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A América Latina e a virada botânica

Cosmic Seeds (2022), Renata Haar

As plantas formam a maior parte da biomassa da Terra (Bar-On, Phillips e Milo 2018). Elas são uma forma essencial de vida para a humanidade, já que sua participação ativa em nossos ecossistemas os mantém equilibrados e os sustenta. No entanto, na epistemologia moderna as plantas são o que Jane Bennett chama de “matéria opaca” (2010, viii): subtraídas de nosso universo vivo, foram naturalizada como objetos a serem explorados, consumidos ou gerenciados por humanos (Aloi 2018; Moore 2016). Tal instrumentalização da vida botânica criou dilemas ambientais no Antropoceno. Pense, por exemplo, na participação do governo brasileiro na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021 (COP26). Após dois anos de críticas globais pelo aumento dramático nas taxas de desmatamento na Amazônia, o governo de Bolsonaro havia se comprometido a reduzir as emissões de carbono em 50% e alcançar a neutralidade climática até o ano de 2050. Em seu discurso oficial, o ministro brasileiro do meio ambiente Joaquim Leite reconheceu os desafios ambientais do Brasil. Mas mesmo diante de estudos recentes que mostraram que a Amazônia emite mais dióxido de carbono do que absorve, uma mudança relacionada ao desmatamento da região promovido pelo agronegócio (Gatti et al. 2021), Leite prometeu que o país enfrentaria esses desafios sem deixar de ser uma potência agrícola. “Onde há muita floresta”, disse o ministro, “também há muita pobreza.” Sua declaração ressoa com o chamado contínuo de Bolsonaro para transformar a Amazônia em uma fronteira agrícola. Embora não tenha deixado claro como isso aconteceria, o comentário de Leite mostra como até mesmo discussões ecológicas da maior urgência se dão através de uma desconexão radical entre a violência cometida contra o mundo botânico do qual dependemos e os efeitos ambientais globais dessa forma de violência que comprometem nossa existência.

Há uma longa tradição de estudos sobre como e por que se dá a instrumentalização dos seres vegetais (ver Smith 2008). Nas culturas ocidentais modernas, as plantas tendem a ser narradas em termos coletivos neutros como florestas, paisagens, cultivos ou agricultura, termos que mostram como sua importância está vinculada ao uso ou consumo humano. No entanto, recentemente pesquisadores no campo dos estudos culturais têm se dedicado a iluminar as forças antropogênicas presentes nos processos de devastação ambiental global. Como sugerem Gagliano, Ryan e Vieira (2017), a cegueira moderna em relação às plantas tornou-se um problema além da sub-representação e do logocentrismo. Ela reflete uma dificuldade cultural em compreender a integração humana no mundo vegetal e em cuidar das presenças frágeis por meio das quais nós, humanos, existimos. No âmbito das políticas do Antropoceno, pesquisadores também começaram a propor novos diálogos e espaços imaginativos nos quais ecologias de sobrevivência e interdependência possam surgir, ser nutridas e sustentadas (Haraway 2016; Lyons 2020; Seymour 2020; Alaimo 2010). Parafraseando a antropóloga Natasha Myers, as lógicas do Antropoceno não podem oferecer uma saída para a violência antropocênica, “é hora de apelar para outro feitiço, convocar outros mundos à existência, conjurar outros mundos dentro deste mundo” (Myers 2021). Comprometida com a interrupção radical e a experimentação, essa virada recente para a vida vegetal nos estudos culturais é um convite para ver, sentir, conhecer e reconectar-se com as forças botânicas para além dos estreitos parâmetros da modernidade, a fim de imaginar, cultivar e promover mundos habitáveis.

Este artigo comenta três obras que exploram novas formas (resilientes, cuidadosas e mais-que-modernas) de relacionamento entre humanos e vegetais. Embora essa virada vegetal tenha ganhado destaque principalmente na academia anglo-americana, quero destacar as possibilidades e contribuições de pensar nos mundos botânicos a partir da América Latina. Os estudos culturais latino-americanos, a partir do legado das cosmologias ameríndias, do pensamento pós-colonial e estudos sobre mistura e hibridismo, são um terreno fértil para discutir visões divergentes de progresso, identidade, ecologia e sociedade. A América Latina também pode oferecer lições importantes sobre como vivenciar e enfrentar a degradação ambiental. Começando por The Language of Plants: Science, Philosophy, Literature (2017), livro seminal organizado por Monica Gagliano, John Ryan e Patrícia Vieira, vou situar esse amplo debate acadêmico, para então analisar duas obras recentes sobre a participação ativa das plantas em práticas de criação de mundo na América Latina. Em Plant Kin: A Multispecies Ethnography in Indigenous Brazil (2019), Theresa Miller analisa as práticas de cuidado e amor que possibilitam relações de parentesco entre pessoas e plantas no Brasil. The Poetics of Plants in Spanish American Literature (2020), de Lesley Wylie, explora como imaginários vegetais têm sido fundamentais para articular o dissenso em discursos políticos na história latino-americana. Essas obras, por meio da atenção à forma como as interconexões botânicas possibilitam diferentes modos de afeto, pensamento e significado em seus meios ecossociais, oferecem um prato cheio para quem quer imaginar políticas e éticas multiespécies para o Antropoceno.

Linguagens botânicas

A virada botânica nos estudos culturais, às vezes também chamada “virada vegetal” ou “estudos críticos das plantas”, é uma conversa subterrânea entre humanistas e cientistas sociais que vem ocorrendo há duas décadas, principalmente no norte global, mas que nos últimos anos atraiu uma geração mais jovem de pesquisadores interdisciplinares na América Latina (Rosa 2019; Lyons 2020; Hernández e Rueda 2020). Os envolvidos não pensam, necessariamente, sobre plantas, mas com ou entre as plantas, rearticulando uma série de discussões do pós-humanismo, ecocrítica, etnografia multiespécies, geografia feminista e ecologia queer, mas levando-as para além de seus limites acadêmicos habituais (Kohn 2014; Tsing et al. 2017; Aloi 2018). Contribuições essenciais vêm da antropologia cultural contemporânea, como práticas que coproduzem as condições de possibilidade para que interlocutores se expressem em seus próprios termos (de la Cadena 2021). A virada botânica também se baseia em correspondências inovadoras entre filósofos e fitologistas em torno de concepções sobre o ser vegetal, intencionalidade, inteligência e comportamento ecossocial, a fim de abrir conceitos centrados no humano para a participação de formas de vida mais-que-humanas (Hall 2021; Marder 2013; Coccia 2018; Gagliano 2018). Por fim, a virada botânica reflete as possibilidades de vida e morte no Antropoceno ao reavaliar a linha tênue que divide formas “ambientais” e “humanas”, e que anima as lógicas de consumo e cuidado das presenças botânicas em nossos tempos (Myers 2021).

The Language of Plants: Science, Philosophy, Literature (2017) é resultado de uma série de conferências acadêmicas em que os participantes tentaram ouvir o que as plantas têm a dizer sobre si mesmas, ao mesmo tem em que refletiram sobre as práticas que essa escuta implicaria. Em um nível conceitual, o volume propõe a descolonização do senso comum ocidental, permitindo que as plantas redefinam nossas noções de sensibilidade, sentiência, comunicação e conhecimento. Nesse sentido, o livro faz parte de uma conversa mais ampla nos estudos pós-humanos e multiespécies que tenta descentralizar a figura do humano na teoria e experimentar com epistemologias emergentes em sintonia com a expressão da agência não-humana (Ogden, Hall e Tanita 2013; Meijer 2019). O volume levanta questões produtivas sobre a comunicação não-humana, por exemplo sobre as dimensões e texturas da linguagem, a possibilidade de tradução multiespécies ou a relação entre inteligência e intencionalidade. Essas questões ressoam com as apresentadas por Eduardo Kohn em How Forests Think (2014), já que ambos os projetos argumentam que pensar na expressão não humana pode ter implicações políticas e éticas profundas. Isso, sugerem os editores, “envolve pensar fora das categorias totalizadoras da metafísica ocidental e, portanto, abre caminho para uma abordagem mais aberta, menos instrumental, não apenas das relações sociais, mas também do meio ambiente” (Gagliano, Ryan e Vieira 2017, xv).

Com ensaios de nomes centrais à virada botânica, The Language of Plants contribui para definir o campo, articulando uma agenda de pesquisa coesa sobre a expressão botânica, ao mesmo tempo em que põe em diálogo diferentes áreas do conhecimento. Em sua introdução, os editores apontam pontos de convergência entre os vários campos, oferecendo um mapa de trajetórias investigativas diversas sobre a linguagem das plantas na pesquisa científica, filosófica e literária. Essa demarcação tripartite de campo reflete a amplitude de abordagem e confere uma estrutura narrativa ao volume. Assim, embora o livro seja dividido em três seções — ciência, filosofia e literatura — há uma sensação de diálogo e continuidade nas ideias exploradas ao longo dos capítulos. Por exemplo, o ensaio de abertura de Richard Karban aborda o modo como as plantas respondem a estímulos como luz ou recursos químicos para lembrar, prever e se relacionar com seus contextos imediatos. Esses modos de conceituar a comunicação botânica são expandidos no artigo de Christian Nansen sobre sinais radiométricos e no estudo de Robert Raguso e Andre Kessler sobre intercâmbios químicos botânicas, mas são reformulados na reflexão de Monica Gagliano sobre a cognição das plantas.

Como mencionado anteriormente, a principal contribuição do volume é pôr em xeque o excepcionalismo humano nas teorias de produção e uso da linguagem. Os autores questionam as formas de linguagear as plantas, quer dizer, as práticas ontoepistêmicas que obscurecem ou distorcem a capacidade da vida vegetal de se expressar em seus próprios termos. Através dessa perspectiva crítica, a expressão das plantas é apresentada como uma forma de habitar e criar mundos. Vários autores recorrem a abordagens fenomenológicas da linguagem, que, diferentemente da semiótica francesa e da teoria dos signos de Peirce, pensam a linguagem por uma pragmática encarnada. Em tempos de Antropoceno, pode ser produtivo propor um diálogo com a tradição mais ampla de pensadores latino-americanos que há muito exploram questões de enunciação e silêncio por meio da expressão somática e do desempenho corporal em contextos de violência armada e terror (Taylor 2006; Parpart 2013). Ao longo dos capítulos, a expressão corporal é interpretada como uma manifestação de experiência, memória, sensibilidade, agência e capacidade: uma abordagem metodológica que ressoa com trabalhos como o de Kimberly Theidon (2012) no Peru rural. Através das lentes botânicas, esses são também modos de expressão que resistem à má representação e desafiam narrativas antropocêntricas que retratam o silêncio como uma expressão de passividade retórica. O artigo de Isabel Kranz sobre a linguagem das flores e o de Patrícia Vieira sobre a literatura como escrita vegetal são ótimos exemplos sobre como a comunicação separa humanos e plantas, mas como a vida vegetal tende a quebrar essa compartimentalização por meio de seus corpos. Nesse sentido, o livro oferece ferramentas para pensar nas múltiplas e complexas maneiras pelas quais a linguagem ordinária rouba a agência de certas formas de vida, mas também como estas formas de vida resistem silenciosamente à captura de sua enunciação.

The Language of Plants é um livro que articula uma multiplicidade de abordagens investigativas sobre a expressão das plantas, proporcionando fundamentação conceitual para algumas das questões mais instigantes nesse campo emergente. Embora o volume não tenha um escopo regional específico nem tenha as plantas na América Latina como objeto de análise, é possível encontrar ressonâncias entre a virada botânica e os estudos latino-americanos contemporâneos. Os editores se propõem a aprender a ouvir o que as plantas dizem e, no processo, aprender a construir mundos inclusivos e resilientes. Os estudos decoloniais e subalternos, que investigam as lógicas de violência e representação coloniais, por exemplo, encontrarão ferramentas para ler arquivos históricos além da figura humana. Da mesma forma, os editores propõem um modo relacional e material de compreender a comunicação como coprodução entre diferentes formas de vida, o que Haraway (2016) chama de sympoiesis. Esse modo de conceituar a linguagem também oferece possibilidades para os estudos de comunicação, podendo revitalizar discussões sobre mediação, transculturalização e hibridismo (García Canclini 1989; Martín-Barbero 1993), além de fomentar ainda mais as discussões sobre a política mais-que-humana (de la Cadena 2015; Meijer 2019). Por fim, o livro mostra quão produtivos são os debates transdisciplinares que desafiam pressupostos do pensamento moderno ocidental. Nesse sentido, ele poderia servir como um modelo para futuras publicações de obras coletivas, tanto na virada botânica quanto nos estudos culturais.

Há, no entanto, linhas de investigação que poderiam ser ampliadas, e proponho que consideremos duas delas, já que refletem alguns dos limites conceituais e metodológicos do campo. Primeiramente, o volume tende a estabelecer suas fronteiras analíticas em pensadores e linhagens do norte global: Europa continental, Inglaterra e Estados Unidos. Desenvolver uma abordagem transcultural sobre a linguagem botânica seria, no mínimo, idealista. Mas pensar além da modernidade ocidental implicaria pensar a partir da porosidade de suas margens. Nos estudos culturais latino-americanos, o pensamento fronteiriço tem insistido há tempo na polinização cruzada entre as cosmovisões indígenas, negras e ocidentais (Mignolo 1999). Analisar os cruzamentos, movimentos, hibridizações e transgressões seria particularmente produtivo no que toca a linguagem das plantas, pois foi através do contato socioecológico no Grande Caribe que boa parte vocabulário botânico ocidental foi forjado. Em segundo lugar, embora haja uma forte ênfase na natureza relacional da expressão botânica, faltou mais reflexão sobre o contexto e a experiência dos colaboradores com as plantas e suas linguagens, o que é surpreendente quando pensamos no rápido desenvolvimento dos estudos culturais multiespécies. Abordagens etnográficas ou fenomenológicas, fundamentais para grande parte dos estudos culturais latino-americanos, poderiam ter suscitado questões interessantes sobre a participação real das plantas em nossas vidas cotidianas. Nessa mesma linha, há uma importante tradição de pesquisa etnobotânica na América Latina interessada na interação socioecológica que, articulada com as questões da virada botânica, poderia oferecer insights importantes sobre como nossos mundos foram historicamente coproduzidos por humanos e não humanos (Andel et al. 2013; Bush et al. 2015; Clement et al. 2015).

Expressão botânica na América Latina

Na América Latina, a virada botânica surge como um espaço para pensar de forma transdisciplinar em torno da especificidade socioecológica da região. Os participantes especulam, perturbam e recompõem as interconexões entre humanos e não humanos por meio de uma ampla gama de práticas que vai de envolvimentos artísticos com subjetividades não humanas (como Estado vegetal, de Manuela Infante ou Cartografias invisíveis, de Ana Laura Cantera), discussões etnográficas sobre a comunicação das plantas (Lyons 2020) e estudos de obras literárias que contestam a redução da complexidade botânica (Rosa 2019). Em certa medida, a virada botânica na América Latina pode ser caracterizada por sua experimentação conceitual e prática em torno da especificidade de viver e morrer nesse contexto regional, reconfigurando algumas das ideias centrais de acadêmicos do norte global. Dois livros recentes iluminam essa trajetória: Plant Kin (2019), uma etnografia de Theresa Miller sobre as interações entre plantas e pessoas elaborada a partir da vitalidade amazônica, e The Poetics of Plants in Spanish American Literature, de Lesley Wylie (2020), que discute a expressão vegetal em práticas literárias e artísticas na América Latina.

O livro de Miller é um rico estudo etnográfico de uma comunidade indígena e multiespécie que vive num território cercado pelo esgotamento antropogênico: o cerrado brasileiro. Miller foca na comunicação sensorial da comunidade Canela, incluindo humanos e não-humanos, mostrando como práticas táteis promovem o bem-estar multiespécie e a resiliência às transformações ambientais. Tais relações, segundo a autora, formam a base de uma estrutura de parentesco entre espécies e, especulo, permitem que haja reconhecimento e cuidado mútuo. São mutuamente reconhecidos como seres a serem nutridos e cuidados. O arcabouço teórico do livro é armado a partir do trabalho de vários dos autores de The Language of Plants, o que faz com que se insira nos estudos críticos sobre plantas. No entanto, também podemos lê-lo como parte de uma conversa especificamente latino-americana sobre as relações afetivas entre humanos e plantas, incluindo as etnografias de Kristina Lyons, Vital Decomposition, e Micha Rahder, An Ecology of Knowledges, ambas de 2020. Nesse sentido, é uma contribuição significativa que propõe uma abordagem inovadora para estudar ecologias afetivas localizadas, a partir de experiências sensoriais nas relações multiespécie.

Conforme sugere Karban (2021), a comunicação botânica é uma experiência tátil. Em Plant Kin, o toque surge como uma relação corporal por meio da qual os seres humanos interagem com as plantas e sua expressão, o que permite à autora expandir a definição de linguagem como comunicação simbólica. Miller explora essas formas táteis de comunicação por meio de uma análise detalhada das práticas de jardinagem na comunidade Canela. Miller nos mostra as jardineiras Canela tocando suas plantas como uma mãe toca e aprende sobre seus filhos, e também aprendemos que, por meio de relações táteis, as jardineiras Canela não encontram as plantas como objetos a serem consumidos, mas como parentes que nutrem a comunidade. Esse argumento baseia-se em um compromisso etnográfico de uma década e uma metodologia que a autora chama de sensory ethnobotany (etnobotânica sensorial), lançando mão de ferramentas da fenomenologia sensorial, antropologia afetiva e novas pesquisas sobre comunicação botânica para compor uma perspectiva ecocultural. O estudo também se nutre pesquisas quantitativas e qualitativas e uma análise histórica robusta sobre as ecologias de coexistência social da região, incluindo desde crônicas do século XIX a uma observação participante na jardinagem infantil, oferecendo assim uma infinidade de texturas e dimensões ao leitor.

O que os leitores encontram na investigação de Miller é um mundo complexo de tramas relacionais entre seres humanos e plantas. Em certa medida, os jardins florestais latino-americanos permitem que a autora encontre ali não apenas plantas singulares e seus cuidadores, mas uma ecologia de práticas que constitui mundos. Isso demande uma argumentação complexa, e a estrutura do livro dá conta disso. Os dois capítulos introdutórios trazem um apanhado conceitual a partir da antropologia fenomenológica e uma história comparativa da longa tradição de estudos etnográficos conduzidos na região amazônica. Os capítulos 3 a 5 refletem o extenso envolvimento etnográfico de Miller e oferecem vinhetas instigantes que convidam o leitor a pensar a partir das experiências sensoriais de seus interlocutores: mulheres, crianças e xamãs, além de outros. O capítulo quatro, sobre as práticas de nomear e categorizar plantas, é um ótimo exemplo de como a análise do livro se desenrola, explorando como a observação cuidadosa da emergência de processos de intercambio, comunicação, cuidado entre plantas e seres humanos. O livro termina discutindo a dura realidades que o Antropoceno impôs à região e convida os leitores a conectar noções contemporâneas de resistência ambiental a práticas indígenas de cuidado. Neste trabalho, a comunicação entre seres humanos e plantas é muito mais do que uma provocação intelectual. É um compromisso real de onde novas ferramentas para pensar e produzir mundos sustentáveis podem emergir.

The Poetics of Plants in Spanish American Literature, de Lesley Wylie, também estuda a expressão vegetal e a coprodução de mundos multiespécie na América Latina, mas neste caso, por meio da análise de práticas literárias e artísticas. Atentando para a polinização cruzada de formas botânicas e culturais, Wylie relaciona as linguagens das plantas à poética pós-colonial do dissenso. A autora revela os enredamentos entre a expressão vegetal, imaginários locais sobre a sobrevivência ecossocial, e as raízes do dissenso no pensamento político e moral na cultura hispano americana. A linguagem florida do barroco, por exemplo, ganha outro matiz. Para Wylie, mais que refletir as determinações discursivas do autor, ela aponta para as aberturas estéticas que a vitalidade botânica ofereceu ao pensamento político caribenho. Dessa forma, o livro oferece conceitos para pensar a expressão botânica como detonador de identidades dissidentes e imaginários contra-hegemônicos desde o período colonial até o presente (Wylie 2020, 4).

Ao longo do livro, Wylie presta atenção às descrições e ações por meio das quais as plantas surgem na narrativa, à linguagem metafórica e ao simbolismo no pensamento político e práticas artísticas. Um de seus desafios é delimitar os contornos da cultura pós-colonial latino-americana como um local de análise. Nesse sentido, Wylie selecionou cuidadosamente obras que representam o cânone literário e artístico tradicional, mas incorporou vozes importantes de dissidência. Wylie utiliza a noção de “pensamento vegetal” de Michael Marder para conceituar os modos de expressão não ideacionais e não conscientes que surgem por meio da proliferação de plantas para construir de mundo (Marder 2013). Como sugeriram outros estudiosos da virada botânica, pensar com as plantas é permanecer com o imanente e superar os limites epistêmicos da metafísica ocidental (Coccia 2018). Assim, mais do que explorar as plantas como recursos estilísticos usados por artistas e escritores, Wylie foca no trabalho das plantas na produção de dissenso em paralelo às determinações ideológicas de quem escreve. Na escrita modernista de Andrés Bello, por exemplo, as plantas expressam uma poética anti-agrária que alertam sobre os perigos de sacrificar a vida não humana em prol das economias de plantação. Da mesma forma, a linguagem florida em María, de Jorge Isaacs, possibilita uma leitura feminista do romance.

O livro possui cinco capítulos. Os três primeiros focam em obras que tensionam formas e gêneros narrativos por meio de temas botânicos, enquanto os dois últimos se concentram em obras que exploram as correspondências entre a vida das plantas e a vida humana. O corpus de formas culturais é extenso e diverso, provando que o pensamento botânico é uma força recorrente na produção cultural latino-americana, apesar das diferenças históricas e geográficas. Wylie reconhece que seu argumento deriva de uma longa tradição de obras ecocríticas (Heffes 2013). Ele ressoa, por exemplo, com o ensaio clássico de Marcone (1998) sobre Ciro Alegría e a “novela de la selva”, ou mais recentemente com os estudos de Andermann (2018) sobre a paisagem. As contribuições de Wylie para essa tradição, eu argumentaria, são duas. Primeiro, aprofunda a discussão sobre a presença das plantas na formação das culturas hispano-americanas, considerando os modos generativos de conceituar a vida vegetal presentes na virada botânica contemporânea. Em segundo lugar, o livro defende que as relações entre humanos e plantas na cultura hispano-americana contribui para desestabilizar modos hegemônicos de pensamento e, ao mesmo tempo, para articular discursos, imaginários e estéticas contra-hegemônicas.

É nessa atenção à circulação, produção e descomposição e recomposição vegetal nos modos de pensar e ser que, acredito, esteja a contribuição mais interessante da virada botânica latino-americana. Tanto Wylie quanto Miller sugerem que, se considerarmos as capacidades que as plantas têm de compor, a divisão ontoepistêmica entre o botânico e o humano começa a se desfazer. Os humanos se fazem um pouco mais plantas e as plantas passam a definir o que é ser humano. O interesse pela transgressão ontológica da modernidade não é necessariamente algo novo nos estudos culturais latino-americanos (Viveiros de Castro 2005), mas os livros em questão promovem um diálogo produtivo em torno da expressão vegetal e de formas de conviver na diferença. Em The Poetics of Plants, especificamente, essa ideia é desenvolvida no terceiro capítulo sobre o barroco no pensamento de Alejo Carpentier. Como vários de seus contemporâneos, Carpentier estava interessado nas linhas de força que compõem as identidades latino-americanas. No entanto, Wylie sugere que a questão não foi necessariamente enquadrada em termos de identidades culturais e raciais, como foi o caso de Vasconcelos, por exemplo, mas emergiu em meio à confusão ontológica que recompõe o humano e o não-humano a partir de novas formas de habitar o território. Um enraizamento.

Como defende Wylie, essas proposições pós-humanistas respondem a uma trajetória intelectual latino-americana singular, que se nutre dos legados das cosmologias ameríndias e suas relações de proximidade com o território e suas ecologias. Seguindo a proposta de Wylie, também podemos imaginar como o animismo ameríndio alimenta e molda os imaginários sobre futuros coletivos alternativos no presente. Nesse sentido, a conjuntura latino-americana nos obriga a repensar noções totalizantes como “lógicas do Antropoceno” ou “metafísicas ocidentais”, utilizadas a miúdo pelos participantes da virada botânica no mundo anglófono, em um contexto regional marcado pela hibridez. Da mesma forma, o trabalho de Wylie ilumina visões divergentes de progresso, identidade e sociedade no cânone literário, e também podemos nos perguntar como esses discursos dissidentes podem servir para imaginar novos modos de cuidado com diversas formas de vida em tempos de Antropoceno. Esses livros sugerem que pensar com as plantas pode produzir uma compreensão mais-que-moderna do espaço do comum em um momento em que a linha que divide o plano de fundo (o “natural”) do primeiro plano (nossas vidas cotidianas) começa a desmoronar.

Considerações finais

A virada vegetal nos estudos culturais é uma resposta urgente à devastação ambiental global. Como um campo ainda em formação, essa é uma conversa que reúne uma multiplicidade de indagações sobre a vida e expressão das plantas, ao mesmo tempo em que levanta questões urgentes sobre conceitos-chave ao entendimento da vida humana. Os participantes estão ampliando as lentes analíticas das humanidades e ciências sociais para que novas sensibilidades e práticas de cuidado em relação a formas de vida mais-que-humanas possam ser imaginadas. O volume editado por Monica Gagliano, John Ryan e Patrícia Vieira, The Language of Plants, é uma contribuição importante para essa conversa, pois articula um campo comum e uma base conceitual sólida para pesquisas futuras. The Poetics of Plants e Plant Kin mostram como o encontro entre a virada botânica e os estudos culturais latino-americanos pode ser frutífero. Esses trabalhos também provam que a singularidade da região pode levantar questões instigantes sobre maneiras não modernas de se relacionar com a vida vegetal e, ao fazer isso, contribuir para a virada botânica.

Os pontos de contato entre os estudos culturais latino-americanos e a virada botânica estão ainda em processo de formação. Como um espaço intelectual e criativo do norte global, a virada botânica é um convite para os estudiosos não apenas pensarem sobre aqueles seres que sustentam nossos mundos, mas também para através de seus modos de expressão, a fim de promover mundos sustentáveis e habitáveis. Com uma longa trajetória de investigações preocupadas com noções de hibridismo, mediação, mistura, experiência e expressão, os estudos culturais latino-americanos podem oferecer alternativas às categorias totalizantes das culturas ocidentais. Pensar a partir das plantas na América Latina é pensar através das florestas e seus enredos, pois é através desses encontros que podem emergir novas definições sobre o humano, o social, o botânico e o ecológico. Debruçando-se sobre as realidades materiais impostas pelo esgotamento ecológico impulsionado pelo Antropoceno, esse entrecruzamento de conversas acadêmicas também pode oferecer ferramentas importantes para pensar sobre modos de cultivar mundos resilientes. Para pesquisadores da área dos estudos culturais, como eu, o caráter relacional dos mundos mais-que-humanos também pode ser um terreno fértil para imaginar práticas que promovam inclusão da diferença. A questão, portanto, não é se, mas como as plantas podem nos ajudar a reformular as práticas políticas e éticas que precisamos para reimaginar a América Latina.