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Sobre a mais última moda

Cabra marcada, Sabrina Dias

A reconstrução do caminho teórico percorrido por Byung-Chul Han pode começar com o estudo filosófico do conceito de poder. Após repassar e criticar os autores mais conhecidos, Weber, Foucault, Arendt, ele elabora sua própria noção. Segundo Han, o poder até pode ser violento, mas essa não é sua essência. Esse poder violento, na verdade, é mais frágil do que aquilo que ele denomina poder smart, exercido sem ser percebido, silenciosamente. Esse poder existe através da liberdade e não pela sua repressão: é permissivo e sedutor, não mais disciplinar; ele se passa por liberdade, mesmo que a subverta. É a dominação experimentada como liberdade.1

Desse poder se cria uma nova psicologia, ou melhor, uma psicopolítica. Partindo dessa base do poder psíquico, Han faz um novo diagnóstico do sujeito e do social.

No registro da subjetividade, deixando para trás o negativo, a proibição e o limite, essa psicologia do bem-estar assujeita pela positividade: o estímulo a uma otimização e aumento do desempenho sem fim. O trabalho em excesso e a autoexploração são o novo normal e, junto com eles, torna-se necessário desenvolver uma capacidade multitarefa, o que leva à falta de concentração e ao déficit de atenção. O cansaço é, agora, uma sensação onipresente. Dele, surgem o sofrimento e a dor, que passam a ser analisados e tratados como provenientes de uma frustração individual, sem relação com as estruturas sociais. Ao mesmo tempo, não há lugar para compreender e tratar a dor e o sofrimento adequadamente: de fundo psíquico, as desordens mais frequentes — depressão, burnout, autoculpabilização — são erradicadas com remédios psiquiátricos, anestesiando o sujeito.

É esse sujeito esvaziado, cansado e frustrado que também se expõe aos outros, a postar sua pretensa felicidade e ser subjugado pela transparência total. Ele se rende ao dataísmo: sua vida pode ser toda regida por algoritmos invisíveis, que organizam seus dados. Esse sujeito digital é um panóptico de si mesmo, entregando seus dados em um imperativo pornográfico de transparência. Quando se depara com os outros iguais a si, igualmente cansados, frustrados e presos nas redes, ele se depara com o inferno do igual, uma identidade que expurga toda diferença e o dataísmo abole a liberdade individual.

Com essa nova formação subjetiva, a sociedade passa por uma transformação igualmente radical: da negatividade à positividade, da repressão ao estímulo, da sociedade disciplinar à sociedade do desemprenho, da censura ao totalitarismo informacional, da não-liberdade à liberdade como controle, do ritual ao tempo acelerado e vazio, da exploração à autoexploração, da opressão à depressão, do desemprego ao burnout, do proletariado ao indivíduo, do Outro como ameaça à inexistência do Outro, da revolução à impossibilidade de qualquer mudança estrutural, da narração à contagem e à informação, do Eros à pornografia, do pensamento reflexivo ao burocrático, da diferença à igualdade total. Daí surgem aquelas expressões que Han elabora para classificar o social e que dão nome para alguns de seus livros: “Sociedade paliativa”, “Sociedade do like”, “Sociedade da transparência”, “Sociedade do cansaço”, etc.

Diante desse novo paradigma de poder psíquico e de um novo diagnóstico do sujeito e do social, tanto o biopoder foucaultiano quanto a crítica da exploração de Marx se tornam obsoletos. Ou seja, tanto a perspectiva política quanto a econômica são inadequadas: é a “psicopolítica neoliberal a técnica de dominação que estabiliza e mantém o sistema dominante através da programação e do controle psicológicos”.2 Aqui então passamos da psicopolítica como base da subjetivação e da sociabilidade para a explicação do funcionamento do sistema capitalista, que Han diz que se metamorfoseou em neoliberalismo.

Segundo Han, em uma afirmação supreendente, é o neoliberalismo que “elimina a exploração alheia”, pois “hoje, cada um é trabalhador que explora a si mesmo para sua própria empresa”. Para ele, a autoexploração é a exploração sem dominação, é uma servidão voluntária. Assim, no mundo atual, “não existe um proletariado ou uma classe trabalhadora que seria explorada pelo proprietário dos meios de produção. (…) O sistema neoliberal não é mais um sistema de classes em sentido estrito”.3 Declara então que o sistema não mais se articula em estratos antagônicos, o que significa o fim da luta de classes e até mesmo da divisão da sociedade em classes. Resenhando a obra de Negri e Hardt, ele escreve que eles “constrõem o seu modelo teórico com base em categorias historicamente ultrapassadas, como classe ou luta de classes”.4 Na verdade, a luta das classes teria sumido do social e se alojado na própria subjetividade, ela “também se transformou em luta interior consigo mesmo”.5

A despeito da intenção de Han, esse diagnóstico ao qual ele chega é cúmplice do sistema que pretende criticar. Sua teoria se rende ao neoliberalismo ao aceitar de forma sub-reptícia que a sociedade é apenas um punhado de indivíduos justapostos. Partindo dessa premissa é que ele cai no psicologismo: a psicologia individual, ou a dominação psicopolítica, é capaz de explicar o funcionamento da sociedade. Subjacente a sua teoria social está a negação de qualquer agência coletiva e mesmo individual: todos são manipulados por dispositivos tão inteligentes que se tornam apenas marionetes do sistema. Isso seria a negação absoluta de qualquer tipo de sociabilidade que não seja administrada e regulada, com o consentimento e o desejo daqueles que são controlados. O que vale para um indivíduo médio genérico pode ser generalizado para explicar o comportamento de toda a sociedade, como se os algoritmos nos dessem a senha para decifrar o social.

Em Han, o social está comprimido entre o psicologismo e a filosofia. O primeiro é o fundamento para compreendê-lo, a segunda elabora os conceitos adequados para essa compreensão. Mas esses conceitos que explicam o funcionamento social são desenvolvidos em poucas linhas, trata-se de uma totalidade muito mal articulada, que serve apenas para que nosso entendimento da sociedade fique turvo. Passa-se da ontologia ou da antropologia para a sociologia como num passe de mágica, esbanjando fórmulas que podem ter um apelo para aqueles que se encantam com a retórica da radicalidade e do pessimismo, mas que não tem nada a oferecer em termos de resistência, apenas a contemplação de uma humanidade alienada da cabeça aos pés. Essa sociologia da ultraalienação — Han não gosta do termo, mas ele parece casar bem com suas ideias —, pressupõe que os seres humanos são meros receptáculos, suportes de um processo que paira acima deles e que completa o circuito por meio da manipulação total, ou seja, parte da ideia de uma homogeneização total da sociedade.

Com essa redução do social ao psíquico e filosófico, surge uma espécie de sociologia freestyle. Como a sociedade é um todo homogêneo, basta elaborar alguns conceitos que explicam o funcionamento de toda e qualquer sociedade, conceitos geralmente precedidos de frases como “vivemos em uma sociedade em que…” ou “hoje impera em todo lugar…” seguidos de alguma frase bombástica surgida da impressão de Han sobre a sociedade. Desse impressionismo, surge outra dificuldade de Han: lidar com a sincronia. No seguinte sentido: os processos que ele descreve podem bem ser verdadeiros, mas certamente não para todos os indivíduos e sociedade, como ele pretende. Em nenhum momento há uma ressalva de que esse diagnóstico vale para certo grupo, para determinada classe ou para tal e tal sociedade. É como se fôssemos do psicologismo ao sociologismo em um salto, sem mediações, em uma dialética das mais inadequadas.

Partindo dessa teoria, a noção de resistência, mobilização, agência coletiva, luta etc. estão mortas. Ou seja, a cumplicidade de Han com o sistema fica ainda mais evidente quando se percebe que a política está ausente de sua obra. Por certo, ele diria que existe uma política na dominação psicológica, mas falamos aqui da política como ação coletiva e transformadora. Essa ausência da política é o outro lado de sua teoria segundo a qual todos são manipulados psicopoliticamente. Nada aparece como uma escolha ou um conjunto de escolhas, mas como um conjunto de estruturas inerciais que negam toda e qualquer possibilidade de agência, a não ser aquela que exista para a manutenção do sistema. Não há sujeito político e o sistema não permite mais qualquer forma de resistência: “a autoexploração é uma exploração sem dominação, pois ela acontece de modo totalmente voluntário. E é porque fica sob o signo da liberdade que ela é tão efetiva. Nunca se forma um coletivo, um “nós”, que pudesse se rebelar contra o Sistema”.6 Não falamos sequer em revolução, palavra que, por motivos psíquicos (sujeito depressivo, consumista, esgotado…), é banida do vocabulário do agudo pessimismo sociológico de Han: “O dispositivo de felicidade neoliberal nos distrai do sistema de dominação existente ao nos obrigar apenas à introspecção da alma. (…) Assim, a psicologia positiva sela o fim da revolução”.7

Em alguns poucos momentos o tema da política parece estar prestes a surgir, como no final de um dos capítulos de Infocracia, mas logo essa expectativa é frustrada. Para piorar: suas referências críticas à política não raro são acompanhadas de citações de Carl Schmitt. Algumas falando sobre a importância do mistério, do arcano e do oculto na política, contra a exigência de transparência e outra que serve para chocar, mas transmite bem a leviandade com que Han usa suas referências: “Tanto aos amigos de Facebook como aos concorrentes falta a negatividade que distingue o ‘amigo’ do ‘inimigo’, no sentido de Carl Schmitt”.8 Bom, acho que prefiro meus amigos de redes sociais mesmo…

A negatividade absoluta que ele pretende opor a um sistema de positividade absoluta é apenas uma reação imediata e simetricamente oposta: tudo e todos são denunciados, não há mais saída. Mas essa posição nos parece ser complacente com o sistema que pretende criticar, pois não encontra as brechas pelas quais esse sistema poderia ser curto-circuitado. Afinal, para Han, o que falta não é luta, mas, sim, a empatia, o respeito, a discrição para restabelecer o direito de cidade do Outro, mas em momento algum ele fala da ascensão da extrema-direita e da necessidade de combatê-la. Tudo que é político é dissolvido em problemas individuais, psíquicos, filosóficos ou, no máximo, éticos.

Fora da política, as soluções de Han oscilam entre as puramente individuais e as apocalípticas. Ele fala da necessidade de uma revolução do tempo, de um renascimento do outro, do silêncio, do anonimato, do retorno à Terra, ao jardim, à meditação. Sua filosofia se revela finamente uma mística da terra, uma veneração do silêncio e jardim, uma redenção da natureza, um eros do pensar, o cultivo do mistério e do enigma, enfim da indiferença ao mundo9 — enquanto isso o tempo corre lá fora e com ele as guerras, a miséria, a fome, as injustiças…

De outro lado, ecoando um dos piores momentos de Heidegger, ao ser confrontado por um entrevistador com a frase de que a salvação é o apocalipse, ele responde:

Isso não vai longe o bastante. Uma quebra da bolsa não é ainda nenhum apocalipse. É um problema interno do sistema, que deve ser rapidamente resolvido. E o que já conseguiram 300 ou 500 pessoas que rapidamente são levadas pelos policiais? Esse ainda não é o Nós que precisamos. O apocalipse é um acontecimento atópico. Ele vem de algum outro lugar.10

Nem sequer a filosofia teria mais o poder de projetar algo que vá além do atual estado de coisas: “Ela [a filosofia] se tornou parte do inferno do Igual”.11

Em suas obras, encontramos inúmeras referências a Heidegger (tema do doutorado de Han), Schmitt, Foucault, Agamben, Derrida, Hegel, Adorno etc. No entanto, a única vez que Marx aparece com uma referência explícita, no início de seu livro Psicopolítica, é para contestá-lo, misturando de forma confusa trechos da Ideologia alemã, dos Grundrisse e de O capital. Han diz que a contradição entre forças produtivas e relações de produção não pode ser superada,12 pois o capitalismo iria sempre postergar a resolução dessa contradição. Então, não faz mais sentido direcionar forças para o estudo das contradições econômicas, já que foram neutralizadas. Ou seja, soma-se ao déficit político em sua obra também um econômico. Além das implicações políticas já mencionadas acima, isso traz também uma análise bastante reacionária que ele faz da tecnologia.

Han aceita sem muita crítica o kulturpessimismus conservador e tecnófobo de certa tradição alemã, especialmente Heidegger e Schmitt. Lamenta que o trabalho manual, o pensar e o fazer tenham sido substituídos pelo toque no smartphone. Crítica e-books, reproduções fotográficas, selfies, internet e inteligência artificial. A certa altura, Han diz que precisamos pensar o digital, mas é exatamente o que ele, em sua ojeriza, não faz. Esse pensamento precisaria de uma abertura que ele não exibe em momento algum. Pior ainda, esse rechaço da tecnologia é feito em nome de uma nostalgia do passado. Veja-se o primeiro parágrafo do capítulo “Nomos da Terra” (título de um livro de Schmitt), no livro No enxame. Nele, Han faz o elogio da Terra, defendida por Heidegger e Schmitt, contra o digital. A terra é a firmeza, o palpável, o natural etc. Seria preciso dizer também que esse tipo de asserção serviu como mote para defender o lebensraum, o povo da terra, o direito telúrico, enfim, a raça superior. Sobre esse reacionarismo velado, vejamos a seguinte passagem: “A mão de Heidegger defende resolutamente a ordem terrena contra a ordem digital. (…) O pé de Heidegger representa o aterramento. (…) A coisa de Heidegger é uma coisa do mundo”.13 Foi essa mesma mão, esses mesmos pés, esse intelecto e esse ser-aí que defenderam o telúrico, o manual, o natural e… o nazismo como uma volta à origem. É importante pontuar isso, porque essa defesa que Heidegger faz da Terra é tudo menos politicamente desinteressada, mesmo que esteja sob o véu de uma linguagem poética e de um quase hermetismo.14

Para além dos temas da obra de Han, seu estilo também merece um comentário mais detalhado. Existe uma indistinção entre pressuposição e posição que embaralha todo seu discurso. Por exemplo, quando ele escreve: “Uma sociedade que se sujeita ao controle e à vigilância em nome da segurança se deteriora em totalitarismo”. Ora, é de fato o mesmo ser vigiado por um Estado totalitário e se comunicar por meio de uma rede? É nessa indistinção que seu aparente radicalismo tenta conquistar o público. Um amontoado de clichês e frases de efeito, que funcionam como slogans distópicos prontos para serem inseridos em uma rede social, também fazem parte do jogo: “Consumo e revolução se excluem”; “Mesmo quando se reúnem, não formam uma massa, mas enxames digitais que não seguem um Führer, um líder, mas seus influencers”; “A internet se revela um panóptico digital”; “Se o sanatório mental desaparece, é porque a loucura se tornou normalidade”; “Mídia é dominação”; “A democracia é lenta, prolixa e tediosa”; “Em filmes e em jogos de computador, entregamo-nos por completo ao pornô da violência”; “neoliberalismo transformou o cidadão em consumidor”; “a sociedade da transparência funda uma democracia de espectadores”; “não consumimos coisas, mas emoções”.15

Depois de ler três livros do autor, a impressão é que os procedimentos, temas e técnicas argumentativas se repetem em sequências distintas, como se fosse um algoritmo preparado para escrever mais um livro com as mesmas ideias. A ordem desses temas é intercambiável e todos eles aparecem em quase todos os livros. Ao lermos um livro de Han, temos a impressão de termos lidos quase todos, pois a linguagem, o encadeamento e até mesmo os conceitos se entrelaçam de formas parecidas, até mesmo os exemplos se repetem, como se eles comprovassem irrefutavelmente sua teoria.

Os ingredientes: os mesmos exemplos (a Alemanha dos anos 1980 e sua sublevação contra o censo, a loja de cubo de viro da Apple em Nova Iorque, os influencers, o partido pirata, o filme Melancolia de von Trier…); as mesmas palavras, formadas com a adição do prefixo hiper e repetidas à exaustão: hiperatividade, hipervisibilidade, hiperculturalidade, hipercapitalismo, hipercomunicação etc.; até mesmo as referências se repetem — para falar de narração, Benjamin; para falar de política, Schmitt; para falar de fotografia, Barthes e Sontag; para falar da dor, da técnica e do pensar, Jungüer e Heidegger; para falar do Outro, Lévinas; para falar do niilismo, Nietzsche; para falar do desejo e do erotismo, Baudrillard e Bataille; para a crítica da democracia e da doxa, Platão; para falar das massas, Le Bon; para falar das informações, Luhmann. Em certo momento, ele repete uma frase inteira.16 As linhas argumentativas também voltam: o uso recorrente da etimologia e da tentativa de atualizar a crítica de autores antigos. Por exemplo, em Infocracia, usa Platão para criticar a democracia atual. É uma glosa exagerada e levemente adaptada aos tempos atuais. Como se alguém escrevesse no ChatGPT: “Por favor, você poderia atualizar a crítica de Platão à democracia para os tempos atuais? Ou: como soaria a crítica platônica hoje?”.

Os conceitos sucedem uns aos outros, mas sem elaboração. Cada época tem a moda que lhe serve. Assim como Bauman, o estilo de Han é ensaístico e impressionista. Não estamos lidando nem com uma sociologia empírica, baseada em dados, pesquisas, entrevistas, nem com uma especulação bem desenvolvida e amarrada. Perdemos o que há de melhor nas duas pontas. O resultado: livros pequenos com capítulos curtos, às vezes de três ou quatro páginas. Isso não seria um problema em si, desde que não apontasse para o real problema: uma teoria que apresenta um grau mínimo de mediação ou desenvolvimento. A opacidade do discurso filosófico é também resistência contra uma linguagem kitsch, que degenera em simples slogans. Essa opacidade não significa hermetismo, mas uma forma de repelir a degradação social que se impõe ao uso da língua.

Essa filosofia da pura negatividade também é uma filosofia que se alia ao sistema, é uma pura contemplação de nosso desastre. Ficamos com a pior parte do marxismo ocidental, o pessimismo cultural; a pior parte do heideggerianismo, o passadismo, a mística da terra e a salvação pelo apocalipse; a pior parte da teoria social, um sociologismo abstrato e selvagem e uma crítica reacionária ao ser humano massificado; a pior parte do romantismo, uma tecnofobia injustificada; a pior parte do nietzscheanismo, uma crítica aristocrática e unilateral da modernidade e o anúncio catastrófico do medíocre último homem. É um humanismo requentado que pode servir bem a uma pequena burguesia com crises existenciais ou uma alta burguesia culpabilizada, mas não serve para transformar a sociedade.