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Textemunhos

Documentação do processo de construção das ilustrações da série In The Moonlight Black Boys Look Blue, Rafael RG, 2021.

Este texto-encontro poderia ter vários nomes, mas foi como Textemunho que ele se fez enunciar em uma conversa com Carla Rodrigues sobre a primeira publicação brasileira de Peau Noire, Masques Blancs, de Frantz Fanon. Trata-se de um texto que se faz testemunho de acasos e contingências, de momentos fecundos que, só depois, parecem quase determinados pelo destino que faz a carta circular entre vários — vários tempos, vários tradutores, variados leitores.

O emprego do termo testemunho não é um acaso, mas uma referência ao uso frequente que Lacan faz desse significante ao longo de seu ensino oral, seja para dirigir-se à plateia de seus seminários, seja para dizer do inconsciente. Se de um lado o testemunho coloca em cena a condição de falante, condição que se faz e se apresenta diante de um outro, em ato que implica endereçamento, de outro, o testemunho aponta para o limite do discurso e da formalização e, em um mesmo gesto, dá provas do limite do saber em sua própria enunciação. Em ambos os usos do termo, o testemunho mostra-se como um modo de enunciação que não remete à decifração, nem mesmo propriamente à significação, mas se constitui em ato de palavra. Nesse sentido, o testemunho produz efeitos, sobre si e sobre o outro, em que a enunciação — escrita, no caso do textemunho — parte do um-a-um e ultrapassa essa contagem. É, portanto, como testemunho do efeito sobre mim, uma psicanalista, da fala de Jairo Gerbase, um psicanalista, que o texto se entretece a partir do encontro com Frantz Fanon.

Tive notícias da primeira edição brasileira de Pele negra, máscaras brancas (1952 [1983]) de uma forma casual e quase insólita. Havia me proposto a falar sobre Achille Mbembe no Campo Psicanalítico de Salvador, Bahia, em 2019, nos Seminários sobre Psicanálise e Política. Para situar a produção do pensador camaronês, em suas bases, falei do livro de Fanon e da publicação dessa obra pela Editora da UFBA em 2008. Comentei o quão tardiamente esse texto chegou ao Brasil e, nesse momento, uma pessoa que ouvia atentamente minha fala disse: “houve uma edição anterior, em 1983, coordenada por um tal de Jairo Gerbase”. Efeito: risos gerais e alguns aplausos, visto que quem falou isso de forma tão leve e divertida foi o próprio Jairo Gerbase, figura de referência e transferência no Campo Psicanalítico de Salvador. E a curiosidade sobre a edição desconhecida se fez aventura de saber.

A publicação de Pele negra, máscaras brancas pela Ubu Editora, em 2020, com tradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo, precipita o momento de contar uma versão dessa história, ao mesmo tempo em que atualiza novas possibilidades de leitura. Afinal, um texto é lido em seu contexto. A edição da Ubu apresenta textos críticos de diferentes autores, mas gostaria de destacar o posfácio de Deivison Faustino que, extremamente bem escrito e referenciado, menciona, de forma breve, a edição da Livraria Fator e indica pontos a serem investigados. Nessa direção, convidamos Jairo Gerbase a falar/escrever sobre a edição de 1983, cuja revisão técnica foi realizada por ele, visto que dirigiu a Coleção Outra Gente, nome cujas ressonâncias já nos fazem pensar nos textos escolhidos para tradução. Com Pele negra, máscaras brancas, a Livraria Fator lançou a coleção “que procurará divulgar entre os leitores da língua portuguesa no Brasil os trabalhos mais relevantes que se inscreverem sob esta insígnia”, insígnia em que o atributo da alteridade — outra gente — ecoa. O segundo livro dessa coleção, jamais publicado, seria uma obra de Aimé Césaire.

Antes de passar a palavra a Jairo Gerbase,1 cabe situar que a primeira publicação de Pele negra, máscaras brancas aconteceu em período anterior à abertura política e à possibilidade de eleição direta de nossos representantes. Em 1983, o Brasil era governado por João Baptista Figueiredo, presidente do período da ditadura militar, último general em uma sequência militar iniciada por Humberto de Alencar Castelo Branco e imposta pelo golpe de 1964, cujos efeitos vivenciamos até os dias atuais. Em 1983, o país era regido por uma Constituição Federal que organizava o Estado e, por meio de atos institucionais e complementares, dava pleno poder aos militares. Apenas em 1988 a Constituição Cidadã instituiu, de forma clara, direitos individuais e coletivos, bem como direitos sociais, o que inclui o direito à saúde, educação, moradia, lazer, entre outros.

A relevância de situar o momento histórico da publicação de Pele negra, máscaras brancas pela Livraria Fator deve-se ao lugar possível que uma prática psicanalítica pode vir a ocupar em momentos de silenciamento e impedimento de circulação da palavra. Como nos lembra Paulo Endo, “a situação de fala e escuta livre é uma condição para que a psicanálise exista e, quando isso é coibido pela violência […] o sentido da liberdade da palavra que inspira a associação livre é destituído e interpretado como francamente ameaçador” (Endo, 2016). Quando ocorre a violação de corpos e pensamentos, a psicanálise é também violentada, o que nos leva a refletir sobre a psicanálise e os psicanalistas em sua posição ética e em sua relação com a política. Cabe, então, enfatizar que a tradução de textos é um ato que tem efeitos políticos, pois permite circulação e visibilidade de determinados temas, autores e conceitos. Mas, por que traduzir Frantz Fanon, essa “outra gente”, em 1983? Com a palavra, Jairo Gerbase:

Em 1980 eu estava fazendo uma busca exaustiva sobre tudo que se havia publicado sobre Lacan. Foi assim que conheci uma conferência de Michel Foucault sobre “O que é um autor” (1969 [2006]), na qual Lacan estava presente e fez um comentário sobre a dependência do sujeito ao significante e o retorno a Freud. Foi também assim que conheci A criança atrasada e sua mãe (1964 [1977]), de Maud Mannoni, livro que adotei como referência quando fui professor de 1973 a 1984 na Universidade Federal da Bahia.

Um dia descobri uma observação sobre o sintagma “momentos fecundos da psicose”, feita por Frantz Fanon em relação a Lacan. A cada descoberta de qualquer palavra ou frase atribuída a Lacan eu as perseguia e foi assim que conheci Frantz Fanon. Verifiquei que Fanon se referia a Lacan no seu livro Peau Noire, Masques Blancs e solicitei a Éditions du Seuil um exemplar desse livro. Acho que já tinha um contrato com a Seuil para traduzir O nascimento do Outro (1980 [1984]) de Rosine e Robert Lefort. Acho que por isso a editora me sugeriu traduzir Fanon e me informou que o Ministério da Cultura da França estava dando incentivo à tradução de alguns autores franceses, dentre eles Fanon.2 Aceitei traduzi-lo, em princípio, porque estava procurando saber porque Fanon se referiu ao sintagma “momentos fecundos” usado por Lacan.

Eu não estava, portanto, primeiramente interessado no estudo do racismo ou do colonialismo, mas fui me identificando com o autor: médico, psiquiatra, político. Em anos anteriores, os anos de chumbo da ditadura, em que reuniões políticas eram proibidas, fizemos reuniões de associações científicas; os psiquiatras principalmente. No Brasil todos os psiquiatras já estavam contaminados pelas ideias renovadoras de Juliano Moreira. Eu mesmo me engajei no movimento conhecido como antipsiquiatria. Lia Ronald Laing, David Cooper (que depois descobri que havia participado juntamente com Lacan das Jornadas sobre a psicose da criança organizada por Maud Mannoni), Franco Basaglia, Gregory Bateson, David Liberman, Jurgen Reusch, Jay Haley etc. Ao descobrir Fanon eu descubro o racismo e assim como Neuza Santos Souza3 começo a me interessar pelo assunto. Aí eu me descubro negro.

Descobrir-se negro. Tornar-se negra. Frases que impactam o leitor de um modo distinto ao se considerar a década de 1980 do século passado e o momento atual, de desvelamento social, confrontos declarados e palavras precisas. Frases que foram enunciadas em tempos em que isso, que hoje pode parecer óbvio, leva a uma constatação: o negro existe e se faz reconhecer, como agente, em cada frase que se enuncia em primeira pessoa — me descubro negro, tornei-me negra. A despeito da lógica racista e colonial que o exclui, que devolve sua imagem em um jogo de espelhos, cujo reflexo é branco ou ausente, o negro pode afirmar-se. Contudo, esse processo de desalienação não pode ser tomado como uma afirmação do eu — afinal, como psicanalista, Fanon considera o inconsciente e sabe que o narcisismo é conceito central. Seu texto oferece outro espelho, desvela. “Como? Mal abri os olhos que me haviam vendado e já querem me afogar no universal? […] Preciso me perder na minha negritude, ver as cinzas, as segregações, as repressões, os estupros, as discriminações, os boicotes” (Fanon, 1952 [2020], p. 198).

O mito da democracia racial, que constituiu um modo de ver, interpretar e vivenciar o mundo, silenciou as denúncias de racismo, impediu seu reconhecimento e ainda persiste entre alguns. Mas suas bases fraquejam, a cada nova publicação e discussão sobre o tema. Com Pele negra, máscaras brancas, Fanon, em seu estilo entrecortado, por vezes elíptico e fragmentário, anuncia: “este trabalho almeja ser um espelho de infraestrutura progressiva, em que o negro em processo de desalienação possa se encontrar” (Fanon, 1952 [2020], p. 195). Cabe, portanto, desvelar o quanto o racismo se beneficia de teorias e clínicas que ignoram a cor — não qualquer cor — por supor o branco como universal e neutro. Ler Fanon é também repensar a clínica.

Sem dúvida, aprendi a ouvir as pessoas negras levando em conta sua cor. Há o a priori, ser de linguagem, e há o a posteriori, ser negro. Eu já era psicanalista e lacaniano, de modo que acolho Fanon como um psiquiatra que podia ser arrolado no movimento antipsiquiátrico e, ao mesmo tempo, como um psiquiatra muito próximo da psicanálise, inclusive de Lacan. Não por acaso todos os comentadores destacam sua interpretação psicanalítica do racismo. Eu estava muito interessado no conceito de Outro por causa do livro dos Lefort que estávamos traduzindo.

Planejei começar com Fanon uma coleção distinta de títulos de psicanálise e por isso apelidei a coleção de “Outra gente” no sentido de outro assunto ou outras tendências. Um assunto era a psicanálise, outro assunto era a política como chamamos, no sentido genérico, todos esses discursos: racismo, colonialismo, feminismo, eurocentrismo, sexismo etc. Ao mesmo tempo Neuza Santos Souza publica Tornar-se negro (1983), tornando público seu engajamento com a leitura de Fanon.

A contingência ou acaso significante que provocou a tradução de Fanon pode, sem dúvida, ser nomeado como momento fecundo, aquele que possibilitou o encontro entre a investigação minuciosa da produção lacaniana e a proposta de novas leituras, inaugurando uma coleção de textos, escritos por outra gente, traduzidos para o nosso português local. Essa outra gente circulava, ainda que sem reconhecimento efetivo, nos diferentes espaços da psiquiatria e da psicanálise — daí a importância de reconhecer-se negro/negra, de realizar reuniões em tempos de proibição dos encontros, de subverter a psiquiatria, ainda que por oposição. O momento fecundo desdobra-se no tempo e faz insistir outras perguntas: Quais as transformações produzidas e/ou reconhecidas pela cadência de um texto que convoca o pensamento de forma tão direta e contundente? Que estilo aí se anuncia em sua atualidade?

A meu ver, somos todos freudomarxistas, Fanon inclusive. Acho que vem daí sua atualidade. Foucault destaca que esses dois discursos são transdiscursivos. Não podemos falar de psicanálise sem nos referir a Freud. Não podemos falar de política sem nos referir a Marx. Lacan também é freudomarxista, seja porque toma ao pé da letra o conceito de formação de compromisso de Freud, seja porque traduz o conceito de mais-valia de Marx em seu conceito de mais-de-gozar. Sua máxima é: “Marx é o inventor do sintoma”. Fanon também é freudomarxista. Ora se apoia em Adler, no conceito de complexo de inferioridade, ora se apoia em Lacan, no conceito de complexos familiares.4

É muito interessante a aplicação conceitual que Fanon faz do “Outro” de Lacan ao binário branco-negro. O negro é o Outro do branco e o branco é o Outro do negro, ele diz. Por seu turno, é muito bem aplicado o conceito de “estádio do espelho” às questões de identificação do negro com o branco. Para tornar essas referências mais precisas vou citar alguns fragmentos em que Fanon evoca Lacan.

No capítulo 2, “A mulher de cor e o branco”:

Poderão alguns objetar que não há nada de psicótico nos negros de que estamos tratando aqui. Contudo, gostaríamos de citar dois traços altamente significativos. Há alguns anos, conhecemos um negro que era estudante de medicina. Ele tinha a sensação infernal de não ser valorizado, não academicamente, mas dizia ele, humanamente. Tinha a impressão infernal de que nunca seria reconhecido como colega pelos brancos nem como médico pelos pacientes europeus. Nesses momentos de intuição delirante, momentos fecundos da psicose, ele se embriagava… (Fanon, 1952 [2020], p. 74).

Eu conhecia a expressão grifada de um texto de Lacan sobre a psicose paranoica e fiquei curioso em saber que uso esse autor, Frantz Fanon, havia feito dele. Então, como disse, procurei o livro e encontrei o autor.

No capítulo 6, “O negro e a psicopatologia”, comparece a segunda referência a Lacan: “Em todos os casos, a família deve ser considerada ‘um objeto e uma circunstância psíquicos’”, em referência ao texto lacaniano de 1938, “O complexo, fator concreto da psicologia familiar”. (Fanon, 1952 [2020], p. 157). E, poucas páginas depois, encontra-se:

Queira-se ou não, o complexo de Édipo está longe de ser uma realidade entre os negros”, explicitado em nota de rodapé da mesma página. “Sobre esse ponto, os psicanalistas hesitarão em compartilhar nossa opinião. O dr. Lacan, por exemplo, fala da “fecundidade” do complexo de Édipo. Mas, se a criança deve matar o pai, ainda assim é preciso que este aceite morrer (Fanon, 1952 [2020], p. 167).

Em outra nota de rodapé, Fanon se refere mais uma vez a Lacan:

Certamente valeria a pena, com base na noção lacaniana do estádio do espelho, questionar em que medida a imago do semelhante, construída no jovem branco na idade que já sabemos, não sofreria uma agressão imaginária quando surgisse o negro. Quando se compreende esse processo descrito por Lacan, não há mais dúvida que o verdadeiro Outrem do branco é e continua sendo o negro. E vice-versa” (Fanon, 1952 [2020], p. 174–175).

Trata-se de um percurso que, de Lacan, me levou a Fanon.

Em sua Tese de Exercício (1951 [2020]), Fanon dedica um tópico à discussão da posição de Jacques Lacan nos debates psiquiátricos de período, buscando destacar quais elementos encontram-se em congruência com suas pesquisas.5 O que parece interessar ao autor é a ênfase dada por Lacan ao “ponto de vista social”, que permite conceber a psicose como “essencialmente social em sua origem, em seu exercício e em seu sentido” (Fanon, 1951 [2020], p. 371). Também ganha relevância a concepção de delírio como uma produção que se coloca em consonância com a história vivida do sujeito. Nesse sentido, a indissociabilidade entre social e psíquico permite apresentar a loucura como um fato social e subjetivo, bem como lança a fala do louco à condição de materialidade: “todo fenômeno delirante é, em última instância, um fenômeno manifesto, isto é, dito” (Fanon, 1951 [2020], p. 374).

Mas se o Fanon de 1951 busca construir um percurso próprio por meio de uma tessitura entre autores contemporâneos e a tradição psiquiátrica, o livro de 1952, Pele negra, máscaras brancas, cuja argumentação havia sido recusada pela banca avaliadora, dá um passo a mais e segue para além do que podia ser suportado no meio acadêmico de período. Fanon recorre à poesia para dizer o que não pretende gritar, mas que não permite silenciar. Citando Aimé Césaire, provoca o leitor “[…] livrai-vos de cruzar os braços na atitude estéril do espectador, porque a vida não é um espetáculo, um mar de dores não é um proscênio e um homem que grita não é um urso que dança…” (Fanon, 1952 [2020], p. 199).

A escrita de Fanon produz um leitor, aquele que se reconhece entre fragmentos e imagens, na condição de testemunha em sua dupla acepção — sobrevivente e terceiro em um processo que diz de uma luta histórica e subjetiva.

Quero concluir acrescentando um esclarecimento ao comentário do posfácio de Deivison Faustino: ocorreram dois erros na catalogação do livro na edição da Fator. A tradução é de Adriana Caldas e não de Adriano Caldas. A editora não é do Rio de Janeiro, mas de Salvador, Bahia.

Também não tivemos nenhuma influência do Movimento Negro Unificado. Neuza Santos Souza deve ter-se mudado para o Rio de Janeiro antes de 1980 de tal maneira que jamais houve um diálogo sobre nossa edição de Pele negra, máscaras brancas de Frantz Fanon e a edição de Tornar-se negro de Neuza Santos Souza.

Podemos supor que o estilo de Fanon, em Peau Noire, Masques Blancs, também se faz testemunho. Parte de uma declaração — “Por que escrever esta obra? Ninguém me pediu que o fizesse. Muito menos aqueles a quem se dirige. E então? Então respondo calmamente que existem imbecis demais neste mundo. E, tendo dito isso, cabe a mim demonstrá-lo” (Fanon, 1952 [2020], p. 21) — e termina com uma prece: “Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona!” (Fanon, 1952 [2020], p. 242). Testemunho de uma voz que ecoa, não como grito, mas como ato. Ato de palavra.