resultado foi a colonização completa do judaísmo pelo sionismo, que aos poucos deixou de ter oposição dentro das comunidades judaicas ao redor do mundo e se tornou hegemônico globalmente. A experiência judaica passou a cada vez mais ser a experiência sionista e vinculada ao Estado de Israel. O combate ao antissemitismo se tornou a defesa de Israel.

Em movimento dialético semelhante ao do Bund, Judith Butler defende que os judeus de hoje reivindiquem a ética humanista judaica para criticar o Estado de Israel. Ela coloca a crítica a Israel como uma obrigação do humanismo judaico e não como antissemitismo. Mas essa autoafirmação da posição privilegiada que o judeu ocupa para criticar Israel deve ser limitada para reconhecer que todos os povos do mundo possuem um princípio ético humanista e que a ética judaica é formada também a partir das contribuições de não-judeus. Butler aponta que essa convivência diaspórica dos judeus com não-judeus deveria servir de base para a reconciliação entre judeus e palestinos na Palestina. Essa relação de convivência permite enxergar a si no Outro e não vê no Outro a oposição negativa do Eu para se construir como superior, como faz o racismo colonial sionista.12

O genocídio que vemos hoje em Gaza é resultado da institucionalização do projeto de supremacismo judaico do “sionismo realmente existente” no Estado de Israel que vemos desde a Nakba de 1948. É a sua continuação direta. O “sionismo realmente existe” é o sionismo material que colonizou a terra e o povo palestino e criou o Estado de Israel a partir desse projeto exclusivista. Ele é distinto do que chamo de “sionismo imaginário”, que são as demais linhas humanistas e não essencialistas do sionismo que defendiam a coexistência com os palestinos, mas que nunca tiveram relevância material.

O “sionismo realmente existente” fez do racismo contra os palestinos uma política de estado para assegurar os privilégios aos judeus. E separo o supremacismo branco do judaico pois a identidade privilegiada aqui não é a branca, mas a judaica. O judaísmo é historicamente plural e os judeus são brancos, árabes, negros, etc. Israel homogeneizou essa pluralidade no sujeito israelense que tem na defesa do Estado a única forma de se libertar. Logo, a defesa de Israel se torna a luta contra a perseguição histórica aos judeus.

A resistência palestina deve ser eliminada pois a libertação palestina é entendida como continuação do extermínio dos judeus. Além disso, a resistência palestina é a lembrança contínua do colonialismo sionista. Pois enquanto projeto de colonialismo por povoamento, o sionismo almeja eliminar o indígena (física e simbolicamente) para se tornar o novo e verdadeiro nativo da terra. A luta palestina por libertação é uma lembrança constante de que os sionistas são invasores.13

O genocídio que vemos em Gaza para eliminar os indesejados que se colocam no caminho da libertação sionista é resultado do essencialismo sionista. De que a terra pertence exclusivamente aos judeus. O Estado de Israel está preocupado somente com a proteção dos judeus, não com o fim do racismo e dos massacres no mundo. Por essa razão, o genocídio palestino para proteger o que é entendido como uma ameaça aos judeus torna-se aceitável dentro do raciocínio sionista — e do Ocidente.

Apesar disso, processos coloniais formam povos que passam a ter conexão com a terra colonizada e que deixam de ter relação com o seu país de origem. E este é o caso dos judeus israelenses. É fundamental que a libertação dos palestinos desvie da mesma armadilha nacionalista em que os sionistas caíram. É necessário transformar a identificação dos grupos que vivem naquele território para forjar uma reconciliação verdadeira entre judeus e palestinos. E isso necessariamente passa pelos judeus sionistas romperem com o essencialismo e caminharem na direção da universalidade. E o primeiro passo deve ser a libertação dos palestinos. Entender a liberdade da Palestina como caminho para a liberdade judaica é fundamental pois a questão palestina representa, atualmente, a universalidade de todos os povos do mundo que lutam contra opressão e por libertação. É fundamental descolonizar o judaísmo do sionismo.