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E agora o quê?

Introdução

Épuras, 2021, Edith Derdyk

Neste número, a Rosa abre suas páginas para que amigos da revista, atentos observadores da cena política nacional, opinem sobre os desdobramentos do 7 de setembro passado. Os autores foram convidados a responder, em textos curtos, quatro questões:

  1. ainda há risco de golpe?;
  2. por que Bolsonaro recuou?;
  3. o impeachment ainda é viável ou só resta a eleição do ano que vem?;
  4. deve-se apostar numa frente ampla para derrotar o bolsonarismo?

As perguntas, claro, referem-se a fatos farta e publicamente conhecidos, que dispensam maiores explicações. Como o leitor verá, buscamos fazer um apanhado de diferentes pontos de vista, não só de diferentes percepções sobre o presente, mas também de divergentes avaliações a respeito do que trouxe o país ao atoleiro em que se encontra. O animado debate que a Rosa promoveu em 13 de outubro passado com os articulistas dá um excelente quadro dessas distintas perspectivas.

Em editoriais anteriores, esta revista nutriu a expectativa de que, conforme a pandemia recuasse, graças à vacinação, um movimento amplo e massivo poderia e deveria ocupar as ruas, repudiando os desmandos e crimes escancaradamente chefiados pelo presidente da república e, por isso mesmo, exigindo seu impeachment. De fato, as manifestações de rua estão acontecendo desde final de maio passado. Necessário reconhecer, todavia, que estiveram bastante aquém do esperado, sendo que a última, organizada depois do “fuzuê” presidencial de 7 de setembro, talvez não tenha conseguido nem mesmo rivalizá-lo. Alguém observará: nem seria pertinente a comparação, pois os atos bolsonaristas foram longa e minuciosamente preparados pela máquina governista, enquanto a reação contrária foi improvisada, convocada quase de bate-pronto. Ainda assim, não podemos deixar de sublinhar que o 7 de setembro aconteceu num contexto de extremo isolamento político do presidente e seu séquito, sendo publicamente rechaçado por quase todos os outros atores institucionais e pela grande mídia. Dada a tamanha desfaçatez de seu gesto, que mais uma vez não economizou em ameaças a personalidades e instituições da república, porém agora de um modo que deixou o país literalmente em suspense, não seria razoável esperar que todo o repúdio que provocou viesse a se reunir e desembocar em peso nas praças públicas?

Ficaríamos menos apreensivos se o rechaço institucional e midiático fosse suficiente para frear o trabalho de subversão constitucional até aqui em curso. Mas todos já estamos familiarizados com a contumácia do ocupante do Palácio do Planalto e sabemos muito bem que ele não vai parar: em silêncio ou com estardalhaço, ele continua não só a produzir rombos nas paredes institucionais da república, mas — o que é tão deletério quanto — sabotar, omitir, enfim, deixar de fazer. Para consumar essa “obra”, o que mais precisa é justamente ganhar tempo e manter-se à tona, na esperança de que a deusa Fortuna lhe sorria mais uma vez, como sorriu na eleição de 2018. Em vista do estado de fragilidade em que já se encontrava a democracia brasileira naquele ano, e que só se agravou de lá para cá, não parece ser uma aposta tão absurda.

Épuras, 2021, Edith Derdyk

Daí ser extremamente perigoso que o país fique à mercê desse jogo de avanços e recuos, agressões seguidas de discretos pedidos de desculpas (quando muito), no qual Bolsonaro se esmerou desde o início de sua gestão, sempre encontrando gente disposta, inclusive entre supostos críticos, para acompanhá-lo na dança. Grotesco, porém ao mesmo tempo tão pedagógico, que o mais recente acompanhante tenha sido o ex-presidente-ex-vice-presidente Michel Temer, patrocinador do cargo que Alexandre de Moraes ocupa no STF e ainda detentor de certa ascendência no Congresso. Como para lembrar o fio que laça a tragédia presente com a farsa pretérita, Temer confirmou com esse gesto a ideia, declarada mais de uma vez, de que via uma continuidade entre o governo Bolsonaro e o seu próprio. Com efeito, descontadas as óbvias diferenças de estilo, a operação de desfazimento da Constituição de 1988 tem nele um precursor e Bolsonaro um excelente aprendiz.

O atual presidente, contudo, é isso e muito mais. Ele representa a fase essencialmente violenta desse processo: algo que vai muito além da violência simbólica de seus gestos propagandísticos, pois que encomenda literalmente e sem rodeios a prisão e a morte. Cientes desse fato, os mais prudentes interlocutores, ainda quando o ajudam, tratam de manter segura distância para evitar seu abraço letal. Mas se há algo que a história ensina sobre autocratas, é que ninguém pode se sentir realmente seguro sob a tutela deles. Conceder tempo a Bolsonaro ou — o que dá no mesmo — premiar suas ameaças e agressões com apaziguamento, será invariavelmente entendido como sinal verde para, mesmo se em fogo brando, fazer avançar seu projeto. E de que se trata? Inútil procurá-lo nos tediosos planos de políticas públicas, nas supostas estratégias de política externa ou nos discursos grandiloquentes de seus ideólogos. Porque tudo isso é marginal e, na verdade, pode mudar ao sabor dos acontecimentos, sem que o fundamental se altere: a certeza inabalável de que os grandes problemas do país só serão resolvidos pela violência desatada. Este é o sumo, a essência, de seu projeto, e é para esse chão que ele sempre retorna depois de cada “desvio de rota”, de cada engodo e dissimulação.

Exatamente porque não tem a oferecer ao país nada de concreto além disso, Bolsonaro não nutre a menor dúvida de que precisa fazer um acerto de contas com a democracia, pouco importa se gradualmente ou de uma vez só. Qualquer democracia, por mais minguada que seja, constitui para ele uma barreira que terá de ser esmagada, e por uma razão muito singela: a democracia — e não estamos falando de um conceito hipotético, mas de algo que está aí — representa a via contemporânea da política, o investimento concentrado que a sociedade se faz para encontrar saídas não violentas para seus conflitos. Pois é simplesmente isso, e nada mais, que a torna inimiga jurada de Bolsonaro. Daí que precise não apenas agredir, mas omitir, sabotar, cortar, bloquear, todas as correntes que, circulando pelas águas do social, alimentam os vínculos, as relações, as interdependências e mantêm aberto o caminho da não violência.

Épuras, 2021, Edith Derdyk

Os gestos espalhafatosos, barulhentos do autocrata, se para alguma coisa servem, visam produzir um efeito de refração no olhar do público, enquanto o trabalho de sabotagem dos intercursos, especialmente os que requerem a mediação do Estado, prossegue em silêncio, mas diuturnamente. É certo que esforços heroicos como dos agentes sanitários nos níveis subnacionais do Estado brasileiro — governos municipais e estaduais —, graças à rede de solidariedade que o SUS soube tecer ao longo de muitos anos, significam um belo contraponto a essa perspectiva mais sombria. Se uma das destruições produzidas pelo presidente foi a do pacto federativo, o modelo descentralizado do SUS conferiu aos prefeitos a responsabilidade de fazer frente à tragédia sanitária que até agora já matou pelo menos 600 mil pessoas. A vacinação tornou-se talvez o único exemplo de como resta algo de fundamental da Constituição de 1988, o SUS e sua capilaridade nacional, cuja atuação tem garantido que a vacinação aconteça apesar da ameaça do desmonte bolsonarista e a despeito de todas as tentativas oficiais de boicote às vacinas. Um pequeno facho de luz no meio de um grande apagão.

Enfim, precisaríamos de mais argumentos para dizer por que não conceder nenhum minuto a mais a Bolsonaro; por que deve ser combatido sem trégua, agora e não depois, até que o país se veja livre de sua ameaça? Mas eis que atravessamos um momento em que sopra um certo mormaço, uma certa resignação, como se tanto fizesse que Bolsonaro continue em seu cargo, uma vez que, de qualquer modo, o próprio calendário eleitoral resolverá o problema que tanto nos aflige. Eis que o esvaziamento das ruas se faz índice do ascenso de uma espécie de epidemia de indiferença, a substituir pouco a pouco a epidemia viral propriamente dita. Não se trata, deixemos claro, de buscar culpados, nem de reclamar dos sonolentos, mas de uma simples constatação. Porém, ela precisa ser compreendida e enfrentada.