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Kronstadt, 100 anos: a ditadura bolchevique sobre o proletariado

Apresentação

Quando o tema é a Revolução Russa e a sociedade soviética, ainda nos vemos cercados de interpretações ortodoxas, que não raro se limitam a repetir os relatos de algum dos líderes históricos do partido. Seja em uma vertente leninista, trotskista ou stalinista, as concepções hegemônicas a respeito desse evento formam como uma bruma espessa, que resiste em se dissipar. Acontece que a historiografia moderna sobre o período avançou muito nas últimas décadas, com novos dados e informações imprescindíveis para uma compreensão mais apurada dos fatos e uma interpretação que seja menos fantasiosa. Claro, isso não significa que só por serem posteriores essas obras estejam com a razão. Mas assim como essa prerrogativa é temerária, tampouco se pode depositar confiança irrestrita nas fontes históricas e talvez ainda menos caso essas fontes sejam de caráter oficial.

É para prosseguir com esse infindável debate, fonte contínua de reflexões sobre o pensamento e a prática política da esquerda, que apresentamos o Dossiê Kronstadt. No ano de seu centenário, relembramos a revolta de marinheiros e operários da fortaleza naval contra o governo bolchevique. Fomos surpreendidos com o pequeno número de publicações, nacionais ou estrangeiras, que dedicaram textos ao acontecimento, a despeito de sua manifesta importância para se entender a formação do regime comunista, bem como sua dinâmica autoritária. Talvez ele ainda seja um tabu. Não se trata, por certo, de celebrar a revolta ou exaltar o modelo dos sovietes, de fetichizar essa forma política gestada pelos próprios trabalhadores. Gostaríamos, na verdade, de esclarecer o episódio e demonstrar todo o necessário debate que ele deve desencadear.

Com o intuito de reconstruir o contexto histórico e esclarecer essas questões, o texto de introdução apresenta um panorama sobre o episódio: qual foi o processo que culminou com a repressão da revolta? Como o partido bolchevique construiu sua hegemonia sobre os sovietes? Quais as motivações que levaram um governo comunista a abrir fogo contra alguns dos mais aguerridos revolucionários?

Em seguida, apresentamos, em ordem cronológica, um debate realizado em 1938 na New International sobre a revolta de Kronstadt. A revista, autodescrita como “um órgão mensal do marxismo revolucionário”, havia sido fundada por Martin Abern e Max Shachtman em 1934 e, durante o período 1934–40, esteve ligada ao Socialist Workers Party dos Estados Unidos. Apesar de veicular majoritariamente concepções trotskistas, a revista apresentava diversidade interna e não se furtou a publicar, em seus números de abril e julho de 1938, essa discussão a respeito do que se passou em Kronstadt, discussão na qual o próprio Trotsky foi duramente questionado por outros personagens.

Tudo começa quando Trotsky publica, em agosto do ano anterior, uma dura resposta a um comunista chamado Wendelin Thomas.1 O alemão apresentava a tese de que bolchevismo e stalinismo compartilham a mesma natureza. Para comprovar sua ideia, citava como exemplo do protostalinismo bolchevique as atitudes de Lênin para com a oposição — os mencheviques, os anarquistas e os insurgentes de Kronstadt. Em sua resposta, Trotsky alude brevemente a Kronstadt, sugerindo que Thomas não entendeu nada do que aconteceu na região e requentando velhos argumentos contra os marinheiros e trabalhadores. A incongruência da posição de Trotsky não passa batido, e Victor Serge, seu companheiro de revolução, escreve pouco tempo depois, pontuando o que considerava os sofismas de Trotsky.2

No ano seguinte, o próprio líder bolchevique dá início à discussão com um texto sobre o que classifica como berreiro e choramingo a respeito do que se passou na fortaleza naval dezessete anos antes.3 Esse texto funciona também como uma réplica a Serge. Reagindo a ele, Dwight Macdonald, à época editor da Partisan Review, publica uma resposta curta e incisiva, em que contesta a visão de Trotsky e rompe com ele.4 Junto dessa resposta, a revista também publica na mesma edição uma carta de Victor Serge com uma tréplica a Trotsky.5 Meses depois, o debate prossegue, mas dessa vez fora da revista. A anarquista Emma Goldman lança em julho daquele ano uma crítica à posição de Trotsky,6 ela que no livro My Disillusionment in Russia, de 1923, já havia assinalado o equívoco da posição bolchevique na repressão a Kronstadt. Fechando a discussão, em setembro, o socialista croata Ante Ciliga, um dos fundadores do Partido Comunista Iugoslavo, faz um balanço do episódio e o relaciona com o destino da revolução russa, em um texto na revista francesa La Révolution Proletarienne.7

Todos os textos citados no parágrafo anterior fazem parte do dossiê. Neles, é possível encontrar uma série de gradações ideológicas que vão desde a ortodoxia bolchevique, representativa de uma violenta razão de Estado, expressa por Trotsky e sua narrativa oficial, até a crítica anarquista e libertária de Emma Goldman, passando por posições socialistas, as de Macdonald e Ciliga, e também a de um bolchevique crítico e envergonhado, que não raro foi bastante lúcido politicamente, como Victor Serge. Haveria ainda alguns outros textos importantes de autores que vivenciaram a situação: Lênin, Stálin, Alexander Berkman, Ida Mett, Nestor Makhno, Voline. Em todo caso, nos limitamos a apresentar o debate de 1938 para não tornar esse dossiê maçante e excessivo. Os textos aqui traduzidos já são mais que suficientes para se dar conta da importância do episódio. Eles representam ao menos um bom ponto de partida para suscitar na esquerda reflexões críticas acerca da experiência e doutrina bolcheviques.