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E a verdade não libertará etc. etc.

Sobre a peça Verdade, do grupo Tablado SP

Foto: Otávio Dantas

“Como nós chegamos até aqui e o que é necessário fazer para sair de onde nós estamos?”, essa dupla pergunta — proposta por Vladimir Safatle como eixo para todo um ciclo de conversas realizado em seu canal do Youtube como parte da campanha do filósofo recém tornado candidato a deputado federal — parece de fato organizar grande parte da discussão política em tempos de ascensão da extrema direita por todo o mundo. Por um lado, retorna-se assim em alguma medida a um modo histórico de pensamento que por muito tempo pareceu recalcado pela ideia (várias vezes explicitamente refutada, mas que nem por isso deixou de constituir o clima geral subjazendo ao debate) de que as democracias liberais eram enfim vitoriosas e, se nos países centrais já estavam mais ou menos consolidadas, caberia agora simplesmente expandir essa conquista para o resto do mundo. Ora, o colapso atual parece quebrar definitivamente com essa perspectiva “pós-histórica”, recolocando o presente como ponto em que se atualiza um processo histórico passado e a partir do qual se poderia projetar visões alternativas de futuro.

Por muito tempo repetimos a famosa frase (de Fredric Jameson? de Slavoj Žižek? de Mark Fischer?) segundo a qual “é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”. Agora, se o pudor e o cuidado de uma esquerda ciosa dos erros do passado frequentemente nos levam a evitar positivar soluções e utopias, a própria imagem do fim do mundo pode ser mobilizada para estimular a necessária fantasia política. É o que se vê, por exemplo, num dos filmes mais debatidos dos últimos anos, Não olhe para cima, em que o cineasta Adam McKay também parece colocar o par de perguntas com que abrimos este texto. Se ali a história termina (com o perdão do spoiler) com a destruição geral do planeta, não é tanto para reforçar a ideia thatcheriana de que “não há alternativa”, mas justamente para alertar para a necessidade de pensar em outras possibilidades e estratégias de ação diante dos problemas retratados na tela — particularmente a generalização da imbecilidade, o fato de ninguém dar ouvidos aos cientistas que protagonizam a narrativa, aqueles que de fato sabem do que estão falando. Aqueles com quem, é claro, nos identificamos, pois nós também sabemos do que estamos falando quando falamos contra aqueles que não sabem, porque quando não sabemos damos ouvidos àqueles que sabem, porque queremos saber, queremos estar certos e queremos estar do lado certo, do lado oposto àqueles que não querem saber de nada, não querem nem saber, os que são contra os saberes e se orgulham da própria ignorância…

Mas tal oposição simples e condescendente deveria nos fazer ao menos desconfiar que a questão sobre “como chegamos aqui e como sair de onde estamos” pode ocultar um pressuposto não questionado, uma não questão pressuposta: a do aqui, do presente. Se nos tempos áureos da ideologia pós-histórica foi uma obsessão para diversas correntes de pensamento crítico perguntar “que horas são” (como fez Roberto Schwarz) ou elaborar uma “ontologia do presente” (como formulado por Michel Foucault), justamente para contrariar a naturalização do atual estado de coisas e afirmar sua historicidade e transformabilidade, hoje corremos o risco de saber bem demais onde estamos (ainda que o façamos em nome do mesmo desejo de mudanças). “Desde pelo menos 2016”, reflete Alexandre Dal Farra, “tudo se passava como se a ideologia tivesse desaparecido e as coisas fossem apenas coisas, como se o Brasil de Bolsonaro fosse um tipo de revelação da ‘vida como ela é’”.1 De fato é contra esse saber consensual estabelecido que tem se voltado a produção do dramaturgo nos últimos anos. Já em 2018 ele descrevia “a sensação de que estou entendendo demais, nós achamos que está tudo óbvio, (…) e no entanto não muda”, de modo que “talvez o jeito de pensar é que esteja errado”.2

Desde então, pude assistir a três obras teatrais em que Dal Farra buscou responder e dar forma a essa inquietação. Em janeiro de 2019, ainda no primeiro mês do governo Bolsonaro (e, portanto, mais sob o efeito da eleição do que das ações concretas e acontecimentos de seu mandato), ele estreou com seu grupo, o Tablado SP, então ainda chamado de Tablado de Arruar, a peça Pornoteobrasil. À época, o diretor Clayton Mariano relatava que o processo de criação da peça era “quase que a história de um fracasso, de tentativas e erros” colhidos para criar a obra final, já que “talvez nenhuma forma combine melhor com o momento político e com a nossa dificuldade de lidar com ele” do que essa “tentativa malsucedida de juntar” os cacos de uma história estilhaçada.3 Em cena, víamos tanto (num primeiro ato) uma esquerda completamente perdida tentando sem sucesso retraçar seus últimos passos quanto (no segundo) uma direita raivosa triunfante diante da qual uma protagonista “sensata” não sabia como se colocar.

Já em Tragédia e perspectiva I: o prazer de não estar de acordo, peça criada em parceria com o diretor argentino Lisandro Rodríguez e estreada na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MIT-SP) em junho de 2022, a temática explicitamente política característica da produção de Dal Farra era suspensa, substituída por conteúdos banais, cotidianos, ou simplesmente pela ausência de assunto, o que parecia servir para gerar uma irresponsabilidade produtiva diante dos impasses atuais, desreprimindo um outro modo político de se lidar com a dramaturgia. Se, por um lado, a cena mostrava “um Brasil intensamente em convulsão”,4 por outro, buscava superar aquilo que seria a marca desse nosso tempo: “atingidos constantemente por demandas imensas de posicionamentos consensuais”, teríamos perdido a “capacidade de desejar”; aos diálogos entre figuras que “discordam constantemente umas das outras” subjazeria a busca do “caminho para desejar juntas” (e não a “discórdia pela discórdia”).5

Por último, em julho de 2022, Dal Farra estreou, de novo com o Tablado, o espetáculo Verdade — que mais que os dois anteriores talvez possa ser considerado ponto focal das reflexões e preocupações do dramaturgo nos últimos anos (pelo menos é o que se depreende da leitura de sua tese de doutorado, defendida também este ano no departamento de Artes Cênicas da ECA-USP). Também é aquele que mais explicitamente dá continuidade ao projeto dramatúrgico iniciado com a Trilogia abnegação (2014–2016), seu trabalho mais polêmico e provavelmente também o mais conhecido. Lá, como aqui, parte-se de fatos reais, ainda que obscuros, da recente história do país, diversas vezes até flertando com a linguagem muito em voga do “teatro documentário”, embora com objetivo oposto: não a segurança ontológica oferecida pelo que socialmente mereceu o status de realidade, mas o ponto de partida para um mergulho ficcional em conjecturas e até mesmo em teorias conspiratórias delirantes, de modo a desencavar algo mais real que a mera realidade.6 Ora, se nos estertores do lulismo (e da democracia) o interesse era pela face oculta da esquerda que então ocupava o poder — não para demonizá-la, “fazendo o jogo” da direita ascendente (como acusou parte da crítica de maneira precipitada), mas para desfazer um consenso que também tinha seu aspecto extremamente problemático — agora a atenção do Tablado se volta para essa direita, ou melhor, para parte dela, talvez a parte mais enigmática e ao mesmo tempo paradigmática: os militares.7

Acho que eu digo isso

Foto: Otávio Dantas

Trata-se explicitamente de enfrentar aquela mesma dupla questão com que começamos: “O que fazer com isso? E, principalmente, como e — sobretudo — por que viemos parar aqui?”.8 Para tanto, a peça retraça episódios-chave da presença militar na política nacional deste século, desde “uma ação na favela Cité Soleil”, no Haiti, em julho de 2005, a qual “foi classificada como um massacre”, como diz a voz off que anuncia e contextualiza a primeira cena.9 O recurso seguirá sendo empregado ao longo de todo o trabalho, oferecendo uma camada “efetivamente documental”, como destaca Dal Farra, que confere “o aspecto concreto” para o teatro apresentado a seguir, “todo esse exercício de imaginação, que não se funda em meras especulações, mas sim, em fatos (mesmo que lide com eles de maneira evidentemente livre)”.10

Tal camada documental — sobretudo nas narrações na voz do dramaturgo, mas contando ainda com uma série de vídeos ilustrando ou comentando as situações narradas, aumentando assim a sensação de veracidade — é fruto de um longo tempo de pesquisa do grupo (possível apenas graças à Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, como nunca é demais lembrar em tempos de ataques e desmontes incessantes), incluindo diversas conversas com especialistas no assunto a que ainda se pode assistir no canal de Youtube do Tablado. Central, porém, para organizar todas as reflexões propostas e orientar a criação dramatúrgica foi o livro lançado em 2020 por Piero Leirner: O Brasil no espectro de uma guerra híbrida, onde o especialista em antropologia da guerra e dos militares lança mão de seus conhecimentos para oferecer uma explicação do atual momento político do país. De acordo com essa genealogia da catástrofe nacional, a missão brasileira no Haiti, com que Verdade começa, teria sido “um verdadeiro laboratório, onde os comandantes experimentaram a expertise de ser o centro do Estado e da nation-bilding [sic] haitiana”, isto é, “a experiência do Haiti, além de bélica, foi de governo”,11 ainda numa época em que, como enfatiza a voz off na peça, víamos o “maior crescimento do PIB em 10 anos” e o dólar estava a apenas R$ 2,80. A missão brasileira, aliás, era parte de uma “tentativa de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU” (o que não deixa de conferir certa ironia trágica à história).12

Porém o mais curioso talvez seja que, por mais que a cronologia apresentada em cena siga de perto a argumentação encontrada nas fontes bibliográficas consultadas pelo grupo, o espectador dificilmente acompanhará esse argumento ao assistir à peça. Não só porque o próprio dramaturgo diz “não compartilhar inteiramente” da hipótese de Leirner “de que as Forças Armadas estejam operando uma guerra híbrida para dentro do seu próprio país”;13 mas sobretudo porque não será o caso, aqui, de buscar ilustrar uma tese com o objetivo mais ou menos explícito de convencer alguém, como frequentemente se faz no teatro político com que estamos mais habituados. Antes, pelo contrário, a peça parece mostrar que não sabe o que dizer, não sabe como abordar o assunto que ela mesma propôs tematizar. Impera desde o primeiro momento uma incerteza que jamais chegará a ser dissipada, sobretudo no jogo dos atores: a primeira cena começa, depois da narração já citada, quando um deles (André Capuano) retira a máscara de látex que vestia, como todo o elenco, durante a entrada do público. Ele se mostra confuso, talvez até um pouco tonto, como se não soubesse o que está fazendo ali ou mesmo quem é. Ele se dirigirá ao General Heleno, com quem deverá dialogar na cena, mas sequer sabe quem representa esse papel, buscando entre os presentes aquele que possa lhe responder. Quando uma atriz (Nilcéia Vicente) enfim se adiantar, retirando também sua máscara e se prontificando a dar sequência à cena, será de modo igualmente tateante: “Eu…?”, responde, e adiante, conforme as palavras do general saem de sua boca, não consegue deixar de comentá-las: “acho que eu digo isso”.

Se a princípio não sabemos se a hesitação pertence aos criadores da peça ou às pessoas que participam da ficção, é que ela parece justamente sugerir uma estratégia brechtiana de separação ou distanciamento entre atriz e ator, e as respectivas personagens, mas talvez outra tradução para o célebre Verfremdungseffekt se encaixe melhor nesse caso: estranhamento. Como é de praxe nas peças do Tablado e de Dal Farra, tudo parece muito estranho o tempo todo, e os próprios intérpretes parecem achar isso também. De modo que a separação talvez seja menos opção consciente com objetivos iluministas do que uma impossibilidade quase física, corporal, de naturalizar a representação proposta, de entrar na pele das figuras representadas, de saber o que pensam ou falam os militares de que se quer falar. Nesse sentido, é significativo que a peça comece com os atores tirando, e não vestindo, as máscaras hiper-realistas de látex representando homens velhos com suas rugas e bigodes (também é notável que, sempre que as vestem, deixam solta e aparecendo a sobra que deveria ser colocada por dentro da camisa para esconder o artifício). Ao longo de todo o trabalho, elas serão vestidas e retiradas diversas vezes, sempre que algo precisa ser dito, talvez simplesmente porque impediriam a compreensão das falas. Mas o efeito gerado é de um desencontro entre representação e enunciação, como se apenas uma das duas fosse possível a cada vez: ou o elenco encarna as figuras dos militares, mas se torna incapaz de dizer qualquer coisa, ou fala aquilo que imaginou que os militares diriam, mas para tanto é obrigado a aparecer com o próprio rosto, sublinhando que se trata afinal de ficção, que se trata ainda de nós e não deles.

Foto: Otávio Dantas

Quando a enunciação finalmente flui de modo um pouco mais solto, o que se ouve são expressões significativas, mas no fim das contas desprovidas de qualquer linha que junte os fragmentos num todo compreensível:

HELENO
(…) ninguém precisa se desculpar de nada, sim, jogo de futebol, operação complicada, jogador aí pela rua, em cima do blindado, lotado de haitiano, a cidade inteira, completamente desesperados, tentando subir, encostar a mão no Ronaldinho etc., tiro, fuzil AK-47 pela cidade, e a gente, o quê?, Soft Power, mas passado é passado, futuro também, de certa forma futuro também é passado, quando eu desembarcar em Brasília vão falar etc., encher o saco, estou me importando?

A própria cena fica sem um fechamento indicando o porquê de ela sequer existir: se o Capitão representado por Capuano enfim expressa preocupação com “algumas pessoas, da tropa, falando por aí, fazendo perguntas sobre Cité Soleil”, isso não levará a nenhum tipo de explicitação dos interesses ocultos da missão, mas ao final abrupto e sem sentido do diálogo, quando Heleno responde simplesmente: “Ah, isso, fala que não”.

Já a cena seguinte a princípio tem mais a oferecer no sentido de uma explicação para o caminho político antidemocrático em que o país enveredou (bem como uma justificativa para o próprio título do espetáculo):

Brasil, 2010. Menor índice de desemprego em 8 anos. Presidente Lula tem aprovação recorde de 87% e se prepara para eleger a sua sucessora. Depois de passarem por todas as instâncias nacionais, as famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura brasileira conseguem fazer com que a Corte Interamericana dos Direitos Humanos obrigue o Brasil a instaurar a Comissão Nacional da Verdade, que se iniciará no ano seguinte

Eis o que Piero Leirner diz considerar “a ‘gota d’água’ dos fatos que transbordaram do mundo militar para os agenciamentos do impeachment de 2016”, pois “o fato é que a Comissão da Verdade (…) acionou o gatilho corporativo e inflou uma mobilização geral” dentro das Forças Armadas.14 Quando, porém, Verdade tenta dar forma cênica a essa reação, o resultado fica muito aquém do que se poderia desejar dentro de uma lógica mais tradicional de drama histórico. As conjecturas criadas por Dal Farra nunca se completam, ficam sempre no nível do esboço, mais apontando para o que deveria ser escrito como fala de uma personagem (o que de novo pode nos remeter ao teatro brechtiano) do que de fato concretizando a enunciação dramática:

[GENERAL] MAYNARD [SANTA ROSA]
Acho que todo o mundo já sabe, saiu ontem a Lei da Comissão da Verdade lá deles. Comissão Nacional da Verdade. É uma coisa, eu nem sei o que dizer, mas eu digo coisas, aqui, que mostram como eu estou muito incomodado, mais do que isso, estou revoltado, mais do que isso, estou completamente maravilhado com a minha própria revolta, estou no fundo comemorando por dentro de alguma forma o fato de estar totalmente preenchido de ódio, ressentimento e mágoa, é isso, General Heleno?

O próprio fato de os generais representados se chamarem sempre pelo nome completo — artificialismo que poderíamos esperar de um teatro de quinta categoria, em que o autor não conseguisse introduzir as personagens de modo mais natural — é um achado cênico extremamente relevante, além de bastante cômico (sobretudo quando levado ao paroxismo: “Eu assumo, eu por exemplo, o General Etchegoyen, que sou eu, no caso”).

A cena termina com uma cruel proposição de Maynard: “Estão precisando de tortura, agora sim é que a gente vai torturar eles, e o instrumento da tortura vai ser a verdade”. O uso da palavra que dá título à peça chama a atenção, mas não há uma leitura óbvia do que ela está fazendo aqui, na boca do inimigo (pois a peça em nenhum momento esconde que tem um lado). Será que se trata de um relativismo simples e bastante difundido — do tipo “o que eles acham que é a verdade nós sabemos que é mentira” — ou de um verdadeiro perspectivismo, capaz de encontrar até nas mentiras do inimigo algum teor de verdade?15 A resposta só poderá vir do restante da peça, que afinal de contas ainda está na segunda cena. Mas a pergunta em si é relevante — eu diria até que ela resume todo o projeto de Dal Farra, tal como narrado em sua tese de doutorado:

De 2016 até agora, me parece que uma parte da produção cultural do país passou a se ordenar dessa maneira que chamei de tautológica: sempre reafirmando — de formais diversas entre si, inventivas, etc. — as mesmíssimas posições e pontos de vista, sem dar rigorosamente nenhum passo na direção de mover nada do ponto de partida que já está em todos nós. Em uma palavra: passamos a fazer arte para reafirmar posições (…).16

Foto: Otávio Dantas

Esse teatro tautológico se alimentaria da falsa ideia de “uma mera substituição de uma hegemonia ideológica ‘de esquerda’ (o lulismo), por uma outra, ‘de direita’ (o bolsonarismo), que caberia criticar agora [a partir de 2015, mais ou menos] mais frontalmente, para poder resistir a ela etc.”17 Chamo a atenção, aliás, para o etecétera: a expressão latina abunda tanto na tese quanto na peça escritas por Dal Farra, e em ambas tal profusão parece exercer função semelhante: acusar justamente essa tautologia, essa repetição de obviedades, essa reafirmação de posições aparentemente contestatórias, mas que já são absolutamente consensuais, a ponto de nem precisarem ser enunciadas por extenso, podendo ser simplesmente aludidas e abreviadas.

Ora, para o dramaturgo — nisso seguindo novamente Piero Leirner — haveria em jogo hoje, muito mais que a hegemonia ideológica da direita, uma ideologia da cisão, da oposição simples e intransponível entre direita e esquerda,18 nos levando justamente à necessidade de marcar posição sem deixar espaço para dúvidas ou ambiguidades: “existe, dentro de tal estrutura, desde o princípio, um lugar como que ‘reservado’ para nós” e do qual não conseguimos (até porque jamais nos propomos) sair; com isso, “a tendência é que nos tornemos, todos, mais e mais paranoides, cada um para o seu lado da cisão”, numa retroalimentação infinita.19 Tal lógica talvez fique mais bem expressa no solilóquio de Capuano (as maiúsculas dão o tom do desabafo raivoso):

… uma mulher por exemplo estava contando como ela tinha sido torturada na ditadura. (…) nossa eu não aguento mais esse tipo de história, não me interessa essa merda eu só estou aqui tentando fingir um interesse na verdade pra poder ter isso pra falar, sabe?? DO TIPO SÓ PRA TER UMA COISA IMPORTANTE PRA FALAR (…), MESMO QUE ESSA COISA AÍ JÁ SEJA PLENAMENTE CONHECIDA POR TODOS, E MESMO QUE SEJA ASSIM UMA COISA RIDICULAMENTE CONSENSUAL, TIPO UMA DESSAS COISAS QUE NINGUÉM, NINGUÉM QUE ESTÁ VENDO ISSO AQUI FALARIA A FAVOR DESSA COISA AÍ, (…) ENTÃO AGORA EU VOU FALAR DISSO, DE DITADURA BRASILEIRA, PARA ISSO, PARA PODER DE CERTA FORMA SUBMETER VOCÊS A ISSO, OBRIGAR VOCÊS A CONCORDAREM COMIGO, (…) QUANDO EU FALO SOBRE ISSO, SOBRE DITADURA NO MEU PAÍS, EXPERIÊNCIA PESSOAL COM O AMBIENTE VIOLENTO E DE EXCEÇÃO ETC. ETC. ETC. (…) COISAS RUINS, SABE RUINS? A GENTE SABE O QUE É RUIM, NÉ?, COISA RUIM É RUIM, NÃO É??? É, É SIM! RUIM É RUIM!, E TEM QUE ACABAR!, TORTURA, A GENTE É CONTRA TORTURA, A GENTE É CONTRA! SIM!

Eu mesma sempre acho que me conheço

Mas observo que esse monólogo surge ao fim da quarta cena da peça, a qual excepcionalmente não é protagonizada por militares ou representantes da extrema direita, mas por aqueles que supostamente estariam do “nosso lado”: a presidenta Dilma Rousseff (interpretada por Alexandra Tavares) e o ministro Aloizio Mercadante (Clayton Mariano). A voz off contextualiza o diálogo: “Brasília, 2 de agosto de 2013. Gabinete da presidência da república”. Mais ainda, a cena é precedida por um vídeo do depoimento do Coronel Homero Cezar Machado à Comissão Nacional da Verdade, após o qual se observa que “uma das pessoas torturadas pela sua equipe foi a então militante da VAR [Vanguarda Armada Revolucionária] — Palmares, Dilma Rousseff”. O que contrasta com o que veremos, e que talvez não desejássemos recordar: o momento em que a presidenta assina a chamada Lei das Organizações Criminosas, que mais tarde seria usada intensamente na perseguição política e jurídica contra o PT, principalmente graças ao mecanismo da delação ou “colaboração premiada”.20

Mas a cena parece servir menos para imaginar como de fato deve ter sido o momento da assinatura do que para provocar a nossa imaginação do que poderia ter sido dito ou pensado pelas personagens. Como se o pressuposto aqui fosse: a gente acha mesmo que a Dilma não sabe o que a gente (acha que) sabe sobre o que significa assinar essa lei? Pois, como diz a presidenta da peça: “Todo o mundo acha que me conhece. Todo o mundo conhece a Dilma Rousseff! Eu mesma sempre acho que me conheço. Aí, de repente me tornei a primeira presidenta do país etc. E agora eu estou sendo odiada por 30% da população, e aí você está aqui me dando conselhos. É isso?”. Nesse sentido, parece ser o próprio estranhamento permeando toda a dramaturgia que faz com que a personagem Dilma questione a própria decisão, e se proponha mesmo rasgar a lei que aguarda diante dela. Se não segue adiante com tal revolta e termina por assiná-la, insiste em dizer que o faz “um pouco desatenta”, “quase sem olhar direito”, e ainda “com pressa, tendo que resolver as coisas com rapidez”. Novamente o efeito é cômico, mas me pergunto se o riso da plateia deve ser entendido como corretivo à postura cínica dos políticos ou como cumplicidade para com o jogo francamente tolo dos atores.

Creio, aliás, que tal ambiguidade predomina na peça. Outro caso marcante vem um pouco depois dessa cena que acabo de descrever, quando os atores enfim falam em nome próprio, sem personagens, comentando o próprio processo de pesquisa para a criação (novamente culminando na exasperação das maiúsculas):

ALGUÉM
Quando perguntamos a um dos maiores especialistas em militares brasileiros sobre a falta de percepção por parte de muita gente, e dele próprio, em relação ao posicionamento dos militares sobre a democracia brasileira, ele disse que ele tinha se enganado sobre a posição dos militares. E disse que o problema é que eles eram muito “dissimulados”.
OUTRO ALGUÉM
Sim. Ele disse que os militares eram muito dissimulados.
ALGUÉM
Um dos maiores especialista em militares.

(…)
OUTRO ALGUÉM
Exato! Não tinha como perceber o que eles realmente achavam das coisas, porque eles ficavam escondendo o que eles realmente achavam das coisas! Foi isso que ele quis dizer eu acho, o especialista em militares.
ALGUÉM
ERA COMPLETAMENTE DIFÍCIL ENTENDER O OBJETO DE ESTUDO DELE, OS MILITARES, PORQUE DURANTE 30, 35 ANOS ESTUDANDO OS MILITARES FICOU MUITO DIFÍCIL DE LER OS MILITARES, PORQUE ELES ERAM MUITO DISSIMULADOS, ENTÃO NÃO DAVA PARA SABER O QUE ELES REALMENTE ESTAVAM PENSANDO! E ELE FICOU LÁ TRINTA, TRINTA E CINCO ANOS ESTUDANDO OS MILITARES, E FICOU OLHANDO LÁ OS MILITARES, O OBJETO DE ESTUDO DELE, E ELE FICOU PENSANDO, “NOSSA, MAS O QUE SERÁ QUE ELES REALMENTE PENSAM?”

Se rimos do absurdo da cena, estamos caçoando do especialista que deveria ter sabido ver além da dissimulação de seu objeto de estudo? Ou estamos, antes, zombando — de modo quase histérico, numa repetição insistente e aflita que parece dizer muito mais sobre nós do que sobre qualquer outro — de nossa própria impotência diante desse não saber (no melhor estilo “rir para não chorar”)? Afinal, se “um dos maiores especialista em militares brasileiros” não conseguiu prever a aderência das Forças Armadas ao movimento político antidemocrático que tomou o país, o que teríamos nós podido ver e fazer?

Mas Verdade ainda irá mais fundo no movimento de, a partir da investigação sobre os militares, falar menos deles que de nós, do campo oposto, do “lado certo”.21 Falar tanto mais de nós quanto mais mergulha na inquirição sobre “os outros”, quanto mais dá voz aos generais. Pois contra a previsibilidade tautológica da atual arte de esquerda, procura:

criar um discurso que se coloque criticamente, em uma postura de embate e de polêmica, mas em direção aos dois lados simultaneamente. No entanto, além disso, tal simultaneidade precisa estar com o sinal trocado. Como houvesse sempre a necessidade (já que o discurso necessariamente parte de um desses lados, e portanto é também parte deles), de apontar a falsidade do “lado de cá” da ideologia, e, ao mesmo tempo, apontar a verdade contida do “lado de lá”.22

Ou seja, seria preciso “conseguir ler, nas ‘falsidades’ deles, o seu conteúdo de verdade”, contra “a nossa sensação de verdade perfeita do nosso lado”, para quebrar com a “repetição do consenso que já estrutura o nosso ponto de vista”.23 E assim descobrir — ou inventar — aquilo que meus inimigos têm para me ensinar sobre mim mesmo, ou melhor, o que teriam para me dizer se “formulassem as suas próprias posições de uma maneira que não fazem, e caso pensassem da maneira deslocada que estou tentando imaginar”.24

Eis, creio, o sentido das reflexões — ouvidas da boca do General Eduardo Villas Bôas na sexta cena de Verdade, que se passa em julho de 2018 — sobre o “espírito do paisano”. Pois contra “o espírito militar, que é a gente aqui, tudo isso, essa camaradagem, esse respeito”, haveria outro espírito, o do civil, o nosso, e que “é o seguinte, ele vai e tenta no que vai dar certo”, o que “para nós [militares] pode ser surpreendente” — acréscimo que contribui para desnaturalizar nossa posição, tratando-a como algo essencialmente estranho e até questionável — “Porque ele quer o quê? Vantagens. Ele não quer briga com pessoas grandes demais”. O texto segue transformando o que para nós seria a atitude mais normal em algo duvidoso: “O espírito paisano, ele se mostra, ele está o tempo inteiro aí, visível, se mostrando. Mas ele se altera completamente de acordo com o vento, como se fosse uma coisa, uma coisa completamente mole, sabe?”

Essa mesma estratégia seguirá um pouco adiante quando o General Etchegoyen dirá, “olhando para o público”:

Foto: Otávio Dantas

Nós não queremos fazer nada. A ideia de que é importante querer alguma coisa é para mim um pensamento completamente estranho. (…) um militar não quer nada. Um militar faz coisas. Toma atitudes. (…) Eu prefiro estar aqui? Eu prefiro estar vivo, aliás? E essa obsessão toda com “estar vivo” o tempo inteiro, também?! (…), Fazer coisas é a mesma coisa que não ser livre, e saber que morrer também é uma coisa que se faz, e que não muda nada, (para o público, violento) vocês querem o quê?? Vida cotidiana? Pequenas escolhas? Filme que quer assistir? Tipo de comida no aplicativo etc.?? Isso aí é o paisano querendo coisas (…). Mas quando você olha o mundo de maneira mais ampla, você não quer mais nada. Nem mesmo a sua vida.

Talvez aí resida a aposta mais arriscada de Verdade: confiar que o espectador, tendo chegado até aqui, conseguirá reconhecer em si mesmo a lógica do paisano, e mais ainda, conseguirá dar razão (mesmo parcial) ao militar que ridiculariza essa lógica, e ver ali algo da razão de nossa miséria, de nossa derrocada: talvez nós que nos identificamos como pertencendo à esquerda tenhamos nos acostumado a querer coisas — e isso não significa apenas um desejo consumista (a que se poderia reduzir a crítica do general), mas até mesmo a vontade política de um mundo mais justo, do fim das desigualdades etc. etc. Talvez estejamos habituados a identificar a própria esquerda com um “querer correto”, e não com uma práxis, um real engajamento em tentativas de transformação da sociedade.25 Talvez tenhamos nos apaziguado a ponto de recusar de antemão sequer pensar no que significaria para nossa subjetividade e conforto esse engajamento para além das belas palavras. Tanto que somos quase incapazes de sequer formular essa autocrítica, e precisamos ouvi-la deles, mesmo que eles aqui tenham sido criados por nós: “essas vozes, que não são militares, mas sim a nossa própria projeção deles, de repente possam nos dizer coisas, mas não no registro da paródia”, nos dizer o que, embora “imaginado por nós, curiosamente, ao que parece, não poderia ser dito, a não ser por eles”.26

Se digo que essa é a aposta mais arriscada, é porque vejo na (ainda parca) fortuna crítica da peça uma tendência a receber tais pontos mais polêmicos (e justamente porque o são) como uma crítica a “eles” e não a “nós”.27 Não obstante, isso talvez deponha mais contra a crítica do que contra a peça. Aliás, por vezes penso mesmo que o que se encena é um desafio ao público, como se a própria peça duvidasse de nossa capacidade ou coragem para levar a sério o que está sendo dito. Como quando o General Heleno (agora interpretado por Gabriela Elias) propõe aos berros seu próprio monólogo escatológico contra a visão “média” da população civil:

isso é muito pouco. Se uma pessoa vai “tramar coisas”, ela não vai tramar poucas coisas. Só algumas coisas bem sutis. Uma pessoa quer por exemplo que enfiem o braço no seu ânus, ela não vai querer que enfiem só um pequeno braço, só um braço muito fininho, um braço de uma criança pequena, não, uma pessoa que quer o braço, lá, inserido dentro do seu ânus, quer o braço mesmo inteiro até aqui, (…) um bração mesmo, não apenas um pequeno bracinho minúsculo, isso é ridículo, ninguém faz uma coisa pela metade, a coisa que é feita, quando é feita, esse tipo de coisa aí, é por definição o não ser pela metade, não existe conspiração razoável, vai e vira do avesso de uma vez só, (…) afinal eu quero alguma coisa de novo! Não quero a mesmice etc., eu não aguento mais!

Já um ponto em que, pelo contrário, essa difícil tática me parece mais palpável é no solilóquio de Nilcéia Vicente, a única atriz negra do elenco, e por isso mesmo particularmente apta a colocar em crise a própria ideia e existência de um “nós”, de um “nosso lado” uniforme e claramente identificável:

agora EU preciso aqui ficar dizendo que NÓS estamos sentindo isso ou aquilo, ou que NÓS estamos aqui cogitando não sei que coisas sobre ELES, mas o fato é que eu não me sinto nem um pouco parte disso, desse NÓS, e eu na verdade gostaria muito de rachar isso no meio, em mil pedaços, acabar com esse NÓS aqui, e ficar falando que isso não existe, esse coletivo, essa primeira pessoa do plural é mentirosa, é um massacre, (…) eu fico aqui completamente impedida de me diferenciar aqui dessas outras pessoas, que são COMPLETAMENTE diferentes de mim, (…) ESSE TEXTO AQUI ESSAS PALAVRAS NÃO SÃO MINHAS, ESSE LUGAR, ESSE PALCO, ETC. ETC.

O desespero da atriz chama a atenção para o que se perdeu com a “cismogênese” apontada por Leirner, e que também era mote (e subtítulo) de Tragédia e perspectiva: o “prazer de não estar de acordo”, o desejo ou gozo — visível na linguagem com que se exprimirá o ódio e a paixão pela luta — que nos move a querer nos diferenciar não apenas dos inimigos, dos “vilões da história”, mas também dos que estão “do mesmo lado da trincheira”, aqueles a quem podemos até respeitar como companheiros em certas batalhas, mas de quem discordamos, ou ainda mais, a quem desprezamos e até detestamos:

ESSE COLETIVO, AQUI, ELE NÃO EXISTE, NÃO PORQUE APENAS HÁ DIFERENÇAS, ETC. ETC. ETC. NÃO! ESSE COLETIVO AQUI, “NÓS”, NÃO EXISTE PORQUE EU ODEIO ESSAS PESSOAS! (…) SÃO TIPOS DE PESSOAS CONTRA OS QUAIS EU QUERO LUTAR, E SE POSSÍVEL VENCER, HUMILHAR VÁRIOS DESSES TIPOS DE PESSOAS E FICAR FELIZ COM A HUMILHAÇÃO DELES. ETC. ETC. (…) FOI O QUE ELES FIZERAM QUE MAIS FUDEU AS NOSSAS VIDAS, ATRAPALHAR A MINHA DIFERENCIAÇÃO, E ME OBRIGAR A ESTAR AQUI AGORA TENDO QUE CONVIVER COM ESSES TIPOS DE PESSOAS DESPREZÍVEIS E RIDÍCULOS PARA PODER FAZER FRENTE A “ELES”.

Interessante notar, sobretudo comparando Verdade com as peças anteriores do Tablado, que a essa altura o fio narrativo foi abandonado quase totalmente, e mesmo que o texto (não publicado) ainda atribua parte dos monólogos a generais, é provável que o espectador já tenha perdido de vista o enquadramento dramático. Nesse sentido, faz pouca diferença que Elias fale no nome do General Heleno e Vicente, apenas como “alguém”. Ou melhor: a diferença existe, mas não pode ser totalmente determinada e objetivada, não dá para separar perfeitamente o que é dito em nome próprio do que é dito em nome “dos militares” (que, afinal, nunca foi dito pelos militares, nunca foi uma expressão de seus pontos de vista e opiniões políticas de fato), as duas coisas se fundem e confundem, invertendo marcadores conhecidos e esperados de valoração e posicionamento.

Mas que operação seria essa?

Foto: Otávio Dantas

Esse passo é fundamental para compreendermos a segunda metade do espetáculo, após uma mudança de cenário em que o elenco, ao som de marchas militares, cobre as mesas de escritório e o carpete azul — que antes envolvia tanto a cena quanto o público, num fundo infinito podendo talvez (como viu um crítico) “remeter ao espaço do Senado Federal”, de todo modo criando um espaço quase neutro, pacificado, de discussão (comportando, como vimos, tanto o gabinete da presidenta Dilma quanto uma sala de comando do exército) — com faixas de grama artificial, fazendo dominar o verde, como se mergulhássemos ainda mais no universo militar, como se agora sim nos preparássemos para vê-los em seu habitat natural (“o azul-congresso é tornado verde-caserna”).28

Nessa nova ambientação assistimos a mais duas longas cenas e um epílogo. Na primeira, estamos no Centro Hípico do exército no Rio de Janeiro, onde veremos militares tão moles quanto eles nos viam ao comentar o espírito paisano: deitados na grama em clima geral de sonolência e lassidão, corpos compondo mera paisagem para o diálogo: uma entrevista do General Mourão em maio de 2018 sobre rumores de que seria candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro. Já a segunda cena reimagina um dos momentos mais críticos e polêmicos dessa trajetória que nos levou à eleição do atual (esperamos que por poucos meses) presidente: o episódio da facada, no dia 6 de setembro do mesmo ano. Ou melhor, os momentos que o antecederam: a comitiva do candidato almoça num restaurante em Juiz de Fora e o General Santos Cruz expõe seu plano de se separar dos demais “para evitar o trânsito da Avenida Brasil”, o que seria parte de uma operação. “Mas que operação seria essa?”, ele mesmo pergunta.

Novamente pouco se ganhará em termos de conhecimento objetivo dos fatos que teriam contribuído para a atual miséria política. Se “em cada gesto e fala” da peça se sente “um clima de apocalipse das formas e dos discursos”, como colocou um crítico,29 com certeza não é uma catástrofe hollywoodiana cheia de ação e adrenalina, de explosões e emoções; lembramos antes do célebre poema de T.S. Eliot segundo o qual “É assim que o mundo acaba./ Sem estrondo, num gemido”.30 Se há em cena uma teoria da conspiração, é, ao contrário do que disse Elias em seu monólogo, uma conspiração mediana, medíocre. As falas e as ações dos militares revelam aqui menos importantes esquemas ocultos do que “suas completas incompetência e inaptidão na apreensão da realidade e na elaboração de futuros”, como bem disse outro crítico,31 servindo para “a depreciação e a apresentação do ridículo político, e mesmo humano” dessas figuras, como viu um terceiro.32

Mas o fato dessa inépcia grotesca não evitar a vitória dessas figuras, não impedir a conspiração de funcionar, deveria nos fazer ponderar com mais cuidado o mecanismo poético proposto pelo espetáculo. O riso gerado pelo absurdo jogo dos atores nessas duas cenas — a oposição entre o desconforto da jornalista interpretada por Alexandra Tavares e a segurança indolente de Mourão na pele de Clayton Mariano, ou entre o desespero submisso do auxiliar encarnado pelo mesmo Mariano e o autoritarismo confuso de Santos Cruz segundo André Capuano — será mesmo indicativo da “radicalidade da inteligência que nos permite a derrisão, a caricatura e o desprezo”, de modo a “nos vingar do poder e da tortura incorporada historicamente”, como quer Tales Ab’Sáber?33

Ora, por mais argutos que sejam os artistas do Tablado, não creio que seu interesse esteja na sátira sagaz, na fina ironia que quer castigar seus opositores a quem faltaria a mesma inteligência. É bem verdade que é esse tipo de humor que estamos mais acostumados a encontrar na arte política, e particularmente num teatro de esquerda que, como bem analisou Dal Farra, se baseia no “sentimento de sermos os mais ágeis defensores do ‘nosso’ ponto de vista”, alegando “esse tipo de ‘coragem’” de dizer a verdade onde na realidade “estamos atuando justamente por covardia, para ‘evitar’ uma aproximação indevida com o outro lado” e seguir habitando “um território absolutamente reconhecível para todos nós”.34 Vejo antes em Verdade, como na maior parte das peças anteriores do grupo, algo que resiste a esse teatro político tradicional (a que a crítica parece fazer questão de reduzir a peça e seus criadores, como se precisasse domesticá-los, varrer para debaixo do tapete aquilo que eles apresentam de mais perturbador): uma comicidade propositalmente tosca, tola, mais preocupada com a própria incapacidade, com a destruição impiedosa das próprias aspirações de compreensão e superioridade intelectual, o abandono da própria pretensão de possuir e comunicar a Verdade do título.

O que não significa que o teatro do Tablado não seja crítico, mas sim que é preciso conceber uma ideia de crítica diferente daquela com que nos acostumamos. Nas palavras de Jacques Rancière, não a crítica “como desmistificação”, caracterizada por “dizer às pessoas que elas são imbecis porque acreditam que algo existe sem saber que não existe ou que existe outra coisa”.35 Interessa muito mais a crítica como desestabilização de uma opinião intelectual dominante: “o que está em jogo não é compreender ou não compreender, mas dois mundos sensíveis que se confrontam” — não é isso que faz Verdade ao confrontar a sensibilidade militar com o espírito paisano? — gerando “uma espécie de desmontagem da cena oficial construída por aqueles que pensam saber”.36

Foto: Otávio Dantas

Não à toa o filósofo francês opõe sua visão sobre a política da estética a toda uma tradição dramatúrgica que vai do Édipo de Sófocles (“a personagem teatral por excelência”) à Mãe coragem de Brecht, e que tem sua constante maior na acusação da cegueira pelo desvelamento do não sabido.37 Porém o que os melhores exemplos dessa linhagem sempre demonstraram (contra sua leitura oficial) é que a cegueira encenada jamais produz os efeitos almejados, não torna os espectadores mais lúcidos, revelando antes “algo como a impotência do verdadeiro”.38 É nesse sentido que devemos compreender a proposta feita por Dal Farra em sua tese: “No nosso caso, em que tudo parece visível e aparentemente objeto de divisão, trata-se antes de tudo, de construir a cegueira”.39 Se o dramaturgo afirma que “talvez nunca tenha sido tão difícil não ver”, é que as “aparentes urgências” do nosso tempo nos impedem “de olhar para as ‘sombras’ do presente, [para o] que está para além das suas luzes”, luzes que “nos prendem ao agora visível”; contra isso, “entrar em contato com a nossa cegueira” ou “reencontrar a cegueira real” seria um modo de acessar “as movimentações reais” para além da aparente compreensibilidade de tudo — o que não deixa de ser uma maneira de compreender, justamente pela “impossibilidade de ver[,] o branco do olho da história”. 40

Ora, fica patente assim que esse fracasso do entendimento (do “teatro documentário”) proposto na peça não significa derrotismo ou capitulação. É antes um modo de superar a velha, mas ainda muito repetida, oposição entre um teatro político iluminista e um teatro experimental irracionalista. Se o primeiro costuma acusar o segundo de hermetismo e desistência da comunicação com o público/povo, e o segundo censura o primeiro pela sua pretensão desmedida de dominar a realidade (e, com isso, o próprio povo/público) pela totalização teórica, Verdade deixa para trás ambas as posições, construindo algo que me parece bem mais produtivo. Não a comunicação daquilo que sabemos (numa posição de mestre que necessariamente rebaixa o interlocutor) nem a recusa de comunicar (que com frequência gera apenas o fortalecimento da suposição do saber e portanto da autoridade), mas a comunicação e comunhão no/do não saber, ou ainda, uma dessuposição de saber — expressão com que Jacques Lacan descrevia aquilo que se esperava ao final da psicanálise: a assunção do analisando da verdade do seu desejo justamente na demolição daquilo que se esperava do analista, isto é, um resposta sobre o sujeito.41 Um ato que desfaz pelo desejo a cadeia causal paralisante que unia ação e saber.

Quando ao final deixamos o teatro, não sabemos mais do que antes explicar ou justificar o que nos trouxe até onde estamos. E continuamos sem saber o que fazer. Mas talvez algo tenha sido ganho, conquistado, construído: a separação, algum nível de separação, entre essas duas questões ou tarefas, a possibilidade de pelo menos começar a pensar e agir na segunda mesmo sem uma resposta final para a primeira (mesmo que também não haja, não possa haver, um abandono total dela). Mesmo que o saber possa e deva nos oferecer armas e estratégias para a ação, ele não causa, não determina a ação. Não teríamos agido diferente “se apenas tivéssemos sabido antes”.

Mas talvez — apenas talvez — teríamos podido agir diferente se tivéssemos reconhecido o quanto não sabíamos, o quanto não sabemos. Pois “não precisamos fingir que estamos todos em condição de descrever de modo pleno e definitivo a realidade brasileira para ter motivos para nos organizar”: é chegado o momento de “transformar nossa desorientação em uma motivação para novas formas de atividade política”.42