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Yaku Pérez: novas linhas para o Equador

Multitud, Oswaldo Terreros

Esquerdas e direitas respiraram aliviadas em toda a América Latina quando, após a recontagem dos votos, o candidato indígena e ambientalista Yaku Pérez ficou de fora do segundo turno nas eleições para presidente do Equador. Repetiu-se, portanto, a velha polarização em um cenário político semelhante ao que vivemos no Brasil, na década passada. Lá, como aqui, um governo considerado do “campo progressista”, com claros matizes populistas, enfrentou e venceu repetidas vezes o “campo conservador”, também entre nós conhecido por vários nomes: elites econômicas, neoliberais etc. No Equador, por várias vezes, a direita apresentou insistentemente o banqueiro Guillermo Lasso como candidato. A esquerda venceu com Rafael Correa, que deu origem ao “correísmo” e escolheu a dedo seu sucessor, Lenin Moreno. Também como no Brasil, o surgimento de alternativas foi sufocado durante anos por essa polarização. No primeiro turno das eleições deste ano, entretanto, o cenário mostrou mudanças significativas.

O enfraquecimento do correísmo tornou-se visível. Condenado por corrupção, Rafael Correa vive na Europa. Seu sucessor afastou-se do populismo de esquerda e submeteu-se totalmente à agenda das mineradoras, bancos, empreiteiras e outros setores do que também entre nós é o conhecido “mercado”. Fez uma péssima gestão da pandemia que resultou numa catástrofe sanitária e funerária, em 2020. O próprio Corrêa entrou em conflito com feministas, juventudes e outros movimentos urbanos em vários temas polêmicos. Essa decepção com o correísmo é a principal explicação política para o crescimento de um setor progressista moderado, cujo candidato, Xavier Herbas, do partido Esquerda Democrática, alcançou 16% dos votos nas eleições deste ano.

Maior ainda foi o crescimento da candidatura de Yaku Pérez, para o qual concorreram também outros fatores. Ele é advogado, conhecido no movimento ambientalista e em 2019 foi eleito prefeito da província de Azuay, com sede em Cuenca, terceira cidade do país, cargo ao qual renunciou para concorrer à presidência. Seu programa é uma representação da agenda dos movimentos sociais e populares que sacudiram o Equador em outubro de 2019 em grandes manifestações contra os planos de ajuste do governo orientados pelo Fundo Monetário Internacional. Seu partido, Pachakutik, é o braço político do forte movimento indígena equatoriano, do qual Pérez é, há muitos anos, uma das principais lideranças. Para completar, justamente em Cuenca, após várias tentativas de Pérez, foi promovido um plebiscito chamado “Em Defesa da Água”, no qual a posição contrária à privatização da água para fins de mineração foi amplamente vitoriosa.

O que no Brasil poderia ser chamado, pelos analistas políticos, de crescimento do “centro” ou da “terceira via”, é uma mostra no terreno político de grandes e profundas mudanças na sociedade equatoriana. É a expressão de uma força que escapa aos rótulos ― em sua maioria vazios ― e à repetição de paradigmas estagnados diante do desabrochar de novas e vivas realidades que, felizmente, não deixam de surgir. É também a explicitação de uma exclusão antiga e histórica: os povos indígenas e o meio ambiente não cabem nos planos e modelos de desenvolvimento tanto da esquerda quanto da direita. Lá como cá, e em toda a América Latina, os embates políticos seguem polarizados por fantasmas ideológicos e a sociedade retalhada em populismos, aventuras autoritárias, corrupção sistêmica, racismo estrutural, exclusão social, genocídios, etnocídios, devastação ambiental, extrativismo mineral e todo tipo de atraso que pode acarretar uma irremediável interdição do futuro.

Mas há uma perversão comum aos sistemas políticos de vários países, cuja mostra tivemos no Brasil nas eleições de 2014 e ficou explícita agora no Equador. Andrés Arauz, candidato do correísmo, ficou em primeiro lugar, com 32% dos votos. O segundo posto ficou indefinido por várias semanas, pois a diferença entre Guillermo Lasso e Yaku Pérez era muito pequena e o candidato indígena levantava suspeitas de fraude em várias cidades e exigia uma recontagem dos votos, legalmente fundamentada, mas impedida pela conveniência da esquerda e da direita. Estas semanas de indefinição foram marcadas pelo pavor dos operadores do sistema político, especialmente do “correísmo”, com a possibilidade de Yaku Pérez passar ao segundo turno. Estaria desfeita a polarização “fácil” contra a velha direita e a nova oposição a ser enfrentada seria muito mais incômoda, pois representa uma renovação progressista e ambientalista que retira da velha esquerda institucionalizada o uso, na maioria das vezes puramente nominal, das bandeiras históricas da sociedade civil, dos indígenas, das mulheres, dos bairros pobres das grandes cidades, da juventude.

Não é difícil adivinhar como foi e continua sendo a campanha para enfrentar essa nova força. Já conhecemos: fake news, calúnias, teorias da conspiração, acusação de conluio com o neoliberalismo para entregar o país aos banqueiros e retirar os direitos dos trabalhadores… Vimos esse filme no Brasil, com o título “2014”, uma superprodução dirigida pelos mais incríveis marqueteiros do planeta com o patrocínio do Estado por meio de desvios de recursos públicos embutidos nas fartas doações ao caixa dois. No caso do líder indígena equatoriano, somam-se as acusações de conspirar com ONGs estrangeiras para entregar o país ao imperialismo e os ataques contra sua companheira, a jornalista franco-brasileira Manuela Picq. É a desconstrução violenta de uma biografia, mais uma vez, atualizando as origens estalinistas e populistas de uma parcela dominante na esquerda latino-americana.

Para os grandes e iluminados líderes populistas, guias dos povos e pais da pátria, o surgimento de novas lideranças e a diversificação de programas políticos é o pior dos crimes. Sua ideia de democracia foi amputada, dela retirou-se a aceitação da divergência e da alternância no poder. Não convocam o povo para a construção coletiva do futuro, onde todos e cada um compartilham autoria e responsabilidade, mas, ao contrário, têm a pretensão de oferecer ao povo um destino, permanente e definitivo. Consideram traição qualquer tentativa de prospectar alternativas que possam ensejar novos caminhos e “novas maneiras de caminhar”. E não hesitam em promover campanhas de destruição de quem ouse discordar, mesmo que a discordância seja lembrar de ideias ou compromissos que já afirmaram no passado.

Aliás, outra característica básica desse tipo de liderança caudilhista é a submissão do programa à autoridade pessoal ou de um grupo. No Equador, quando ainda era candidato, Rafael Correa prometia ficar ao lado das comunidades contra as empresas de mineração. No poder, mudou de ideia. Nas lutas em defesa da água e dos direitos das comunidades, Yaku Pérez foi preso e agredido quatro vezes, em duas delas teve que ser levado ao hospital. Sua mãe e sua esposa também foram agredidas. Sob o governo de Correa, centenas de pessoas foram presas e acusadas de terrorismo ou conspiração contra o Estado, não apenas indígenas e ambientalistas, mas também feministas, jovens das periferias urbanas e ativistas de todos os tipos de movimento social, cujas causas e bandeiras haviam sido usadas para a ascensão do correísmo ao poder.

Está hoje bastante claro que essa “luta interna”, baseada na ansiedade tóxica pela hegemonia, tão entranhada na formação das esquerdas, tem como resultado o crescimento exponencial da rejeição e, no caso brasileiro, a captura pela extrema direita da onda antiesquerdista que inevitavelmente se forma. E quanto mais corruptos e autoritários forem os métodos usados para sufocar as alternativas progressistas, mais virulenta será a rejeição; quanto mais infantilizadas e predispostas à “servidão voluntária” forem as multidões de seguidores desse tipo de líderes, mais facilmente poderá a opinião pública ser capturada por aventureiros ousados que surjam com muito dinheiro e uma boa máquina de propaganda.

Dessa forma, podemos considerar tristemente doentia a reação de setores do movimento social e de forças políticas que têm potencial para renovar o pensamento progressista, mas se submetem ao velho caudilhismo e ajudam a descrever movimentos alternativos e lideranças como Yaku Pérez como “divisionistas” ou até como “agentes do imperialismo”. Lembro bem que, tempos atrás, era assim que a esquerda tradicional dogmática via o revigorante movimento político que deu origem ao PT, também acusado de divisionismo. Demonstra-se uma grande tolerância com os líderes populistas da esquerda quando se aliam a oligarquias, forças do “mercado” e até com esquemas de corrupção, com a justificativa da necessidade de ganhar eleições ou garantir a governabilidade. Contraditoriamente, há total intolerância com os que buscam outros caminhos, mesmo que permaneçam politicamente democráticos e socialmente progressistas. Considera-se crime não mais se submeter ao maniqueísmo e à bipolaridade de um sistema político cada vez mais esvaziado de sentido e totalmente ineficaz para promover a mudanças no modelo de desenvolvimento e atualizar a América Latina nos desafios do século XXI. Considera-se heresia acenar aos diversos espectros ideológicos a possibilidade de deslocarem-se da estagnada panaceia desenvolvimentista para a esperançosa alternativa sustentabilista.

Mas já se desfazem as culpas após a linha divisória do Equador. O mundo mudou. Engana-se quem pensa que será simples o retorno triunfante da esquerda, após as derrotas, banimentos e cancelamentos políticos que a mantiveram fora do poder nos últimos anos. Engana-se mais ainda quem pensar que o tempo pode voltar atrás e os pactos de governabilidade possam ser refeitos em nova bonança do crescimento econômico, outro boom das commodities, recuperação dos preços do petróleo, megaobras de infraestrutura, qualquer que seja o sonho desenvolvimentista ou consumista que se tenha como idealização do passado. Depois da pandemia, teremos que encarar com seriedade as múltiplas crises da civilização e as mudanças climáticas que ameaçam as condições básicas de vida no planeta. Não há mais tempo para disputas ideológicas sem sentido prático muito menos para a prática mecânica de uma ideia superada pelo tempo e pela realidade.

Torço para que, independentemente do resultado eleitoral, a variada e complexa sociedade do Equador consiga incorporar aos seus valores e às suas decisões estratégicas a grande contribuição que o movimento indígena, o programa e a liderança de Yaku Pérez trouxeram nas eleições deste ano. Torço para que o processo democrático consiga fazer avançar a agenda socioambiental na Bolívia, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, no Chile, em todos os países latino-americanos que viveram o grande estremecimento político da última década. E daqui, no cantinho em que me isolo nesta pandemia, continuo trabalhando, com os modestos meios de que disponho, para que o Brasil se desfaça da armadilha bipolar em que se meteu na década passada, que mostrou toda sua truculência nas eleições de 2014 e 2018.

Há uma charge, frequentemente compartilhada na internet, que mostra um orador perguntando à multidão: “quem quer mudanças?” ― e todos gritam levantando os braços; em seguida ele pergunta “quem quer mudar?” e todos abaixam os braços em silêncio. Cada um sabe se ocupa lugar nessa multidão.