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Dogmatismo fundamentalista, o imperativo ético e uma aposta cética

With or without religion, good people can behave well and bad people can do evil; but for good people to do evil — that takes religion.1

— Steven Weinberg

Apresentação

Série Agosto 5, Eduardo Climachauska

Este ensaio foi originalmente escrito em um contexto de profunda intolerância religiosa que, ao invés de arrefecer, só tem se agravado. Na forma de provocações, o objetivo é incitar a problematização e a crítica ao caráter dogmático que baliza as práticas fundamentalistas e a violência contra a diferença. Radicalmente racionalista, a posição cética parece oferecer alguns dos subsídios necessários à superação do dogmatismo fundamentalista, mas também constitui uma investida contra o relativismo niilista. Com esses propósitos em mente, o texto se estrutura em quatro tópicos breves. Primeiro, a apresentação da suposta necessidade de um substrato Absoluto à moral, marca indelével da nossa tradição; em seguida, as implicações desse conceito de Verdade para o problema do sentido da vida; terceiro, o cerne do argumento, que é a tese de que a postura dogmática, em vez de garantir o sentido da existência humana, acaba por possibilitar sua relativização; por fim, a hipótese da atitude cética como alternativa ao fundamentalismo dogmático.

Um fundamento absoluto à moral

Lato sensu o fundamentalismo se caracteriza pelo dogmatismo ortodoxo com implicações práticas. Mais especificamente, como se sabe, o fundamentalismo foi um movimento religioso e conservador iniciado nos Estados Unidos pelos protestantes no início do século XX, com raízes na interpretação literal da Bíblia como fundamental à uma vida em conformidade com a doutrina cristã. No entanto, o termo ganha conotações mais genéricas e passa a abranger também o fundamentalismo islâmico e outras doutrinas religiosas de caráter dogmático.

Um traço comum às vertentes do fundamentalismo é a noção de Verdade absoluta e universal. Nossa matriz intelectualista, calcada no platonismo, fundamenta-se na ideia, de caráter transcendente, como fundamento e garantia do real. Em outras palavras, há a Verdade e ela é absolutamente universal. Em suma, a imobilidade das formas requerida na filosofia platônica — por ser necessária e universal — implica que a Verdade é supra-histórica, isto é, fora do tempo e do espaço. Por outro lado, tal formulação, quando lida à luz do relativismo cultural, implica um problema fundamental: como garantir a validade universal e absoluta do dogma de fé quando contraposto às outras manifestações culturais? Trata-se de localizar a origem da crença numa experiência subjetiva e, tal como propõe Kierkegaard, realizar o salto da fé. Daí que as sociedades ditas civilizadas,2 herdeiras dos ideais iluministas,3 reservem à religião a esfera do privado. Cumpre questionar sobre a necessidade de um fundamento absoluto capaz de dar conta da relativização dos valores culturais. O problema intercala o da existência de Deus, pois, se Deus não existe, então tudo é permitido. Como se sabe, trata-se aqui da célebre formulação de Jean-Paul Sartre para a fala de Ivan Fiódorovitch, personagem de Dostoiévski em Os irmãos Karamázov (1879):

[…] em toda a face da Terra não existe terminantemente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu à lei natural, mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. […] destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade […] não haverá mais nada amoral, tudo será permitido4

A tese de Ivan Fiódorovitch,5 tal como a emprega Dostoiévski, postula a necessidade da existência de Deus como verdade absoluta capaz de garantir um fundamento último à moral. Como nem tudo é permitido, então é preciso que Deus exista. Esta reflexão, portanto, terá por mote o problema do pressuposto dogmático capaz de subsidiar a postura fundamentalista.

No registro da metaética, o problema poderia ser traduzido através da possibilidade de se estabelecer critérios objetivos capazes de fundamentar a ética, em outras palavras: é possível postular um princípio universal à ética para além das religiões? Ou então: torna-se impossível postular normas objetivas como critérios para orientar e fundamentar a ação humana? Muitas correntes defendem a possiblidade de se instituir critérios objetivos à ética para além desse substrato transcendente, embora o objetivo aqui não seja apresentar estas respostas, mas, ao contrário, demonstrar os perigos que a postura fundamentalista, em seu substrato dogmático, acarreta. De tal modo que cumpre um recurso à formulação do problema tal como aparece na instigante interlocução em carta aberta entre o cardeal Carlo Maria Martini e o intelectual Umberto Eco.

Advoga Martini:

Como se pode chegar a dizer, prescindindo da referência a um Absoluto, que certas ações não se podem fazer não, sob nenhum conceito, e que outras devem fazer-se, custe o que custar? […] Cada vez resulta mais claro que somente o incondicionado pode obrigar de maneira absoluta, somente o Absoluto pode vincular de maneira absoluta.6

Para Martini, a ética, em seu fundamento, exige princípios metafísicos absolutos e universalmente válidos. Segundo o cardeal, o cristão tem em Deus um princípio claro e absoluto capaz de garantir a verdade do fundamento moral e, a partir dessa constatação, ele propõe a Eco o problema em bases seculares. Como instituir uma ética para além do relativismo? Qual o “fundamento último da ética para um laico”? Em sua resposta, Umberto Eco recorre à tese de que existiriam noções universais comuns a todas as culturas, de tal modo que não seria necessário recorrer a Deus para garantir o bem.

O diminuto “bem” de Eco parece requerer letras maiúsculas e garrafais no discurso do cardeal Martini. Delineia-se aqui a célebre redução disjuntiva: ou Deus existe e a moral é possível ou Deus não existe e tudo é permitido. De pronto é possível postular que tal formulação apregoa um preconceito, pois advoga implicitamente que aqueles que não creem tendem ao mal. Ora, se Deus é a garantia do Bem, então aqueles que não creem em Deus seriam incapazes de praticar o Bem ou ao menos tenderiam ao mal. Ou ainda, que aqueles que creem em Deus seriam incapazes de praticar o mal. Isto é, aquele que pratica o mal, o faz porque “não professa a fé em Deus”. Pois não conhece a Verdade em Deus. O problema acima enunciado ganha novos contornos: em vez de se perguntar: “como instituir um fundamento absoluto sem Deus?”, a questão que se impõe é: “Deus (fundamento absoluto) é realmente necessário à ética?”

De uma feita, o falso dilema permite pelo menos quatro formulações: Deus existe e é a garantia do sentido último da ação moral, tal como defende Martini; Deus não existe e a moral é impossível; Deus existe e não garante o sentido da ação, tal como defendem alguns deístas, por exemplo; Deus não existe e a moral, ainda assim, é possível, tal como parece defender Eco, entre outros.

No entanto, a postura de Eco parece apenas postergar o problema, pois, se existem noções universais, elas são logo são passíveis de se constituírem como um substrato às posturas fundamentalistas. Ora, se há a verdade, tudo o que não reside na verdade, logo, é mentira. O problema, mais uma vez, parece residir na redução disjuntiva ou no maniqueísmo reducionista.

A Verdade e o sentido da vida

Por outro lado, o problema acerca do fundamento último da ética também intercala a questão sobre o sentido da vida, pois, tal como aparece na formulação dogmática de Martini, uma vida com Deus é uma vida com sentido. Lembremo-nos, a fim de introduzir essa dimensão do problema, da bastante célebre passagem de Albert Camus em O mito de Sísifo:

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida, é responder a questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem em seguida. São apenas jogos; primeiro é preciso responder. […]

Se me pergunto por que julgar tal questão é mais urgente do que outra qualquer, concluo que a resposta depende das ações a que elas engajam. Jamais vi alguém morrer pelo argumento ontológico. Galileu, que tinha uma verdade científica importante, dela abjurou com a maior das facilidades deste mundo, logo que tal verdade pôs a sua vida em perigo. Em certo sentido, ele fez bem. Essa verdade não valia a fogueira. Se é a Terra ou o Sol que gira em redor do outro, isso é profundamente indiferente. A bem dizer, é uma questão fútil. Por outro lado, vejo que muitas pessoas morrem por considerarem que a vida não merece ser vivida. Vejo outros que se fazem paradoxalmente matar pelas ideias ou pelas ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer). Julgo que o sentido da vida é a mais premente das questões. Como respondê-las?7

Essas palavras permitem melhor perceber o alcance da questão. Para além das categorias abstratas da metafísica tradicional, é preciso encontrar justificativas capazes de garantir um sentido à existência humana. O problema implica outra interlocução com a questão radical acerca do fundamentalismo, qual seja, saber se a vida vale ou não vale a pena ser vivida significa perguntar: primeiro, a) a vida tem um objetivo ou finalidade (télos)?; e depois, b) esse objetivo ou finalidade tem valor? Esse desdobramento exige uma melhor explicitação.

Deus surge como garantia do sentido e valor da ação humana, e, tal como se sabe, muito se matou em nome de Deus ao longo da história. Em outros termos, muito se matou em nome da Verdade ao longo da história, e isso porque a Verdade (ou Deus) se apresenta em sua dimensão positiva, portanto, passível de se prestar como substrato às posturas fundamentalistas dogmáticas. Em um sentido oposto, as filosofias da existência, em seu caráter negativo, impõem um novo problema à ética, pois colocam o homem, sem desculpas, como único responsável pelo sentido da existência e ação humanas.

Cumpre um recurso a outro momento retirado da criação ficcional: Jorge Amado em Tereza Batista cansada de guerra, como se sabe, traz o personagem capitão Justiniano Duarte da Rosa8 que encontra (cria) o sentido da sua existência ao colecionar “cabaços de donzelas”, em outras palavras, o personagem reduz o sentido da sua vida a desvirginar jovens vulneráveis por viverem em condições de extrema pobreza. A pergunta que se impõe é: se essa pode ser a finalidade de uma vida capaz de lhe atribuir um sentido, esse sentido teria valor? É eticamente aceitável tal projeto existencial? E se tal postura não é aceitável, como garantir que não se possa atribuir tal objetivo à vida? Ora, o problema assim colocado parece levar essa reflexão a um posicionamento no sentido extremo oposto: se tudo é permitido, então todas as escolhas se equivalem, logo: como fugir ao relativismo?

Por consequência, desnudam-se dois problemas fundamentais da filosofia implicados nessa reflexão: a) o que é uma vida com sentido?; b) e o que é uma ação boa? Pois, tal como já alertava Aristóteles em Ética a Nicômaco: “Não nos entregamos a essas indagações para saber o que é a virtude, mas para aprender a tornar-nos virtuosos e bons, pois que de outra maneira este estudo seria completamente inútil”.9 Portanto, não basta saber o que é a justiça em sua dimensão abstrata, é preciso inserir o plano conceitual no seio da realidade viva; é impreterivelmente necessário que a filosofia esteja a serviço da existência. Postula-se, de tal modo, uma prática teórica.

O indubitável como possibilidade do relativismo

Vejamos, com um pouco mais de cuidado, as implicações dessa problemática no registro da ação humana historicamente situada. Qual pode ser a consequência desse problema a uma vida com seu sentido garantido a priori, pois tem seu fundamento em um Ser transcendente, Absoluto e capaz de assegurar per se o sentido da vida? Tomemos uma vez mais um exemplo emprestado da nossa tradição literária, ao menos no Ocidente. É pertinente um recurso à célebre passagem bíblica em que Abraão é convocado por Deus a oferecer em sacrifício seu filho primogênito, o filho da promessa.

E aconteceu depois destas coisas, que provou Deus a Abraão, e disse-lhe: Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.

E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi.10

Para além das implicações teológicas, a passagem atesta a que ponto o dogma de fé é capaz de orientar as ações humanas. A crença num sistema de sentido, neste caso a crença em Deus, faz com que um pai se disponha a matar o próprio filho em nome de Deus.11

Bastante célebre também são as variações imaginárias propostas por Kierkegaard acerca dessa passagem do livro de Gênesis em Temor e tremor. Mas o que interessa aqui, no que tange a interpretação do filósofo dinamarquês, é a possibilidade do dogma de fé relativizar o valor da ação humana. Mais do que garantir o sentido último do imperativo categórico que se desdobra no “não matarás”, a perspectiva proposta se apresenta como a possibilidade de se relativizar a ética. É justamente porque se crê, sem reserva, mesmo que pareça absurdo, e em virtude da fé de que tudo é possível em Deus,12 que alguém se dispõe a sacrificar o próprio filho. Diz Kierkegaard:

Agora é meu propósito extrair da sua história, sob forma problemática, a dialética que comporta para ver que inaudito paradoxo é a fé, paradoxo capaz de fazer de um crime um ato santo e agradável a Deus, paradoxo que devolve a Abraão o seu filho, paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé precisamente começa onde acaba a razão.13

Emudecido, o leitor vê Deus exigir de um servo seu, em especial um servo obediente e dedicado, que sofra a dor da perda daquilo que mais ama, seu próprio filho. Evidente que o caráter dramático que o recurso ao gênero narrativo oferece, convida o leitor a se perguntar por que Deus agiria de tal forma. Sabemos também que o drama pretende colocar o leitor diante da experiência viva de que apenas a narrativa literária é capaz. De tal modo que vemos a fé no caráter absoluto se configurar como um elemento capaz de relativizar a ética; na direção oposta à de Dostoiévski, longe de ser a garantia da ética, a fé se converte na possibilidade de relativizar o sentido da ação humana.

Em nome de Deus um pai se dispõe a matar o próprio filho. A atitude primeira de qualquer ser racional diante de tal proposta seria duvidar da própria percepção: o que vejo não seria um enviado de Deus, mas, ao contrário, uma alucinação ou um delírio; ou então, se perguntaria o pai: “Sendo Deus infinitamente bom, não seria este um demônio tentando se passar por um anjo?”. Não é por acaso que Kierkegaard afirma na passagem supracitada que “a fé começa precisamente onde acaba a razão”; de tal modo que se desvela como algo completamente irracional (contraditório)14assassinar o próprio filho a pedido de Deus.

Tal posicionamento se oferece como uma oportunidade para nos remetermos ao problema, assim chamado por Leibniz, da teodiceia. Saber se Deus é ou não justo é o problema fundamental da filosofia, ao menos nesse registro. É notório também que o mesmo Dostoiévski que diz que se Deus não existir então tudo é permitido, afirma que enquanto houver uma lágrima nos olhos de uma criança é porque Deus não existe. Atualizando: enquanto houver hospitais para tratar crianças com câncer, é porque Deus não existe. Pois, tal como já postulava Epicuro há muito tempo: se o mal existe e Deus permite, é porque Ele não pode ser bom… Por outro lado, argumenta Leibniz, nossa razão finita não é capaz de compreender as razões infinitas de Deus.

Neste ponto parece oportuno lembrar o contundente paradoxo proposto por Epicuro:

Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus. Donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede?15

Uma vida com sentido é aquela na qual a ação é boa porque tem valor; e a garantia do valor reside na escolha. Citando Espinosa, “não é porque uma coisa é boa que se a escolhe (deseja), mas é porque se a escolhe (deseja) que a coisa é boa”.16 Há uma dimensão histórica e coletiva implicada em tal tese. Na interpretação existencialista, ao menos tal como a defende Sartre em O existencialismo é um humanismo,17 a escolha moral se assemelha à criação de uma obra de arte: não há nada que garanta seu valor a priori, ao escolher, o homem se escolhe, se constitui inserido em um contexto histórico que não escolheu, mas que o engendra. Em termos mais evidentes, a história faz o homem que faz a história, para utilizar uma formulação de matriz marxista; ou seja, há uma dimensão herdada, ao qual o homem não escolhe, mas que é humana; e há uma dimensão que é consequência das escolhas humanas. Por isso que é fundamental reiterar que os grandes genocídios ocorridos durante a história da humanidade, sejam eles em nome de Deus ou não, têm a face humana, são consequências das escolhas humanas, mesmo que historicamente condicionadas. Não escolho nascer em um contexto de guerras, mas me escolho neste contexto e o construo também. Só por covardia ou ingenuidade se atribuiria a Deus a responsabilidade por tais atos.

Ora, tal como visto anteriormente, se por um lado o problema implica falácia da redução disjuntiva, pois entre a existência e a inexistência de Deus como garantia última do sentido da vida, temos ao menos outras duas possibilidades, por outro, se não há a verdade, então tudo é relativo. Atestamos que o problema não se resolve com tanta facilidade tal como perecem crer os que creem,18 assim é preciso considerar outras tantas concepções referentes ao problema que sequer tocam na perspectiva religiosa. Desse modo, se queremos erigir uma sociedade capaz de abranger a diversidade, é preciso evitar os preconceitos decorrentes de tal concepção reducionista.

Por fim, cabe reiterar, não se trata de travar um combate às perspectivas religiosas, mas simplesmente de alertar para os perigos que essas formulações adquirem ao ganharem contornos fundamentalistas e, por consequência, intolerantes. No quadro de fenômenos religiosos de extrema intolerância com a alteridade, tal como ocorrem na contemporaneidade — basta citar as perseguições às religiões de matriz afro-brasileiras, tão comuns em nossos dias — torna-se imperativo tal alerta, mesmo que desejemos que um dia ele se torne desnecessário.

A aposta cética

Porque crê indubitavelmente é que o fundamentalista duvida da realidade. O delírio do dogmático radical — que converte o crédulo em seguidor obstinado, violento e intolerante, pois se afasta da razão — é resultado da crença na posse da Verdade. Noutros termos, “quando alguém crê com a fé mais inabalável que possui a verdade, deve saber que crê e não crer que sabe”,19 para ficar na máxima de Jules Lequier na letra de André Comte-Sponville. Nesse sentido, o negacionismo radical seria resultado da crença mais inabalável que o negacionista tem de possuir a verdade, mesmo contra todas as evidências.

O filósofo francês, no lastro da tradição cética, afirma que a verdade é inacessível, pois absoluta, isto é, ninguém detém a verdade última e acabada, porque nossa condição humana é finita, imperfeita e precária. Constitui pretensão ingênua acreditar na possibilidade de capturar o real nas teias da Verdade absoluta e universal. O silêncio desses espaços infinitos apavora, porque a vida não se deixa apreender nos limites do conhecimento humano, demasiado humano. Aquele que afirma conhecer Deus, nesse sentido, comete o pecado da soberba. Assim como nem todo conhecimento é científico, nem toda a ciência do homem seria capaz de abarcar a Verdade infinita de Deus. Tal assertiva, entretanto, não implica o relativismo subjetivista.

Vimos anteriormente que é a crença radical que pode levar à relativização da moral, e que, no entanto, a dúvida não significa a recusa do compromisso com a verdade. Pode parecer contraditório, mas a suspensão do juízo, numa mesma feita, expressa a impossibilidade de conhecer a Verdade, mas, por outro lado, atesta o compromisso com a tarefa investigativa de buscá-la. É porque reconhece sua própria ignorância que o ser humano se engaja na busca, “é porque sei que não sei, que me lanço na infinita missão de conhecer”.

Entretanto, a recusa em aceitar o dogmatismo não significa que todo conhecimento se equivale ou que é relativo ao sujeito cognoscente. A posição cética, nesse registro, não corresponde à recusa da razão ou do sentido comum. Novamente Comte-Sponville:

Conhecimento e verdade são portanto dois conceitos diferentes. Nenhum conhecimento é a verdade; mas um conhecimento que não fosse nada verdadeiro não seria um conhecimento (seria um delírio, um erro, uma ilusão…). Nenhum conhecimento é absoluto; mas só é um conhecimento — e não simplesmente uma crença ou opinião — pela parte de absoluto que comporta.20

O conhecimento não equivale à Verdade, pois todo conhecimento é relativo ou parcial, ou seja, é passível de ser aperfeiçoado ou substituído. Por outro lado, é o processo demonstrativo e histórico que permite compreender o mundo que nos circunda, conhecer a nós mesmos e atribuir sentido às nossas ações. Trata-se de redimensionar o lugar da certeza e do conhecimento humano, ou seja, de uma forma mais modesta e concreta, é preciso abandonar o caráter dogmático da Verdade indubitável e aceitar o caráter processual da existência, da história e da verdade.

Neste ponto cumpre um breve comentário sobre a filosofia cética. Numa paráfrase da anedota do filósofo que caminha com o pensamento nas estrelas e acaba por cair em um buraco, conta-se que o cético, por não reconhecer a realidade do obstáculo, segue caminhando até cumprir seu destino. Embora divertidas, essas anedotas dizem mais sobre quem as profere do que sobre a própria filosofia. Assim como o filósofo não se aliena da realidade, o filósofo cético também não abandona o mundo comum da experiência. Numa palavra, a suspensão cética do juízo não corresponde ao relativismo subjetivista. A Verdade absoluta é dispensável para saber que o terreno acidentado traz risco à vida. Em suma, suspender o juízo sobre a Verdade última das coisas não equivale em afirmar a Verdade última dessa suspensão, isto é, o cético não afirma a impossibilidade da verdade, ao contrário, ao suspender seu juízo ele se compromete com o imensurável da tarefa.

Na terminologia própria à filosofia cética, a epokhé não corresponde, como com frequência se afirma, ao caráter propositivo da recusa, ao contrário, trata-se da afirmação do compromisso com a sképsis como único caminho que levaria à ataraxia. Traduzindo, a suspensão cética do juízo sobre a Verdade última das coisas e do mundo significa que o cético se compromete com a investigação perpétua do real. Seu compromisso com a vida comum levaria a algo que frequentemente é traduzido como a imperturbabilidade da alma, mas que podemos entender como um contínuo movimento em direção a “uma vida boa e feliz”. Radicalmente racional e comprometida com a vida comum, a atitude cética exige o perscrutamento perpétuo como forma de promover a superação dos dogmatismos fundamentalistas que, em vez de nos inscrever no seio do real, nos afasta da realidade comum da experiência e das ciências.

Um brevíssimo parênteses sobre a ciência se faz necessário. Embora óbvio para muitos, há ainda quem espere da ciência a Verdade — necessária e universal — do discurso dogmático, algo caro ao paradigma epistemológico moderno, ao menos até o século XVIII. No entanto, sabemos que o discurso científico está muito mais próximo da dúvida cética do que da univocidade estática dos modelos explicativos supra-históricos. O que torna a ciência histórica é justamente seu caráter progressivo, assim, uma verdade científica, isto é, um modelo explicativo da ciência é científico precisamente porque pode ser substituído por outro mais adequado. É o caráter demonstrável e demonstrado do discurso científico que torna a ciência algo histórico, progressivo e parcial. Se a ciência fosse absoluta, ou seja, se correspondesse plenamente à Verdade perfeita e acabada, não apenas deixaria de ser ciência como se tornaria também desnecessária. Toda ciência é uma forma de reduzir a multiplicidade infinita do real a certa regularidade dos fenômenos. O escritor Jorge Luis Borges, em O rigor da ciência, escreve aquela que talvez seja a imagem mais exata para expressar essa ideia.

Naquele império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa duma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do império uma província inteira. Com o tempo esses mapas desmedidos não bastaram e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos dedicadas ao estudo da cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado mapa era inútil e não sem impiedades entregaram-no às inclemências do sol e dos invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas ruínas do mapa habitadas por animais e por mendigos; em todo o país não há outra relíquia das disciplinas geográficas.21

Espera-se que a ciência corresponda à Verdade absoluta, mas não é este o seu propósito. O ser humano reduz a multiplicidade infinita da realidade a certas regularidades, não para capturar a Verdade última das coisas e do mundo, mas para viver melhor. Os saberes não se equivalem, não porque são absolutamente verdadeiros, mas, ao contrário, porque não o são. Tal é a proposta do ceticismo, assumir nossa condição precária e imperfeita, incapaz de conhecer a Verdade, não para nos tornarmos perfeitos, mas para nos tornarmos melhores.

Comte-Sponville, citado anteriormente, lembra que com frequência confunde-se o ceticismo com a sofística, no entanto, se o último abandona o compromisso com a verdade, para o cético o processo investigativo é resultado da necessidade da investigação, por isso mesmo ele está sempre comprometido com a busca vã pela verdade. Portanto, como insistimos, o contrário do ceticismo não é o o racionalismo, como muitas vezes se pensa, mas o dogmatismo. O abandono do compromisso com a verdade leva ao irracionalismo, e este à barbárie. Por isso a aposta cética, para lembrar que é preciso superar a barbárie que decorre do dogmatismo fundamentalista.