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O poema e a margem de recusa — notas de leitura sobre Augusto de Campos

nãomevendo, 1988. Augusto de Campos

A recusa é um recurso poético fundamental na obra de Augusto de Campos porque ela é medida e cálculo da imaginação. Mesmo que esses aspectos se ampliem, é bom retê-los em termos de procedimentos de leitura: o primeiro deles tem como ponto mais alto a antologia Poesia da recusa, de 2011; o segundo talvez estivesse na meta estabelecida em O anticrítico, de 1986, no qual afirma: “a minha meta é a poesia, que — de Dante a Cage — é cor, é som, é fracasso de sucesso, e não passa de uma conferência sobre nada” (1986, p. 10). Não custa resumir que Augusto mantém esta meta com sua obra que, por mais que seja a de poetamenos, sempre se amplia pela precisão da palavra. Por isso, os dois termos, medida e cálculo, são importantes para Augusto de Campos, pois demonstram que o sujeito poético não existe sozinho, ao contrário, ele habita intervalos específicos entre invenção e memória. Intervalos que só a palavra pode criar. A recusa, assim, faz parte do compasso do poeta, já que ela fornece um ritmo pelo qual ele afirma não a si mesmo, mas os intervalos de modo que cada recusa produz uma nova margem.

Dado que a recusa pode ser um critério e que tal critério pode ser uma medida tanto crítica quanto poética, Augusto de Campos faz crítica pela tradução. O projeto mais explícito é Linguaviagem, de 1987, livro no qual está escrito na quarta capa “crítica via tradução”. A tradução, por sua vez, não existe sozinha, pois uma característica infraleve (Duchamp) da sua obra é a maneira com a qual ele narra o poema, seja por sua história, pela topografia de alguns versos e pela relação com outros poetas. Assim, ao contar histórias de poemas, surge uma “prosa ventilada” (ventilated prose). A expressão vem dos versos de Untitled Epic Poem on the History of Industrialization, de R. Buckminster Fuller, que foi utilizada como epígrafe n’O anticrítico (1986, p. 9) e traduzida como “prosa porosa”. Embora exista no livro um método de seleção e de comentário caro a Ezra Pound, Augusto de Campos fez dele um traço característico e único na sua obra. Quando se utiliza o termo “comentário”, não se trata de um estudo hermenêutico dos sentidos do poema ou das dimensões filológicas das edições, mas de uma liberdade do poeta de explicar as próprias escolhas, soluções encontradas para traduções e a “prosa porosa” que decorre da apresentação do poema.

Trata-se de uma tradição a qual Walter Benjamin não reprovaria num poeta, isto é, no modo com que ele não se contentaria em apresentar o que é mais emblemático do mundo, mas, sim, por outro lado, de recompor a dimensão menos visível, menos palpável, menos ouvida, menos tocável que vem da poesia. Sempre menos, pois é por esse “sinal de menos” (Eduardo Sterzi, 2006) para o mundo que o poeta recompõe uma paleta de sentidos que, provavelmente, teria ficado perdida ou fossilizada na própria insignificância. Por esse viés, o poema é muito mais voltado para os sentidos do que para a emoção, pois como T.S. Eliot demonstrou no ensaio “Tradição e talento individual”, “a poesia não é uma frouxidão da emoção, mas uma fuga da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade” (1968, p. 195). O que pode ser ajustado à luz de Augusto de Campos é que sua obra implica na passagem da emoção ao sentido e que esta “fuga” é expressada pela recusa. Com um adendo: uma recusa com uma capacidade de ser contada e transmitida.

Quando o poeta recusa, seu gesto de dizer não ao mundo, implica em afirmar uma responsabilidade e uma ética das margens. Com todas as polêmicas, Ezra Pound o fez com os Cantos, Marcel Duchamp com o Grande vidro, e, John Cage, com a composição 4’33 enquanto trabalhava nas sonatas e interlúdios: são obras que não sintetizam o conjunto de cada um desses três artistas, mas apresentam momentos para os quais a poética da recusa de Campos também se voltou. Nela também estão incluídas a relação de Pound com os trovadores, de Duchamp com o ready-made e de Cage com os poemas acrósticos, suas conferências sobre o nada, sobre o compromisso. Aliás, é parafraseando Cage, a partir de Marcel Duchamp, que se pode afirmar se Augusto de Campos não tivesse vivido, era preciso que vivesse alguém exatamente igual a ele, para que pudesse existir um mundo como esse que estamos começando a conhecer e experimentar” (Cage, 1985. p. 70). A questão é que Augusto não está sozinho, pois, além dele, há as contribuições de Décio Pignatari e de Haroldo de Campos no que concerne o momento da poesia concreta, fundamentais para aqueles que a acompanharam entusiasmados e até para os que dela discordaram. Mas as parcerias dos referidos poetas foram além e, no Brasil, é muito difícil situar a poesia concreta como um momento histórico ao qual os próprios poetas que a inventaram deram por encerrada. Um exemplo disso está no prefácio da segunda edição de Teoria da poesia concreta, datado de abril de 1975, dez anos depois da primeira impressão do livro. Ao assinar o prefácio da referida edição, Augusto afirmou que a coleta de dados depois dos anos 1960 seria mais eficaz se fosse levada a cabo por historiadores literários (2006 [1975], p. 14). Essa é uma tarefa que nos cabe ao ler e ao comparar o fenômeno da poesia concreta no Brasil e fora dele, comparando-o com outras vanguardas pós-históricas e, inclusive, as hispano-americanas. Tarefa que pode se prolongar em cursos, seminários, textos e discussões, inclusive sobre as parcerias e rumos que vieram depois da internacionalização deste modo poético e diverso de criação, crítica e tradução.

Um exemplo de parceria fundamental para Augusto de Campos foi o trabalho em binômio com Julio Plaza que lhe rendeu Poemóbiles (1974), Caixa preta (1975), e Reduchamp (1976). O intervalo de tempo de realização é curto (1974–1976), mas o efeito dos livros-objetos se prolonga até hoje em museus, galerias e exposições temporárias. Reduchamp, por exemplo, teve a primeira edição pela S.T.R.I.P e dele pode-se extrair uma sensibilidade feminina do olhar de Augusto, a saber, com fato de chamar atenção para Rrose Sélavy, pois o travestimento de Duchamp teve uma recepção tardia. Essa leitura, por sua vez, será muito mais apurada a partir de seus estudos sobre Pagu no livro Pagu Vida-Obra,1 de 2014. Não obstante, remontando Duchamp, ele escreveu em “prosa porosa” o seguinte: “o artista desaparecia/ em seu lugar um heterônimo feminino/ RROSE SÉLAVY (implicando: arrose, c’est la vie/ e éros, c’est la vie)” (2009 [1976]). Arremata-se um forte critério da recusa: desaparecer implica em afirmar um eros do signo, pois não se desaparece, todavia, de qualquer modo. Essa arte implica uma mescla de astúcia e técnica, sutileza e força a partir das quais existem tanto bibliotecas à espreita quanto uma comunidade de poetas num sentido amplo em termos de dissensões, dado que, as sensações, de semelhança em dessemelhança, são discernidas. Nesse ponto Pagu e Rrose Sélavy são signos eróticos do desaparecimento e da recusa, tradições cultivadas e desenvolvidas por Augusto de Campos.

Como se pode observar a partir de T.S. Eliot, o poeta não herda tradições. Eliot escreveu:

Se alguém pretende obtê-la [a tradição], deverá lutar muito para consegui-lo. Ela envolve, em primeiro lugar, o senso histórico, quase indispensável a qualquer pessoa que pretenda continuar sendo poeta depois dos vinte e cinco anos de idade; por sua vez, o senso histórico envolve uma percepção, não só da consumação do passado mas de sua permanente presença; o senso histórico faz com que um homem não escreva apenas tendo em vista sua própria geração e sim com o sentimento de que toda a literatura da Europa desde Homero até a literatura de seu próprio país nos dias presentes possui uma existência simultânea e compõe uma ordem global

(1968, p. 190)

A partir do fragmento de Eliot, outra diferença se impõe, primeiro, por pura geografia: a América Latina não é a Europa. A leitura de todas essas tradições, às quais se deve incluir a russa e a norte-americana, amplia a dimensão das bibliotecas e da comunidade de poetas que seria, sobretudo, baseada na recusa que cria margens. Augusto não escreveu demasiado, ele escreveu o necessário e, com isso, captou a temperatura ética e poética dos textos de outros que ele faz para si. Isto é, um poema traduzido por ele não deixa de ser uma peça de Augusto de Campos. Nesse sentido, as geografias reais e poéticas se fundem no cálculo da imaginação e se confundem de tal modo que nos seus livros existem bibliotecas de poesia à espreita. Poesia da recusa é uma delas. Na capa branca com vermelho lê-se os nomes dos seguintes poetas: Kuhlman, Mallarmé, Blok, Akhmátova, Pasternak, Mandelstam, Iessiênin, Tzvietáieva, Yeats, Gertrud Stein, W. Stevens, Hart Crane, Dylan Thomas. O autor desta antologia-biblioteca declina a recusa ao traduzir autores provenientes de outras tradições poéticas e geográficas.

Há um parágrafo lapidar na apresentação da antologia na qual existe uma espécie de comunidade da recusa existente pelas “formas de desacordo” (Campos, 2011, p. 17) do poema:

Os poetas aqui reunidos, por diferentes que sejam entre si, têm em comum a bandeira da recusa. Evidente nos enigmas de Mallarmé, exposta dramaticamente na voz abafada dos russos da “geração que dissipou seus poetas”, segundo a expressão de Jakobson, também está presente nas propostas radicais de Gertrude Stein e nas especulações mais ousadas do Yeats pós-Pound. E ainda nas abstrações imagístico-expressionistas de Wallace Stevens (“How many poems he denied himself?”) ou de Hart Crane, que se suicidara em 1932, juntando-se ao rol dos grandes poetas russos, seus contemporâneos, Iessiênin e Maiakóvski, mortos pelas próprias mãos em 1925 e 1930, e à cuja trágica renúncia viria somar-se também a de Tzvietáieva, em 1941. O poema em que esta os homenageia — um diálogo imaginário pós-morte entre os seus coirmãos, literariamente antagônicos, mas unidos pela rebeldia poética e pelo mesmo trágico fim — emblematiza essa forma-limite de recusa

(2011, p. 16).

A conversa entre Iessiênin e Maiakóvski nos versos de Tzvietáieva permite aproximações sonoras, deslocamentos culturais (“Mano, vamos minar”) nos seguintes três últimos quartetos com os quais ela conclui: “E já que é sempre o mesmo,/ Volódia, meu irmão,/ De novo as mãos usemos,/ Embora já nem mão// Nos reste./ — Sim, sem nada,/ Mano, vamos minar/ Este reino sem czar/ Com mais uma granada!// E sobre a madrugada/ Por nós inaugurada —/ Sierioja, uma granada!/ — Uma granada, Vlad!” (2011, p. 164). Essa conversa de russos paulistanos mantém uma imagem cara ao tradutor: a do reino sem czar, pois ela se remete ao seu livro de estreia em poesia: O rei menos o reino (1949–1951). A condição de recusa do poeta estava lá. Ela se prolonga por outras vozes que encontram em Augusto de Campos uma passagem para a língua portuguesa. Assim, a partir desse percurso prospectivo que pode estar num único verso e que faz parte do ritmo do conjunto, existe uma invenção contínua da margem.

Nesse sentido, não há uma distância cronológica tão grande entre os poetas da recusa nos mais diversos períodos históricos porque, em primeiro lugar, o poeta é um inventor do tempo. A partir do poema emergem temporalidades na contracorrente das disciplinas cronológicas e evolutivas, pois as seleções, traduções e montagens imprimem acelerações e desacelerações, projetam o passado no futuro, suspendem o presente ou o remontam de modo combinado com outros tempos. A elaboração de margem é um cálculo da imaginação. Ela pode ser infinitamente mínima, pequena, e mudar de forma na medida em que se monta o tempo com outros poemas a partir de um jogo. A partir dessa prática, é possível se remeter a um termo alemão que foi caro a Walter Benjamin, Spielraum, que significa simultaneamente “espaço de jogo” e “margem de manobra”. Benjamin, que foi um exímio tradutor de Proust e mais precisamente de Baudelaire, soube que, por “vivências léxicas e sondagens poéticas” (1986, p. 162) — os termos são de Augusto de Campos — o recurso da margem é fundamental para a poesia. Por exemplo, para o autor de O rei menos o reino, a poesia opera uma redução que não é síntese, mas novas demarcações dentro da margem. Décio Pignatari escreveu em 1951: “— Apenas o amor e, em sua ausência, o amor/ decreta, superposto em ostras de coragem,/ o exílio do exílio à margem da margem” (1989, p. 7). Esse foi o ponto de partida de À margem da margem. Que a margem que dá margem à outra seja um acontecimento poético, essa é a fórmula vinda do livro de estreia de Pignatari, O carrossel. A marginalidade explorada no livro de Augusto de Campos buscou “vozes dissonantes, minoritárias” (1989, p. 9) em meio às quais está a força da voz de Décio Pignatari. Também dela emerge o caráter de biblioteca à espreita: é um Flaubert que faz falta, Michel Butor e sua prosa móbile, o Finnegans Wake, de Joyce, e até vozes poéticas como as de Giuseppe Gioachino Belli (1791–1863) que merece um destaque especial, pois em um dos parágrafos do ensaio fica bem explícita a sensibilidade do “anticrítico”:

“Flashes” fellinianos, diríamos hoje desses cine-sonetos que extraem do dia-a-dia o seu ácido ceticismo, filtram o sal da linguagem nos malapropismos da língua popular, para flagrar o sensível e o poético no grotesco e captar o engenho no ingênuo. Salva, por mãos compreensivas, de fogo a que ele — censor de si mesmo — a condenara, a poesia desse Rabelais romanesco, caminhando contracorrente, contra ele próprio, ainda fustiga e instiga.

(Campos, 1989, p. 56)

As equações entre cinema, fotografia — no texto o autor insere algumas imagens da Piazza Gioacchino Belli que também dá nome a uma padaria — e cotidiano da língua na vida italiana, demonstram um equilíbrio na análise do poema, cujo centro estaria no modo de flagrar o sensível e captar o engenho no ingênuo. A seguir, o poeta apresenta suas traduções. Um dos poemas de Belli, um soneto de 1831, apresenta o aspecto inventivo antes exposto na tradução do poema de Tzvietáieva. O título do soneto é “Er giorno der giudizzio” traduzido por “O dia do juízo”:

Quatro marm’anjos botarão a boca
No trombone, um em cada canto, e então,
Com toda a força dos pulmões dirão:
“É hora, pessoal. Fora da toca!”
Depois virá chegando a maçaroca
De esqueletos, da terra, de roldão,
Catando os corpos pra reunião,
Pintos em torno da galinha choca.
E a galinha será Deus poderoso,
Separando a pureza da sujeira:
Uns vão pro caldeirão, outros pro gozo.
Por último virá uma fieira
De arcanjos: um a um, belo e formoso,
Apagarão a luz e “bona sera”.2

Boris Schnaiderman, em “O ‘intraduzível’ recriado” fez um comentário sobre o primeiro quarteto do referido poema: “Aquele ‘marm’anjos’ é realmente um achado incrível, que nos faz pensar no prodigioso instrumento que temos em mãos, este maravilhoso português do Brasil. O problema está em utilizá-lo adequadamente” (Guimarães, Süssekind, 2004, p. 315). Existe no poema a margem do intraduzível. Mantê-lo pulsando na matéria das palavras vai tanto do termo “marm’anjos” quanto na expressão italiana que permanece original e, ao mesmo tempo, não estrangeira ao português brasileiro, sobretudo em São Paulo e seu histórico com a migração italiana.

Existe uma relação de parentesco entre À margem da margem, O anticrítico e Linguaviagem porque são livros em que a “prosa porosa” sobre os poemas acompanha traduções e ambos medem aquilo que Haroldo de Campos intermediaria entre a temperatura informacional do texto e a fragilidade da informação estética.3 Augusto de Campos a mede diferentemente. Em caminho paralelo ao de Haroldo, ele segue pela fragilidade a ponto de mantê-la oscilante e frágil na língua portuguesa. Nesse sentido, o que lhe interessa não é apenas o soneto em si, mas aquilo que ele mesmo havia identificado em termos de “flagrante do sensível” e “engenho do ingênuo”. Se foi evocada a dimensão de parentesco de livros, essa procedência foi criada pelo próprio autor que, em Linguaviagem, escreveu que “LINGUAVIAGEM é um parente próximo de VERSO REVERSO CONTROVERSO; de PAUL VALÉRY: A SERPENTE E O PENSAR; de O ANTICRÍTICO. Crítica via tradução. Crítica de iluminação contra a crítica de maledicência. Exopoesia para combater a egopoesia” (Campos, 1987, p. 7). Parente é serpente, diria Fellini. Mas Fellini com Paul Valéry, via Augusto de Campos, geraria outra dimensão do poema, que se poderia ser chamada de “exopoesia”. Eis uma ética, inclusive se ela for observada por antropólogos em termos de estruturas elementares de parentesco a partir da qual um povo inteiro mantém uma estrutura material e espiritual nômade, relacionando-se com membros de outros povos.

Augusto de Campos mantém esse nomadismo da tradução, respeitando a fragilidade da informação estética que é capaz de sustentar comunidades de poetas por recusas (de recuos) e bibliotecas (à espreita). Isto é, de cada um dos livros citados, o leitor está apto a formar uma biblioteca de poesia. Esse é um projeto concreto e em porvir4 nos seus livros, com a ressalva que o porvir está presente em cada poema traduzido e, para Augusto, ele está apenas no poema, ou seja, na verdade que ele sustenta em termos de uma inseparabilidade do conteúdo pela forma. A informação da dimensão precisa do poema provém do livro de ensaios Do céu do futuro, organizado por Eduardo Sterzi, em 2006, obra que tem como objetivo principal “chamar a atenção para sua poesia como poesia […], sem porém jamais anular sua diferença e novidade em relação à poesia que se quer apenas poesia (e ressalve-se que este apenas não comporta um juízo de valor, mas antes uma constatação de sua especificidade ontológica)” (Sterzi, 2006, p. 7). A “exopoesia”, por exemplo, colocaria em contato os mais distintos substratos e materiais poéticos das mais diversas tradições inventivas.

Por fim, para aqueles que conseguirem montar uma biblioteca de poesia a partir das obras de Augusto de Campos, a comunidade de poetas da recusa mantém uma dimensão prática que não tarda em se atualizar, pois a partir dela se sobressai uma dificuldade de recomeçar a partir de tantos marcos inventivos. Ainda em À margem da margem, no ensaio “Nuvem-espelho para Sinisgalli”, está citado um trecho do poeta italiano Sinisgalli: “Depois de Duchamp, depois de Fontana, por sua terrível força de dissuasão, ficou difícil recomeçar” (1989, p. 70). Do poema “Uma nuvem de corvos”,5 Augusto de Campos extrai um dos estilhaços brilhantes para uma “intradução”:

Página dupla de À margem da margem, 1989.

A dimensão visual desta “intradução” nunca escondeu a força epigramática, sonora, melodiosa que existe nas inscrições com inteligência gráfica. Esse é outro aspecto com o qual Augusto de Campos dialoga muito bem, pois suas “intraduções” não apenas restituem o núcleo de sentido, como transmitem uma vida visual ao poema. Em termos de adendo, as “intraduções” estão nos livros Não, de 2003, e Outro, de 2015. Elas não estão isoladas de “Ex” ou “Extra”, “outraduções”, pois existe um trânsito “infra” e “exterior” às estruturas poéticas da linguagem, ou melhor, nas especificidades da língua portuguesa. Catulo, Gôngora, Laforgue, Valéry, Apollinaire, Marianne Moore e Mallarmé são alguns dos poetas que foram “intraduzidos” em Outro.

Dado que o epigrama deve ser breve porque é uma forma de memória móbile, próxima da tarefa que se delega às imagens fotográficas e cinematográficas, pois ele é uma das formas poéticas mais antigas de circulação de imagens, sendo inscritos — pois epigrama significa literalmente “inscrição” do grego epigrafhein (ἐπιγράφειν), inscrever — nas mais diversas superfícies, como pedras, madeiras, solos, muros, páginas, telas, sites etc. Para além de slogans publicitários e aquém da própria história ocidental da metafísica da palavra que poderia, no mínimo, ser contada desde Aristóteles, Augusto de Campos não vai para nenhum desses lados. Aliás, ele os recusa para afirmar a fragilidade do poema. Isso ocorre sem frases fáceis, sem retóricas esvaziadas ou mesmo por demasiado aprofundadas em verborragias discursivas.

Ao afirmar a vocação do menos, ele simplesmente busca precisões das palavras “margem” e “recusa”, uma precisão posta ao que não está à venda como se pode ler e ver na capa e na última página de À margem da margem. O poeta diz que começa e termina com esta recusa e que permanece nesta margem, “à margem da margem”. Sem dúvida, a dimensão epigramática em Augusto de Campos é uma tarefa para um estudo aprofundado, tarefa que, como ele afirmou na introdução da segunda edição de Teoria da poesia concreta, “os historiadores literários farão certamente muito melhor, principalmente quando a poesia-bumerangue-concreta, depois de ter sido exportada, refizer o circuito e voltar a cair sobre as suas cabeças” (Campos: 2006, p. 17). A partir dessas obras, Augusto não hesitou em inscrever as memórias do não e a excrever a bandeira da recusa.