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Mutações teratológicas ou O ornitorrinco 2.0

Homenagem aos 50 anos da Crítica à razão dualista, de Chico de Oliveira

Em virtude dos cinquenta anos da Crítica à razão dualista,1 de Chico de Oliveira, o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) e o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), em parceria com o Departamento de Ciência Política da USP e a editora Boitempo, realizaram, nos dias 26 e 27 de outubro, o seminário A fortuna crítica de Chico de Oliveira. O evento contou com a participação de André Singer, Ermínia Maricato, Wolfgang Leo Maar, Joana Barros, Ruy Braga e Sara Freitas; teve mediação de Bernardo Ricupero e Ronaldo Tadeu e coordenação de Camila Góes. Estimulado por esse fértil debate e pela ocasião propícia, pretendi, com o texto e os vídeos a seguir, juntar-me modestamente aos colegas na celebração do trabalho e pensamento de Chico.


Nunca fui grande leitor de Chico de Oliveira, preciso confessar. Como todos nós, sempre o admirei como intelectual e como figura pública. Mas sua obra — para mim, estudante de filosofia, mais voltado ao “céu das ideias” — nunca me tocara particularmente. Sei que não há nada menos apropriado para se iniciar uma homenagem do que o sabor agridoce dessa confissão, mas é a mais pura verdade.

Embora nunca tenha sido particularmente tocado pelos textos de Chico de Oliveira — naturalmente, por minha culpa e não de seus livros, clássicos do pensamento sociológico brasileiro —, devo dizer que fui profundamente tocado por uma de suas falas, que ainda hoje ecoa em minha cabeça.

O ano era 2016, vivíamos a ressaca do golpe2 e amargávamos uma derrota acachapante nas eleições municipais, em especial na cidade de São Paulo, em que Fernando Haddad não apenas não se reelegera para um segundo mandato como tomara uma surra do estreante João Dória, eleito ainda no primeiro turno.

Encorajado por alguns colegas, havia decidido produzir um vídeo dos “Intelectuais pelo Fora Temer”,3 e pus-me a visitar a casa de boa parte da intelligentsia paulistana; com uma câmera na mão e com a audácia que só a pouca idade e uma cabeça pouco lustrada pode oferecer. Tais andanças me conduziram, em dado momento, ao apartamento de Chico de Oliveira, no bairro das Perdizes, ao lado do Colégio Baptista, se não me falha a memória.4

Chico já estava com a saúde debilitada5 por conta da hemodiálise, fisicamente cansado, com a voz fraca e arquejante, mas ainda lúcido e espantosamente afiado. Assim que cheguei, ele se sentou num confortável sofá preto, do qual não tive coragem de movê-lo ao longo de toda a filmagem. Rapidamente, acomodei-me numa poltrona, que fazia ângulo com o sofá, catei alguns livros da mesa de centro — que me serviram de apoio para a câmera — e pus-me a gravar, bastante improvisadamente,6 nossa conversa.

Conversamos por volta de duas horas. Lembro-me de ter saído de lá com um misto de sensações: felicíssimo e motivado, por um lado; mas desconcertado e pensativo, por outro. Apesar de aderir imediata e entusiasticamente à nossa campanha pelo Fora Temer, Chico não parecia atribuir grande importância ao embate institucional que estava sendo travado naquele momento contra o Governo Federal. Insistia, ao contrário, que era preciso “olhar para a sociedade” e aludia a certa “cegueira da luta política”, na qual muitos de nós estávamos implicados.

Não se tratava, naturalmente, de menosprezar a política institucional, mas de sinalizar a um só tempo seus limites e seu enraizamento numa base social cuja dinâmica, aos olhos de Chico, estava sendo ignorada ou mal compreendida. Reassisti incontáveis vezes ao vídeo de nossa conversa, ao longo da montagem do filme-manifesto. A cada vez que o fazia, o diagnóstico de Chico me parecia mais lúcido e convincente: “o Brasil está mais conservador porque tem o que conservar”.7 Sem deixar de considerar fatores históricos e geopolíticos, presentes em sua análise, o sociólogo buscava, no entanto, relacionar o aumento do conservadorismo na sociedade brasileira ao sucesso das políticas econômicas dos governos petistas — sobretudo Lula 1 e 2.

Francisco de Oliveira, outubro de 2016.

A mim e a muitos colegas, entretanto, esse parecia o retrato de um mundo invertido: como era possível que, sob um governo de esquerda (ou centro-esquerda), a população se tornasse mais conservadora? E se tornasse mais conservadora justamente em virtude do sucesso (e não do fracasso) de suas políticas sociais? A tese parecia contrariar a intuição. O descompasso entre os termos da análise era desconcertante e de difícil assimilação. No entanto — e Chico tinha razão em afirmá-lo —, não havia contradição nenhuma entre eles. Quer dizer, do aumento da qualidade de vida da população (impulsionado sobretudo pelo consumo) não se deduz, necessariamente, a produção de subjetividades, por assim dizer, “progressistas”. O nexo entre uma coisa e outra era artificial e, até certo ponto, ingênuo — era isso que Chico estava nos dizendo, no fundo.

Entretanto, mais do que nos mostrar que o nexo entre uma coisa e outra era frágil, Chico afirmava que se dera exatamente o oposto daquilo que supunha esse raciocínio simplório, isto é, o enriquecimento relativo da população, sob o lulismo,8 não apenas não a tornara mais progressista como, ao contrário, fizera dela mais conservadora — justamente porque agora ela tinha o que conservar. Lembro-me até hoje da sensação de espanto — típica de quando nos “cai uma ficha” — que tomou conta de mim quando compreendi exatamente aquilo que Chico havia me dito em seu apartamento — e que, na ocasião, acreditei ter compreendido, mas compreendi apenas parcialmente, ou simplesmente não compreendi.


Uma última volta no parafuso que Chico havia cravado em minha cabeça foi dada algum tempo depois por Mano Brown, quando assisti a uma entrevista do rapper à Rádio Brasil Atual. Na ocasião, Brown justificou o aumento do conservadorismo na sociedade brasileira na última quadra de maneira muito similar a Chico no vídeo. Afirmou o músico que “no governo Lula”, o morador da periferia “comprou uma moto, comprou um carro, comprou um celular caro, comprou tênis caro e as coisas aconteceram”, mas “agora ele quer trancar (…) tudo atrás de um cadeado e pôr a polícia na porta [de casa] para [se] defender”.9

Mano Brown, 2017.

Na boca do artista, a tese do sociólogo não apenas era corroborada como ganhava novos contornos. Brown, observador atento dos movimentos e contradições do tecido social das periferias das grandes metrópoles do país, nos mostrava que era impossível dissociar o enriquecimento relativo da população e seu crescente conservadorismo do problema da segurança pública. Quer dizer, se Chico estava certo em afirmar que “o Brasil está mais conservador porque tem o que conservar”, estava mais certo ainda ao afirmá-lo num cenário em que os índices de violência urbana não apenas não haviam melhorado como, em muitos casos, haviam piorado significativamente com o PT no poder.

“O Brasil está mais conservador porque tem o que conservar” — nos diz Chico. Mas o Brasil está mais conservador também porque teme perder aquilo que adquiriu e que antes não possuía (sobretudo bens de consumo), por conta de furtos, golpes, arrastões, assaltos, sequestros, etc. — nos diz agora Mano Brown. Em linhas gerais, penso que Chico e Brown compartilhavam um mesmo diagnóstico a respeito dos anos de governos petistas.

Olhando em retrospecto, penso que boa parte da frustração que pareceu mover Mano Brown em seu discurso crítico ao PT — em pleno comício a favor da candidatura de Haddad, no Rio de Janeiro, em 2018 — pode se traduzir pelo fato de que os intelectuais do partido não haviam endossado (ou haviam simplesmente negligenciado) o diagnóstico de Chico; e, consequentemente, seus governos não haviam oferecido uma solução para o problema que ele evidenciava — caro, no entanto, a uma parcela expressiva da sociedade brasileira, agora seduzida pelo discurso bélico e violento de Jair Bolsonaro.


O ponto de chegada (ou, talvez, o próprio horizonte) dessa breve reflexão — despertada pela frase poderosa de Chico de Oliveira — parece-me ser a questão da segurança pública, incontornável, em meu ver, para se compreender no detalhe a ascensão do bolsonarismo no Brasil dos últimos anos — ou a “mutação teratológica do ornitorrinco”, como se referiu ao problema, recentemente, Paulo Arantes.10 Para essa questão, no entanto, penso que a esquerda brasileira nunca deu a devida importância.

Em geral, a esquerda brasileira mais tradicional, forjada na luta contra a ditadura e versada num marxismo mais ou menos ortodoxo, tende simplesmente a afirmar que “segurança pública não é uma pauta de esquerda”. Essa frase, aliás, a ouvi de um dos quadros mais lúcidos do PT — alguém por quem tenho a mais profunda e sincera admiração — e, assim como a frase de Chico, marcou-me profundamente. Marcou-me não apenas porque me pareceu ser a expressão de um pensamento profundamente dogmático — para a esquerda, então, só importaria a relação entre capital e trabalho (e, ainda assim, vista em perspectiva bastante estreita)? —, mas também porque explicitava, em meu ver, nossa tradicional falta de sensibilidade com a questão racial.11

Quando tive oportunidade, perguntei ao brilhante Luiz Eduardo Soares o que ele achava de uma afirmação como essa: afinal, segurança pública é (ou deveria ser) uma pauta da esquerda? A resposta que o antropólogo deu foi certeira, esclarecedora e pedagógica.12 Desenvolvê-la aqui, no entanto, nos levaria longe demais, e certamente extrapolaria o escopo e as pretensões deste texto.

Luiz Eduardo Soares.

O raciocínio que pretendi desenvolver aqui, a partir da frase de Chico de Oliveira — já temendo, a esta altura, ter exagerado nas digressões e no aspecto memorialista do texto —, guarda alguma afinidade, penso, com a fala de Paulo Arantes acima mencionada — que desconhecia quando comecei a rascunhar este artigo, mas que tive a sorte de encontrar ao longo de sua escrita.13 O ornitorrinco 2.0 — uma evolução monstruosa do “animalzinho simpático e ao mesmo tempo grotesco” descoberto por Chico em um texto de seu amigo Roberto Schwarz14 — é descrito por Arantes como “uma fusão patológica ou teratológica de um bico militar, uma patinha miliciana, uma mama teocrática da qual escorre leite (…) e um ventre dilatado (…), chamado ‘centrão’”.15

Expulso do bioma ao qual estava parcialmente adaptado — em virtude da construção de alguma hidrelétrica ou da expansão das áreas de pasto para a criação de gado, imagino — o ornitorrinco de Chico de Oliveira viu-se forçado a viver num ambiente ainda mais degradado e ainda menos adequado às suas características nativas. Tendo bebido água contaminada por uma mistura de resíduo de minério de ferro e defensor agrícola, o animal transmutou-se, finalmente, num monstrengo — ainda mais grotesco e perigoso.

Paulo Arantes tem razão em afirmar que o diagnóstico de Chico no Ornitorrinco, fechado às vésperas da eleição de Lula para seu primeiro mandato como presidente da República, nos ajuda a compreender a regressão social vivenciada nesses últimos anos, desde o golpe aplicado em Dilma Rousseff até o fim do governo Bolsonaro — o qual ainda aguardamos, ansiosamente. Tem razão também em afirmar que, apesar de nos auxiliar, o diagnóstico não explica plenamente o fenômeno em tela — isto é, a mutação teratológica ou o ornitorrinco 2.0 não estava previsto no esquema original. Com efeito, a degradação do mundo do trabalho que acompanhou o processo de superação do subdesenvolvimento — sem que isso resultasse, no entanto, numa emancipação nacional — parece representar apenas uma parte do problema. Um outro movimento — também ele uma “unidade de contrários”, para usar expressão do próprio Chico16 —, parece ter se dado no Brasil, a partir, sobretudo, dos anos Lula: a expansão dos direitos acompanhada da consolidação do neoliberalismo.

Quando Chico afirma, no vídeo, não se tratar de uma “ilusão humanitária” a crença de que, durante os governos petistas, houve, de fato, criação e expansão de direitos, ele não faz senão reconhecer a realidade das conquistas celebradas pelo campo popular — que deram a Lula 83% de aprovação ao final de seus dois mandatos e que o reconduziram agora para um terceiro. Por outro lado, ao afirmar que, olhando friamente, a criação dos “direitos” se traduz, na linguagem do capital, simplesmente em expansão do “mercado”, Chico está nos lembrando que essa mesma realidade social recusa um enquadramento simplista — isto é, que obedece a uma lógica do “ou isto ou aquilo”. Tal enquadramento nos levaria simplesmente a concluir que, se os anos de governo PT representam de fato a criação e a expansão dos direitos, então não poderiam representar, ao mesmo tempo, o aprofundamento e a consolidação do neoliberalismo no país — e, consequentemente, o aumento do conservadorismo na população.17 O que Chico nos diz é justamente o contrário: aconteceram as duas coisas ao mesmo tempo e é virtualmente impossível separar uma da outra — tanto na prática como na avaliação que fazemos do período.


Uma grande obra, penso, não é constituída apenas das palavras que contém, mas também daquilo que dá a pensar e, sobretudo, do produto da apreensão — frequentemente, oblíqua — que outros fazem dela. Com efeito, ela se constitui no tempo e em diálogo com seus leitores e interlocutores — e nunca está plenamente acabada. Não há dúvida de que Chico de Oliveira nos legou uma imensa e valiosíssima obra de pensamento, sobre a qual continuaremos a nos debruçar e que continuará gerando frutos ainda por muitas décadas. Chico é um desses autores que, como já afirmou André Singer, em particular, nos deu a todos régua e compasso.

Além de régua e compasso, diria também que nos deu exemplo de dignidade e esperança. Na visita que fiz a seu apartamento, em 2016, ao nos despedirmos, já à soleira da porta, ambos preocupados com a situação do país — que só piorou desde então —, lembro-me de Chico ter dito, sorridente: “morro em pé, como uma vela, mas não me entrego!”. Chico cumpriu duplamente sua promessa: morreu em pé e, como uma vela, continua a iluminar os caminhos de nosso pensamento.