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O feto é uma personalidade legal? Sobre a saturação jurídica

Abre a boca e feche os olhos, Marina da Silva

Em um número crescente de Estados, o direito das mulheres ao aborto vem sendo questionado. Os antiabortistas direcionam seu discurso no sentido de reconhecer a personalidade jurídica do feto. Isso também está acontecendo nos EUA, onde a Lei de Proteção à Vida Humana do Alabama define o feto como uma pessoa legal em todas as fases de seu desenvolvimento ou gestação. Na Geórgia, a lei Living Infants Fairness and Equality, ou lei LIFE, reconhece explicitamente o feto como pessoa.

Esse tipo de discurso não é novo. Já fazia parte da retórica antiaborto dos anos 1960. Mas ele ressurge, e agora cumpre ver em que contexto e com quais implicações.

Liberais de esquerda atacam posições antiaborto como ridículas e criadoras de confusão de todos os tipos. Ao mesmo tempo, organizações como o Nonhuman Rights Project pretendem proteger os animais não em termos de direitos dos animais, mas com um foco específico em sua personalidade jurídica. Em 2019, o Lago Erie — um dos Grandes Lagos — ganhou personalidade jurídica e com ela o direito de existir, florescer e evoluir naturalmente.

Em nome da proteção do meio ambiente, ganhou terreno a ideia de que árvores e outros seres naturais deveriam ter direitos legais. Já em 1972, Christopher Stone, professor de Direito da Universidade do Sul da Califórnia, propôs conferir direitos legais às florestas, aos oceanos e aos chamados “objetos naturais” do meio ambiente. Em 2018, a Suprema Corte da Colômbia declarou a Amazônia uma entidade jurídica dotada de direito à proteção e à preservação. As Constituições da Bolívia e do Equador reconhecem os direitos da “Pachamama”, ou da Mãe Terra. A chamada esquerda liberal acolhe de bom grado, se não entusiasticamente, essa constitucionalização da natureza que estende a proteção jurídica para o meio ambiente.

Seria possível listar casos semelhantes por páginas e páginas até preencher todo um dossiê. Mas é precisamente essa proliferação da legislação em defesa da vida ou do meio ambiente que deve ser investigada. Discursos antiaborto e discursos ambientais, que em alguns casos poderiam ser caracterizados respectivamente como conservadores e liberais, na verdade convergem, embora por caminhos opostos, ao mesmo objetivo. Ambos produzem uma legalização de todo o existente. Daqui seguem três considerações.

Primeira consideração. Marx tinha falado da extinção do Estado. Antes dele, Fichte havia comparado o Estado a uma vela que, terminadas as suas funções, se apaga. Pelo que emerge hoje, o Estado não parece morrer de exaustão, mas de metástase. A expansão da esfera jurídica para tudo o que vive (dever-se-ia dizer, a todo ser) ocorre por meio de uma proliferação cada vez maior de leis e regulamentos. Se tudo deve ser protegido, tudo deve ser igualmente objeto de regulamentação legal. Dessa forma, o Estado cumpre uma de suas funções clássicas: a despolitização. Trata-se de uma lógica que já estava em operação nos direitos humanos entendidos como direitos de sujeitos jurídicos politicamente passivos, as vítimas potenciais de um poder “maligno” que um poder “benevolente” deveria defender. A questão crucial nessa lógica do discurso é: quem se encarrega de proteger a pessoa jurídica? A resposta é: o Estado mediante suas leis. Emerge uma equação jurídica de proporcionalidade direta: quanto mais o campo dos direitos se expande, mais cresce o poder do Estado que deve garantir e proteger aqueles direitos. Dessa forma, as violações da pessoa jurídica e os conflitos devem ser apresentados ao Estado encarnado por uma autoridade judiciária. Daí decorrem a neutralização da política através de procedimentos legais, bem como a hipertrofia jurídica que caracteriza o presente.

Segunda consideração. Se o feto é uma pessoa jurídica, bem como a mãe, é fácil pensar em casos em que os dois direitos se opõem. Isso é o que querem os antiabortistas. É difícil pensar num verdadeiro argumento liberal contra a extensão da personalidade jurídica ao feto quando se estende a personalidade jurídica a todos os seres naturais, ultrapassando até a oposição binária entre o ser humano e o não humano, o que tem sido celebrado pelas políticas liberais mais radicais nas últimas décadas. Por outro lado, os conservadores, embora muitas vezes se declarem pela limitação do poder de ingerência do Estado, trabalham a favor da ampla juridificação do existente. E, portanto, do poder do Estado.

Mesmo a discussão sobre quando o feto deve ser considerado uma pessoa jurídica é fundamentalmente arbitrária e baseia-se em pressupostos externos à política. De uma perspectiva “aristotélico-religiosa” que considera o embrião como vida em potência desde a concepção, ou a partir de uma decisão “científica” sobre o momento em que a vida pode ser considerada vida: a oposição não é entre ciência e religião. Trata-se de uma oposição que pertence apenas à — e é caracterizada pela — neutralização da política. A oposição é entre ação política e despolitização (ou colonização) do social através da lei.

Terceira consideração. Uma terceira maneira só é viável se você começar a pensar sobre direitos e leis em diferentes termos. Trata-se de evitar decidir sobre o início da vida do feto ancorando a decisão em diferentes institutos.Sejam eles caracterizados pela tecnicização do problema por meio da ciência médica ou pela atenuação da responsabilidade através da religião. Como escreveram Mariarosa Dalla Costa e Selma James em 1972: “O problema não é aborto. O problema é termos a possibilidade de nos tornar mães quantas vezes quisermos ser mães. Apenas quando quisermos, mas sempre que quisermos”. Desse modo, o texto feminista deslocava o discurso sobre o aborto dos direitos individuais para o contexto social. O texto terminava com estas palavras: “Fazer amor quantas vezes quiser, ter filhos quantas vezes quiser, em ambientes confortáveis, acolhedores e bonitos”. A ênfase não deve ser posta na vontade individual, mas igualmente, e sobretudo, nos “ambientes confortáveis, acolhedores e bonitos”. E esse ambiente deve ser criado à distância do Estado. Não contra o Estado, mas redefinindo suas funções e seus limites.1

Se o contraste entre os direitos da pessoa jurídica da mãe e os do feto é um absurdo, deve-se começar a pensar que a prioridade jurídica deve ser dada à sua relação. Não se trata de exercer os direitos da mãe contra os do feto, ou vice-versa. É a relação entre os dois que pode e deve constituir a verdadeira pessoa jurídica. A relação também pode se tornar mais complexa até incluir outros parentes ou membros significativos do vínculo.

Trata-se de virar todo o problema de cabeça para baixo. Não há indivíduos, pessoas legais, que entram em relação uns com os outros. Ao contrário, há uma rede de relações que qualifica os elementos da própria relação. O que você ganha com essa inversão? Se a lei moderna individualiza e atomiza, a inversão de perspectiva consiste em confrontar essa atomização. Dar prioridade e autonomia à relação significa reconhecer a autoridade da mãe, que também pode compartilhá-la com outros membros significativos da relação.

O que significa reconhecer a autonomia da relação? Significa que o Estado não decide, mas fornece os meios técnicos úteis para a prática da decisão que é tomada para além do seu monopólio de poder. O Estado provê tanto os meios técnicos de realização do aborto, quanto aqueles relacionados à gestão de uma adoção, ou ainda os necessários para o cuidado da mãe e do recém-nascido, da saúde até a educação da criança. Um argumento semelhante pode ser feito para a eutanásia. E, por razões ainda maiores, pode ser feito em relação ao meio ambiente.

A questão aqui é conceber direitos como práticas sociais, e não como concessões do Estado. O Estado deve ser mantido a distância. Ou entendido como um expediente técnico para garantir direitos cuja realidade está articulada em práticas sociais concretas. A história exibe várias experiências assim. A primeira Constituição da República Socialista Federativa Soviética da Rússia (1918) é uma delas. Nesse texto, o detentor de liberdades não é o indivíduo, mas o grupo social e as agremiações dos trabalhadores. O Estado, então, não é convocado para garantir aquelas liberdades, mas para facilitar sua fruição. Cada artigo começa por estas palavras: “A fim de assegurar liberdade real aos trabalhadores”, e então apresenta uma lista de material técnico necessário para o gozo daqueles direitos. Desse modo, o artigo 2.14, sobre a liberdade de expressão, assinala os meios para sua materialização: a república soviética deveria providenciar “recursos técnicos e materiais necessários à publicação dos jornais, panfletos, livros e qualquer outra forma de impressos, bem como garantir sua livre circulação no país”. O artigo 2.15, sobre a liberdade de associação, determina que a república proveria a realização daquela liberdade com “mobiliário, iluminação e aquecimento”. Como se vê, o Estado não é aí a entidade que age em nome do povo-nação e de sua unidade. É, antes, uma unidade entre outras unidades. É um expediente para assegurar liberdades e direitos concretamente praticados no nível social.

Se liberais e conservadores, de direita e de esquerda, continuarem a trabalhar dentro da mesma, agora exausta e saturada, legalização do existente em nome de sua proteção, será necessário criar um espaço político diferente. Esse espaço pode ser criado por mobilizações sociais e políticas que, em suas práticas, prenunciam um modo diferente de estar junto e uma qualidade diferente de vínculo social. Ele não pode ser produzido com a introdução de novas regulamentações legais ou com a atribuição de novas personalidades jurídicas, mas que deve ir na direção oposta. Para criar esse espaço, é necessária uma dessaturação do jurídico que se inicia dando prioridade à relação sobre o sujeito jurídico atomista. À vida em comum sobre a personalidade abstrata das leis. Ao ambiente e ao entorno em que essa vida acontece. À responsabilidade sobre a desresponsabilização que ocorre quando se delega a decisão a uma terceira autoridade. À política sobre sua neutralização. Mesmo que isso signifique enfrentar o risco de conflitos e de decisões extremamente difíceis. Mas política é exatamente esse risco. Um risco que os políticos fariam melhor se o enfrentassem, caso não queiram afundar lentamente com o navio a que chamam “Estado”.