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George Orwell e o Left Book Club

Isabella C. Reiche

Com a entrada da obra do escritor anglo-indiano George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair, 1903–1950) em domínio público no ano de 2021, reforça-se no Brasil o interesse global por seus escritos, incluindo seus trabalhos de não ficção, que tem ganhado boas traduções nos últimos anos. Interesse que em muito decorre da expectativa de compreender os contextos críticos de elaboração de suas obras de maior ressonância, incluindo, no contexto brasileiro, Animal Farm (1945) e 1984 (1949). Além de desvendar os caminhos de sua narrativa, ainda pouco analisada no contexto acadêmico brasileiro se considerado o tamanho de sua popularidade no país, tal interesse expõe os reflexos do “mito” em torno da figura do escritor e jornalista. De um analista da situação social, política e econômica do entreguerras europeu, crítico do colonialismo, do fascismo e do autoritarismo soviético durante a Guerra Civil Espanhola e da cultura de massas em nascimento, a imagem geral que permanece de Orwell é aquela que foi cooptada pela Guerra Fria cultural e encapsulada na figura do “profeta” que desnudou o núcleo duro das experiências autoritárias do século XX.1

Sob essa aura quase mística, a historiografia de sua obra — especialmente em língua inglesa — desdobrou-se em interpretações endógenas e exógenas sob diferentes aspectos em torno de sua figura nas últimas décadas: desde sua “psicologia”, por suas relações intelectuais com seus contemporâneos até suas opiniões sobre o feminismo, o vegetarianismo e a indústria cultural.2 Um mosaico que, ao tentar desvendar os labirintos interpretativos que embasaram a construção de dois dos maiores best-sellers do século XX, ao fim, ajudaram também a embaralhá-lo.

Em meio a essa miríade interpretativa que já dura décadas, filtrada no espaço e no tempo em que seus trabalhos eram lidos e comentados, muitas das ideias originais de Orwell se deslocaram do contexto em que foram elaboradas, tanto quanto se confundiram com as próprias interpretações de seus críticos. Entre outros aspectos soterrados pela avalanche de reinterpretações de suas obras, tópicos fundamentais como a defesa do socialismo democrático ou sua crítica ao colonialismo são dissipados ante a própria perda de significado desses termos entre seus críticos.

A própria história da recepção da obra de Orwell engendra problemas fundamentais que devem ser ressaltados. Não apenas pela relação naturalmente conflituosa entre o produtor da mensagem e seu receptor (no caso, do escritor e sua relação com seu público leitor), mas diante da importância em se considerar o próprio meio em que a mensagem é (ou foi) veiculada, muitas vezes funcionando como filtro dessa mensagem.3

A história da recepção da obra de Orwell deve ser dividida em duas fases distintas, tendo em vista o papel da Segunda Guerra Mundial como limiar crítico para sua geração: 1) a audiência de Orwell até a primeira metade da década de 1940; 2) a reputação que o autor adquiriu no pós-guerra, tendo como marco a publicação de Animal Farm, em 1945 e, especialmente, de uma maneira ainda mais complexa, com a publicação de 1984, em 1949.4 Aqui, interessa-me destacar um momento específico dentro da primeira fase de sua recepção, o que cronologicamente corresponderia ao período entre a publicação de seu livro Down and Out in Paris and London, em 1933 e o início da década de 1940, tendo como marcos o fim da Guerra Civil Espanhola e o início da Guerra Mundial.

Mais especificamente, refiro-me aos debates gerados pela publicação do livro The Road to Wigan Pier, em março de 1937, por Victor Gollancz, sob o selo editorial do Left Book Club (LBC), o maior grupo da esquerda britânica entre as duas guerras mundiais. Victor Gollancz seria também o primeiro editor de Orwell, publicando todos os seus livros na década de 1930 e mantendo vínculos editoriais com o autor até a metade da década de 1940. A partir do lançamento desse texto, Orwell passa a ter uma repercussão mais ampla de seu trabalho, catapultada pela audiência massiva do LBC, o que incluiu a publicação de alguns artigos na revista oficial do clube, chamada Left News, distribuída gratuitamente para seus assinantes.

Nessa fase, ao mesmo tempo de consolidação de seu nome como crítico e como jornalista, outro problema fundamental se delineia: a censura sobre sua obra. Prática comum, é verdade, no período aqui considerado, mas que passa a atingir Orwell de maneira direta em relação a suas críticas aos grupos da intelligentsia britânica de esquerda expostas no The Road to Wigan Pier. A censura prejudicou a publicação de alguns de seus principais trabalhos posteriores ao livro lançado pelo LBC, como naquele que trata sobre a Guerra Civil Espanhola, intitulado Homage to Catalonia, de 1938, além de outros trabalhos de relevância do autor.

Do ponto de vista endógeno, a história das relações de Orwell com Gollancz e o Left Book Club são chave para compreender aspectos críticos de seus escritos a partir da metade da década de 1930, entre eles o papel da censura sobre sua obra. Do ponto de vista exógeno, ao mesmo tempo, ela se torna um ótimo exemplo das relações de sociabilidade e linhas de força que compunham os debates dentro das Frentes Populares entre as duas Guerras Mundiais.

O Left Book Club representou uma das faces mais organizadas do movimento de reação intelectual à crise que assolava a Inglaterra desde o início da década de 1930 e que daria sentido prático para o Popular Front britânico. Fundado em Londres em 1935, e estendendo suas atividades até 1948, o clube se juntou a inúmeras organizações e movimentos artísticos, entre eles grupos de teatro, produtoras cinematográficas, editoras, além de revistas e jornais, que tomavam corpo como um movimento coletivo unificado na pauta de promover as ideias socialistas frente à falência do discurso liberal e, adiante, na oposição ao fascismo.5

Elaborado por Victor Gollancz, John Strachey e Harold Laski, o projeto para o clube permitiu-lhe funcionar ao mesmo tempo como editora e como círculo intelectual. Como editora, o LBC participou diretamente ou em coedições na publicação de obras sobre as principais questões do período. Ao longo de seus anos de operação, o clube publicou 255 títulos diferentes, disponibilizados de maneira exclusiva a seus assinantes e em edições especiais abertas a não membros, tal qual ocorrera com o livro de George Orwell, em 1937.6 Até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o clube oferecia a seus assinantes dois títulos mensais — o título normal de cada mês e o chamado “livro do mês”, escolhido como uma edição especial para os membros — ao custo de 1/8 de Libra por título, passando a disponibilizar um único título após 1939, diante das dificuldades logísticas resultantes da entrada da Grã-Bretanha na Guerra. Além da edição de livros, o LBC distribuiu mensalmente para seus assinantes a revista Left News, com um total de 128 números, publicados entre 1935 e 1947.7 Já como círculo intelectual, o LBC atuou como um aglutinador de mais de 1.500 seções espalhadas pelo Reino Unido, entre clubes de leitura, escolas dominicais, grupos de teatro popular, grupos de exibição de cinema, além de quinze seções internacionais, em países como França, Austrália, África do Sul, Jamaica e Palestina.

Somadas ambas as atividades, ficava facilitada a costura de uma ampla rede de debates entre os principais grupos da esquerda britânica na década de 1930, muitos deles com ligações diretas com o Partido Comunista ou com o Partido Trabalhista britânico. Dados oficiais do clube indicam que em 1938, apenas três anos após sua fundação, seu número de filiados dentro do Reino Unido e no além-mar chegava a um total de 57 mil membros, constituindo-se como a maior organização política britânica à época.8

Rapidamente, o LBC se transforma no principal guarda-chuva dos intelectuais que integraram o Popular Front britânico, permitindo ao clube reunir ao seu redor uma gama imensa de posições dentro da esquerda local — entre pessoas mais ou menos próximas dos partidos mainstream, como o Communist Party of Great Britain (CPGB) ou o Labour Party, ou mesmo de correntes que buscavam certa independência política dentro da esquerda britânica, como o Independent Labour Party (do qual Orwell fora membro), ou até de intelectuais independentes e sem filiação política direta, como no caso do próprio Gollancz.

Pouco antes da fundação do LBC, em 1935, o VII Congresso da Internacional Comunista havia formado consenso na definição das Frentes Populares como tática de combate global à expansão do movimento fascista. Pouco tempo depois, a coesão desse movimento internacional seria testada no campo de batalha, quando estoura a Guerra Civil na Espanha. Para o Popular Front britânico, assim como para o LBC, os acontecimentos espanhóis foram decisivos na consolidação da dissidência ao Stalinismo, representado na Grã-Bretanha, a partir de 1935, pelas posições pragmáticas do CPGB.

O LBC seria atingido em cheio por estes debates, já que o clube funcionava como núcleo de coesão dessa militância espalhada pelo país e com diversas ramificações nas colônias. Mesmo que sob uma conjuntura de pressão a fim de manter a unidade na luta antifascista, já no final da década de 1930, o clube abrigava um núcleo destacado da esquerda anti-stalinista britânica. O LBC publicaria, por exemplo, alguns dos mais importantes, e também pioneiros, trabalhos críticos dentro da Grã-Bretanha sobre a ação comunista durante a Guerra Civil Espanhola. A própria guerra já havia mobilizado o aparato do clube e seus membros, incluindo Victor Gollancz, seu editor-sênior, em diversas causas humanitárias, como o apoio a refugiados bascos e o envio de suplementos médicos às vítimas da guerra na Espanha.9

Em meio a essa conjuntura, The Road to Wigan Pier de Orwell é lançado pelo LBC em março de 1937. Publicado simultaneamente em edição aberta e exclusiva para os membros do clube, a obra saiu com tiragem inicial de 43 mil cópias.10 O livro correspondeu a uma reportagem encomendada por Gollancz, com fins de proporcionar um retrato das condições de vida e trabalho dos mineiros das cidades de Yorkshire e Lancashire, no norte da Inglaterra, devastada pela crise da década de 1930. Durante o período em que passou nestas duas cidades, Orwell se hospedou em casas de mineiros e relatou a persistência de algumas formas de manifestações culturais tradicionais — como canções, hábitos alimentares, distribuição dos móveis dentro das casas etc. Características que representaram para Orwell formas muito peculiares à classe trabalhadora inglesa,11 ao mesmo tempo em que serviam como contraponto à imagem estereotipada que circulava nos debates dos grupos intelectuais de universitários, em especial dos círculos de Oxford e Cambridge, sobre o proletariado e a classe trabalhadora internacional.

Orwell dividiu seu livro em duas partes: na primeira, narrou em prosa, quase como um relato em primeira mão, as condições de vida e moradia dos mineiros e suas famílias. Já na segunda parte do livro, num tom autobiográfico, colocou sua narrativa na perspectiva de um observador que, mergulhando no cotidiano da classe trabalhadora, tratou esse mergulho como um processo complexo de autoconversão ao socialismo. Sobre isso Orwell escreve:

[…] Fui lá [nas cidades de Yorkshire e Lancashire] em parte porque queria ver como era o desemprego em massa sob os seus piores aspectos, e em parte com o intuito de ver de perto a região mais típica da classe trabalhadora inglesa. Isso me foi necessário como parte da minha aproximação ao socialismo, pois antes de se ter certeza de que se é genuinamente a favor do socialismo, deve-se decidir se o atual estado de coisas é tolerável ou não, e tem-se de assumir uma atitude clara com relação à questão das classes, terrivelmente difícil.12

Processo de conversão, no entanto, traumático, pois significava confrontar o discurso político das esquerdas britânicas com a dura realidade empírica da vida dos trabalhadores. Ou, mais traumático ainda, tratava de desconstruir suas próprias experiências como um membro das classes médias, baseadas em preconceitos erigidos por mais de um século. A situação de miséria, desnutrição, insalubridade e abandono de várias famílias de mineiros nas regiões industriais da Inglaterra contrastava de maneira muito clara com a condição das classes intelectuais nas grandes cidades, como Londres. Segundo o autor, o distanciamento social e econômico entre ambas as classes impedia uma compreensão correta não apenas das circunstâncias da vida dos trabalhadores, mas dos caminhos práticos a serem tomados a fim de sanar seus problemas. Sobre isso, Orwell constata:

Um indivíduo de classe média adota o socialismo e talvez até entre para o Partido Comunista. Será que isso faz mesmo alguma diferença? É óbvio que, vivendo dentro da estrutura da sociedade capitalista, ele tem que continuar a ganhar a vida, e ninguém pode culpá-lo por se manter fiel ao seu status econômico burguês. Mas será que houve alguma mudança no seu gosto, nos seus hábitos, na sua conduta, na sua imaginação — na sua “ideologia”, para usar o jargão comunista? Houve alguma mudança nele, a não ser o fato de que agora, nas eleições, ele vota no Partido Trabalhista, ou, quando possível, no Partido Comunista?13

Para Orwell, a crise social da década de 1930 assemelhava a pauperização das classes trabalhadoras europeias, especialmente nas grandes regiões industriais em cidades do norte inglês, como Manchester, Birmingham, Liverpool, aos níveis de pobreza extremos das populações coloniais, exploradas pelo imperialismo. Em 1937, em The Road to Wigan Pier, ele escreve:

[…] percebi não ser necessário ir a Birmânia para encontrar tirania e exploração. Aqui na Inglaterra, bem a meus pés, estava a classe trabalhadora carente, passando fome, e o seu sofrimento, embora diferente, era tão terrível quanto o de qualquer oriental.14

Apesar da polêmica causada com a intelligentsia britânica de esquerda por conta dessas posições, suas opiniões chamaram a atenção dos críticos e desencadearam o crescimento do interesse por sua obra, nem sempre, no entanto, com recepções elogiosas. A fim de pacificar os ânimos dos leitores do clube, incomodados com as críticas de Orwell, Victor Gollancz insistiu na inclusão de uma “nota introdutória” no início da edição lançada apenas para os membros assinantes do LBC. Nela, é possível ler uma clara tentativa de Gollancz em se distanciar das opiniões do autor. Além de posicionar os atores da contenda no palco das disputas internas da esquerda britânica, reconstruindo os laços de sociabilidade política dos grupos intelectuais locais, a relação conflituosa de Gollancz e Orwell mostra como o LBC, justamente por representar um centro gravitacional de diversas matizes, era suscetível às tensões políticas e ideológicas de composição do Popular Front.

Gollancz inicia a nota esclarecendo aos leitores as posições dos editores do clube — ele próprio, junto com John Strachey e Harold Laski —, responsáveis pela escolha dos títulos e autores que comporiam as obras selecionadas para publicação. Ao mesmo tempo, Gollancz trata de definir as linhas editorias do LBC e seus critérios para a escolha dos títulos:

[…] O Left Book Club não tem uma “política”: ou melhor, não tem uma política diferente das pessoas que encampam a luta contra a guerra e o fascismo. Como eu disse em outro lugar, não seria sequer correto dizer que a Frente Popular é a política do Left Book Club, embora todos os três editores sejam entusiasticamente a favor dela. O que sinto é que em vez de dar uma ampla distribuição de livros que representem vários tons da Esquerda (e talvez, acima de tudo, por possibilitar instalações para a discussão desses livros em 300 locais e círculos que surgiram em todo do país), estamos criando a base de massas, sem a qual uma verdadeira Frente Popular é impossível. Em outras palavras, a Frente Popular não é a “política” do Left Book Club, mas a própria existência do Left Book Club tende a promover uma Frente Popular.15

Nesta passagem, as linhas editoriais do clube estão bem definidas. Segundo Gollancz, o LBC tinha como intenção difundir o socialismo entre os grupos e círculos intelectuais britânicos que se formavam em bom número ao longo dos anos 1930. O foco era criar “as bases de massa”, sem a qual uma “genuína Frente popular” seria impossível de se estabelecer. As aspirações para a elaboração das próprias linhas editoriais do clube passam por formar um público pronto para receber as ideias socialistas moldadas sob a crise social e econômica. O clube assumia para si a intenção pedagógica de educar esse “novo público” para promover a ascensão do socialismo na Inglaterra, o que explica a metodologia de financiar, tal qual se dera com Orwell, livros que proporcionassem “várias faces das opiniões da esquerda”, que “contribuíssem de maneira geral no combate à guerra e ao Fascismo”.

Veja-se que, ao estabelecer como intenção primordial a divulgação de várias faces da esquerda, Gollancz mantém, ao mesmo tempo, a legitimidade editorial do clube — seu caráter não ortodoxo e nem restrito a uma linha partidária definida — e a própria capacidade do livro de Orwell em proporcionar uma dessas faces, contribuindo justamente na criação de uma frente multifacetada. Por isso, Gollancz reconhecia a contribuição do livro de Orwell para a formação intelectual do público aglutinado ao redor do clube:

Mas nós sentimos que um prefácio para The Road to Wigan Pier é desejável, não apenas tendo em vista o equívoco a que me referi, mas também porque acreditamos que o valor do livro, para alguns membros, pode crescer consideravelmente com apenas uma orientação sobre certos temas vitais que surgem de uma leitura do livro. O valor pode ser crescer: quanto ao valor positivo em si, nenhum de nós tem a menor dúvida. Quanto a mim, faz muito tempo que não lia um livro tão vivo, tão completo de uma ardente indignação contra a pobreza e opressão.16

Depois desse reconhecimento do trabalho de Orwell, ao menos, em se “indignar com a pobreza e a opressão”, Gollancz inicia uma dissecação do livro, escrutinando os pontos que ele próprio, e, como consequência, o clube, discordavam. A primeira parte é descrita por Gollancz como um retrato vívido das reais condições da classe trabalhadora na Inglaterra dos anos de 1930:

[…] Na parte I, o Sr. Orwell faz um relato em primeira mão da vida da classe trabalhadora e da população de Wigan. É um registro das condições do terrível mal, falta de habitação, salários miseráveis, desemprego e falta de esperança: é também uma homenagem à coragem e paciência — paciência muito grande. Não posso imaginar nada mais provável para despertar os “não convertidos” de sua apatia do que uma leitura desta parte do livro, e estamos anunciando no número atual da Left News um esquema através do qual esperamos que os membros possam fazer uso do livro para este fim. Estes capítulos são realmente o tipo de coisa que realiza conversões. 17

A capacidade descritiva e informativa de Orwell, Gollancz reconhece, é inquestionável. É, porém, a partir da segunda parte que, segundo o editor do clube e patrocinador do livro, os problemas começam. Para Gollancz, toda essa parte, baseada num “estudo autobiográfico” no qual Orwell, ao mesmo tempo em que admite sua conversão ao socialismo, critica duramente a intelligentsia de esquerda na Inglaterra, reflete, única e exclusivamente, a trajetória pessoal do próprio autor. Gollancz escreve:

[…] O Sr. Orwell ainda é uma vítima desta atmosfera da infância, em sua casa e da escola pública, que ele próprio expôs de forma tão eloquente. Sua consciência, seu senso de decência, sua compreensão das realidades, dizem-lhe para declarar-se socialista, mas lutar contra essa compulsão que existe nele o tempo todo, uma compulsão muito menos consciente, mas quase — embora, felizmente, nem sempre — tão forte: a compulsão de conformidade com os hábitos mentais de sua classe. É por isso que o Sr. Orwell, olhando para um socialista, fareja […] certa irritabilidade nele; e ele encontra, como exemplos desse mau humor, um ódio à guerra (pacifismo), um desejo de ver a mulher já não oprimida pelo homem (feminismo) e uma recusa em reter o conhecimento que irá adicionar um pouco de felicidade para certas vidas humanas (controle de natalidade).18

É importante considerar, no entanto, o peso das questões endógenas na condução prática das políticas editoriais do LBC e a influência da Guerra Civil Espanhola dentro do Popular Front britânico e, consequentemente, na ação do LBC ao longo da segunda metade da década de 1930. Como dito acima, entre 1936 e 1937, a Espanha serviu como o primeiro teatro militar de atuação das Frentes Populares na luta contra o avanço fascista a partir da defesa da República espanhola contra os golpistas. Unidade, contudo, que se romperia poucos meses depois da publicação do livro de Orwell, em maio de 1937, diante da ação dos comunistas em suprimir a dissidência, formada por anarquistas e outros grupos socialistas, como o trotskista Partido Obrero de Unificación Marxista (P.O.U.M.)

Quando o The Road to Wigan Pier foi publicado em Londres, Orwell já se encontrava na Espanha, filiado ao P.O.U.M., combatendo na frente de Aragón e enviando textos para a imprensa britânica, narrando os acontecimentos espanhóis, suas experiências na frente de combate e o desenrolar político da guerra.19 Da Espanha, Orwell escreveu a Gollancz, em 1º de maio de 1937, agradecendo o prefácio ao The Road to Wigan Pier e a possibilidade de debate que ele gerou.20 Na mesma carta, Orwell anuncia a Gollancz a ideia para um novo livro, dedicado a apresentar tudo aquilo que ele tinha visto até então na Espanha (e esse livro seria o Homage to Catalonia).

As críticas de Gollancz a Orwell surgem então no contexto de polarização da esquerda internacional em meio à ruptura da Frente Popular republicana na Espanha, quando, desde maio, anarquistas e trotskistas foram expurgados como quinta coluna pelos comunistas, e seus militantes estavam sendo perseguidos e encarcerados nas chamadas chekas.21 Mesmo que as denúncias quanto ao racha da Frente Popular espanhola não estivessem isoladas na obra de Orwell — ao contrário, pululando em vários outros livros e artigos que circularam na imprensa britânica da época —, para Gollancz aquela não era a hora de transpor as rusgas da Frente Popular espanhola para dentro da Inglaterra, ao risco de forçar uma cisão dentro do Popular Front britânico. E, segundo Gollancz, as duras opiniões de Orwell, tanto no The Road to Wigan Pier quanto em seus primeiros textos que já circulavam na imprensa britânica sobre a situação na Espanha, forçavam essa polarização.

O manuscrito de Homage to Catalonia nem sequer havia chegado às mãos de Gollancz, que o recusa em carta a Orwell, datada de 5 de julho de 1937, afirmando ser incapaz de publicar um ataque aos comunistas naquele ponto da guerra. Apesar de um contrato em vigência com Gollancz, Orwell consegue negociar uma liberação para apresentar o livro a outra editora, enviando o manuscrito a Martin Secker, que se interessa. O livro seria publicado, por fim, em 25 de abril de 1938, com tiragem inicial de 1.500 cópias pela editora Secker & Warburg, em Londres.

A crítica de Gollancz teve efeitos profundos nas relações editoriais com o autor do The Road to Wigan Pier, justamente pelo fato de Gollancz ter detido os direitos de publicação da obra de Orwell até 1946. Além do Homage to Catalonia, Gollancz se recusou a publicar outros trabalhos de Orwell: entre eles, seu principal ensaio de crítica literária, Inside the Whale, em 1940, e Animal Farm, de 1945. Orwell só conseguiria se libertar do contrato com Gollancz após acertar com Frederic Warburg, que passou a ser seu editor na Inglaterra a partir de 1946.

A coesão, por muitas vezes tênue, proposta pela ideia das Frentes Populares entre a esquerda internacional daqueles anos, criou uma aura de autocensura inevitável em torno das atividades do LBC. Devido ao anticomunismo da política nacional britânica, pelas tentativas de ingerência do CPGB nas atividades e publicações do LBC,22 o terreno em que o LBC atuava era movediço. Gollancz deixa isso claro, por exemplo, em resposta à carta de R. Wood, de Leeds, enviada em 4 de fevereiro de 1946,23 quando afirmaria não saber como tratar de temas ligados à URSS, pois “[…] O problema é que eu não quero ‘assustar’ uma parcela grande dos membros, porque eu acredito que eles podem ser educados” (grifo meu). Nesta carta, Gollancz respondia à sugestão de R. Wood pela publicação do livro The Betrayal of the Left (organizado por ele, Gollancz, Strachey e Orwell) no formato de artigos, publicados pela Left News. No diálogo estabelecido em ambas as cartas entre Woods e Gollancz, fica evidente que o editor do LBC se autocensurava, e também ao clube, evitando publicar temas que levassem a um choque grande de opiniões com os comunistas, já no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, como aconteceu com os livros de George Orwell.

É importante reforçar que, nesse contexto, Orwell não foi caso isolado ao sofrer algum tipo de censura por parte de Gollancz — tanto através do Left Book Club quanto através de sua editora particular, a Victor Gollancz Ltd. Outros escritores também tiveram trabalhos ou editados pelo corpo editorial do clube ou mesmo recusados em sua totalidade diante dos temas que abordavam. Em 1942, por exemplo, Gollancz recusa um livro proposto pelo intelectual marxista caribenho George Padmore. Nascido em Trinidad e radicado em Londres, no começo da década de 1940, Padmore já era reconhecido como um dos principais ativistas negros dos movimentos da diáspora africana na Europa, costurando ligações entre grupos panafricanistas e a esquerda internacional em Londres. A Gollancz, Padmore propôs a publicação do livro Britain, Soviet Union and the Colonial Question, que trataria, de forma comparativa, das políticas britânica e soviética para a questão colonial. O livro chegou a ser aceito por Gollancz para publicação, o que incluiu a assinatura de um contrato entre Padmore e o editor. Pouco tempo depois, contudo, Gollancz recua e desiste da publicação pelas mesmas razões que, anos antes, havia recusado o livro de Orwell: não saber como lidar com as críticas à URSS — agora, no momento em que os países colaboravam na frente de batalha contra o nazifascismo.

É evidente, então, que diante das posições assumidas por Gollancz como um patrocinador do Popular Front britânico, especialmente através do papel organizacional desempenhado pelo LBC, o editor teve não apenas que acomodar opiniões e posições políticas muitas vezes conflitantes, mas teve que traçar estratégias práticas para manter a coesão tênue desses grupos. Entre essas estratégias, a autocensura pareceu um caminho não apenas de sobrevivência física e empresarial (haja vista as pressões do governo britânico em torno da comercialização de livros que veiculassem ideias de esquerda, o que resultou no acompanhamento das atividades do clube pelos órgãos de segurança britânicos como a Scotland Yard ou o MI5),24 mas uma tática também no campo político para não ferir os humores de militância que congregava.

O tema da censura e autocensura que cercou a atuação das esquerdas no período entre as duas Guerras Mundiais é complexo e tem gerado longos debates há décadas. A composição das Frentes Populares na metade da década de 1930, a formação do bloco Aliado para combater o Eixo durante a Segunda Guerra Mundial e a relação dos Estados com as questões coloniais, por exemplo, alimentaram os debates em torno do papel da censura na atuação individual de homens e mulheres que viam suas liberdades individuais suprimidas ora pela política institucional, ora por partidos, ora por comprometimento para com as afinidades eletivas dos grupos políticos. No contexto nacional britânico, é sabido o papel desempenhado, por exemplo, pelo Home Office e pelo MI5, na vigilância sistemática de diversos escritores que orbitaram em torno do LBC, entre eles Orwell.25 Ou mesmo nas relações controversas que alguns escritores tiveram com esses mesmos órgãos de segurança, especialmente no limiar da Guerra Fria — como no caso do próprio Orwell e sua famosa “lista” de colaboradores comunistas enviada para o Home Office no final da década de 1940.

Retomar as experiências, tensões e debates dentro das Frentes Populares da segunda metade da década de 1930 deveria servir como contraponto histórico às novas formas e estratégias de combate organizadas dos grupos progressistas no século XXI, quando a neoextrema direita se mostra, assim como o fez no período entre as duas guerras mundiais, organizada e unificada.