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O olhar amoroso de Wim Wenders1

Ana Calzavara

É bem o que andam dizendo. Dias perfeitos, de Wim Wenders, mostra o cotidiano de um limpador de banheiros em Tóquio, tem uma duração de duas horas e pouco, o protagonista fala pouquíssimo, e o resultado é muito bonito.

Claro que é bom para quem gosta desse tipo de filme, com zero de adrenalina. Gostei bastante, mas não fiquei maravilhado como as pessoas que tinham me feito a recomendação.

Alguma coisa me deixou de pé atrás.

Começo pelo mais óbvio. A vida de um limpador de banheiros nada tem de invejável. Em Tóquio, dá para receber algum dinheiro, e o protagonista vai de carro a cada um dos banheiros públicos que deve limpar. Mesmo assim, ele vive num lugar que não dá inveja a nenhum bairro pobre de São Paulo, e o seu dia a dia, objetivamente, é de dar dó.

Aí vem a jogada do filme. É talvez preconceito, sugere Wim Wenders, pensarmos que um limpador de banheiros leve uma vida vazia e explorada.

Não, não. Basta ser zen. Basta ter uma mentalidade meio de monge. Falar pouco, não reclamar de nada e apreciar cada raio de sol, cada ramo de árvore, cada criança brincando no parque.

Isso é possível, claro; e há muita sabedoria em viver assim. Mas calma lá; sou dos que desconfiam de um pesado subtexto ideológico a orientar essa espiritualidade toda. Não acho nada inocente dizer a um favelado que ele deve aprender a ser feliz com aquilo que tem.

Há um segundo problema na idealização dessa vida de limpar banheiros. É óbvio que, mesmo se o personagem do filme consegue realizar-se no seu ofício, nada garante que ele terá seu emprego para sempre.

Sua substituição por um robô ou um emigrante, uma política qualquer de cortes na limpeza pública, um súbito aumento de seu custo de moradia, um problema de saúde qualquer (nosso limpador tem dentes perfeitos, por exemplo), podem reduzir a migalhas, do dia para a noite, sua vida ordenada e pacífica.

O filme de Wim Wenders não se preocupa com essa eventualidade; Eu, Daniel Blake, obra de Ken Loach baseada em fatos reais, mostra como é fácil, mesmo num país desenvolvido, declinar da pobreza para a completa precariedade e para a mendicância.

Mas eu estou provavelmente exagerando na minha crítica a Dias perfeitos.

O filme recomenda a sabedoria de nos concentrarmos no aqui e no agora. Ao mesmo tempo, acumulam-se os sinais de instabilidade nesse projeto.

Apesar de ligado no presente, e de obedecer com serenidade à sua rotina, o herói do filme conseguiu criar para si mesmo um nicho no passado. A caminho do trabalho, ouve músicas dos anos 1970 e 1980 num toca-fitas. Não faz ideia do que seja o Spotify e, embora tenha de usar um celular, dispensa tranquilamente o computador.

Tira fotos de árvores, ou melhor, da mesma árvore, com uma câmera daquelas antigas, de filme que é preciso mandar revelar.

Trata-se de um cotidiano preservado como numa bolha; o protagonista fala o mínimo possível, construindo uma vida interior que lhe permita expiar alguma falta do passado.

Mas à sua volta as coisas não param de acontecer. Uma casa é demolida; a morte passa por perto; um morador de rua parece aprofundar-se na demência.

Quanto tempo, pergunta o espectador, o limpador de banheiros vai resistir? O filme mantém seu interesse na medida em que cada dia, mesmo parecendo igual ao anterior, traz suas pequenas alterações, suas alegrias e suas perdas.

Aqui surge a maior beleza de Dias perfeitos. Por mais irreal que seja esse elogio da simplicidade, uma coisa surge no filme com uma força irresistível.

Não há pessoas ruins naquele mundo mecanizado, pobre e feio.

Em todo desconhecido no parque, em qualquer atendente de lanchonete, na jovem entediada de cabelo cor-de-rosa ou na turista que não sabe fechar a porta do banheiro, é possível encontrar uma mesma humanidade, como se cada pessoa fosse uma folha presa à mesma árvore, balançando ao mesmo vento e brilhando ao mesmo sol.

Esse olhar amoroso, que lembra tanto o de Asas do desejo outro grande filme de Wim Wenders, tem uma verdade que transcende o irrealismo desse retrato de uma vida pobre e sem futuro. Não é a verdade dos fatos, mas a verdade do coração.