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As línguas e o riso da Medusa

Christiana Moraes

Quando, no século XXI, um procurador da República, no caso, Anderson Santos, classifica o feminismo como um “transtorno mental” e diz acreditar que o comportamento deveria constar da CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde); quando uma juíza estadual, Joana Ribeiro, e uma promotora de justiça, Mirela Dutra Alberton, tentam impedir que uma menina de 11 anos faça um aborto legal depois de ter sido estuprada, devemos acender um sinal de alerta.

O movimento feminista parece não ter sido ainda entendido e muito menos absorvido. No livro Feminismos: uma história global (Companhia das Letras, 2022), a historiadora britânica Lucy Delap lembra que o “termo ‘feminista’ foi usado no final do século XIX para substituir a ideia de ‘movimento das mulheres’ por uma identidade mais ampla, que fosse aberta a ambos os sexos”. Assim como o feminismo, o machismo também está aberto para todos os sexos, o que explica a adesão de mulheres a um movimento que retira não só seus próprios direitos, mas os direitos de outras minorias; afinal, é isso que o machismo e o patriarcado fazem. Portanto, como diz bell hooks, não podemos pensar em separação de sexos para a adesão a esses movimentos; assim como há homens que lutam ao lado das mulheres, há mulheres que participam da política de dominação como perpetradoras desse movimento.

Hélène Cixous vai mais longe e afirma que contra as mulheres os homens “cometeram o maior dos crimes: eles as levaram, insidiosamente, violentamente, a odiarem as mulheres, a serem suas próprias inimigas, a mobilizarem sua imensa potência contra elas mesmas, a seres executoras da obra viril deles”. A atuação de Joana Ribeiro e de Mirela Alberton no caso do estupro da menina de 11 anos parece comprovar na prática o que disse Cixous.

Nadando contra essa maré de atraso, que invade até mesmo o judiciário, órgão para o qual todos deveriam ser iguais perante a lei, não só no Brasil, mas também fora dele, as mulheres de um modo geral vêm ganhando cada vez mais voz e postulando um lugar ao sol, ainda que com certa demora. Parte desse postulado se faz por escrito, pois, segundo Cixous, “é escrevendo, a partir da e em direção à mulher, e enfrentando o desafio do discurso governado pelo falo, que a mulher armará a mulher num lugar diferente daquele reservado a ela no e pelo símbolo, ou seja, o lugar do silêncio”.1

Se durante séculos as mulheres não falaram, não foi porque não soubessem o que dizer, mas porque ninguém as queria escutar. Se não escreveram, é porque às mulheres o acesso à educação não era fácil, quando não proibido.

Os tempos mudaram e surge um interesse em saber o que foi silenciado. No Brasil, esse interesse parece ter crescido de forma acelerada, principalmente nesses últimos anos de combate às minorias, entre elas, as mulheres.

Muitos livros sobre mulheres, e escritos por mulheres, foram publicados nesse período; entre as publicações dessa natureza, destacaria dois lançamentos recentes: Raízes feministas em tradução (Edições Câmara, 2022), organizado por Ana Maria Chiarini, Andréia Guerini e Karine Simoni, que traz uma antologia de textos “protofeministas” inéditos escritos por mulheres na Península Itálica entre os séculos XIII e XIX. Entre as autoras, caberia citar Compiuta Donzella, que, no século XIII, denunciava a dominação patriarcal e a falta de liberdade das mulheres para escolher seus parceiros em um poema: “[…] cada donzela na alegria mora;/ e em mim, abundam tormentos e lágrimas.// Meu pai me colocou no sofrimento/ e ainda me mantém em grande dor:/ doar-me quer à força a um senhor,// e disso não tenho desejo nem vontade […]” (tradução de Andréia Guerini e Nicoletta Cherobin).

Compiuta poderia ser lida pelo procurador Anderson Santos, pela juíza Joana Ribeiro e pela promotora Mirela Dutra Alberton. Se eles absorvessem os versos da poeta, talvez pudessem repensar suas ideias: a do procurador, em defesa do que chamou de “débito conjugal”, pelo qual a mulher teria uma “obrigação sexual” a cumprir em relação ao parceiro, e a da juíza e da promotora, sobre a negativa de interrupção da gravidez resultante de estupro.

Não foi à toa que tentaram calar as mulheres por tanto tempo. Citaria, por exemplo, outro livro reeditado agora, publicado pela primeira vez em 1927, Virgindade inútil: novela de uma revoltada (Carambaia, 2022), de Ercília Nogueira Cobra, para entender o porquê desse silenciamento. Cobra se definia, muito ousadamente, como “livre-pensadora”, e a partir dessa condição discutia “as verdades tidas como indiscutíveis, tais como os dogmas religiosos, a crença na inferioridade da mulher e a diferença da moral sexual para os sexos”,2 como se lê em um dos paratextos dessa nova edição assinado por Maria Lúcia de Barros Mott.

Ercília Nogueira Cobra talvez pudesse dialogar com o procurador, o qual afirma, no século XXI, que

o progressismo nos convenceu que o cônjuge não tem qualquer obrigação sexual para com o seu parceiro, levando muitos à traição desnecessária, consumo de pornografia e ao divórcio. Esse é um drama vivido muito mais pelos homens diante das feministas ou falsas conservadoras.3

Num (im)provável diálogo, Ercília Cobra diria, no século passado, que “o aviltamento da mulher que teve a audácia de buscar prazeres fora do lar doméstico e satisfazer ao acaso das suas aventuras um desejo que os homens satisfazem sem empecilhos, quando e como lhes apraz, ainda não deu resultados práticos”.4 De fato, “a pecha de perdida e adúltera pela sociedade lançada contra as rebeldes não conseguiu diminuir-lhes o número”.5 Parece que se Ribeiro ouvisse ou lesse mais sobre mulheres entenderia que eles também não têm cumprido sua “obrigação sexual” faz tempo.

Se o diálogo entre eles prosseguisse, a afirmação do procurador de que “a feminista normalmente é uma menina que teve problemas com os pais no processo de criação e carrega muita mágoa no coração” ou “desconhece uma literatura de qualidade e absorveu seus conhecimentos pela televisão e mais recentemente pela internet”,6 seria respondida ironicamente por Cobra, em sua novela satírica sobre a fictícia e brasileiríssima Bocolândia, que, realmente, a mulher “de coisas práticas não entende patavina, pois foi educada num colégio de irmãs. Ensinaram-lhe a história dos judeus, fizeram-na decorar o catecismo, obrigaram-na a ir de madrugada e em jejum calejar os joelhos na igreja. E ao fim de oito anos de clausura devolveram-na para casa tão ignorante como ao entrar, porém mais cheia de superstições e nervosa”.7

É bom atualizar o discurso para não ser pego de surpresa pelas línguas e pelo riso da Medusa, como fala Cixous.