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Interseccionalidade: uma introdução1

Hoje, no espaço político-midiático, a interseccionalidade é muito atacada. Um anúncio de qualificação para ocupação de uma vaga de trabalho foi até mesmo retirado do site do Ministério a fim de purgar qualquer referência interseccional. No Manual indócil de ciências sociais (Copernic/La Découverte, 2019), publiquei com Mara Viveros uma introdução a esse campo de estudo. Para não deixar que se digam besteiras por aí.


As feministas interseccionais, em ruptura com o universalismo, reivindicam não se limitarem à luta contra o sexismo.

Marianne, “A ofensiva dos obcecados pela raça, pelo sexo, pelo gênero, pela identidade”,
12 a 18 de abril de 2019.

Uma ambígua midiatização

Sem título (série Circuito), Mariana Par

Na França, a interseccionalidade acaba de entrar nas revistas. No Le Point, L’Obs ou Marianne nós não só encontramos a ideia, como também a palavra e até mesmo referências acadêmicas. Teriam as lésbicas negras assumido o poder até nas redações? Na realidade, se a mídia tem falado sobre o tema é sobretudo para denunciar o aumento do poder, nas universidades e mais amplamente na sociedade, do chamado feminismo “interseccional”, acusado de importar um “comunitarismo ao estilo norte-americano”. Estamos testemunhando, de fato, a uma reciclagem dos artigos do início dos anos 1990 que denunciavam o “politicamente correto”: “Não podemos dizer mais nada!”. O mundo lhes parece de cabeça para baixo: o homem branco heterossexual estaria sofrendo agora de uma “tirania das minorias”.

Precisamos mesmo esclarecer isso? Essa fantasia de vítima é desmentida pela experiência diária. Para ficarmos “tranquilos” bastaria olharmos para quem detém o poder na mídia e na universidade, como também na economia ou na política: os dominantes de ontem não são os dominados de hoje, e a velha ordem ainda vislumbra dias ensolarados pela frente. Em vez disso, sustentaremos a hipótese de que essa reação às vezes virulenta é o sintoma de uma inquietude provocada após a tomada de consciência feminista do #MeToo e as revelações sobre o assédio sexista, homofóbico e racista da “Ligue du Lol” no pequeno mundo das mídias, e isso no momento que as minorias raciais estavam começando (enfim) a se fazerem ouvir no espaço público.

Isso vale também para os ataques atuais à interseccionalidade nas campanhas contra a (suposta) “teoria de gênero” no início dos anos 2010. A midiatização garantiu uma forma de publicidade a um léxico que, desde então, não ficou mais confinado ao universo acadêmico. A polêmica fez vislumbrar as análises interseccionais a um público mais amplo, que agora os artigos e os debates estão lutando para informar… ou, na maioria das vezes, para alertar. No entanto, mesmo as tribunas indignadas que entregam nomes ou os dossiês escandalizados que fornecem listas contribuem, ao contrário de suas intenções, para estabelecer bibliografias e popularizar programas universitários. Em troca, o próprio meio das ciências sociais, na França depois de muitos outros países, acabou se interessando pela interseccionalidade — e não apenas para se preocupar: esse conceito viajante se tornou um convite para reconhecer, na pluralidade das lógicas de dominação, a complexidade do mundo social.

Circulações internacionais

Fala-se de interseccionalidade em todo o mundo — não somente na América do Norte e na Europa, mas também na América Latina, na África do Sul ou na Índia. É verdade que a palavra vem dos Estados Unidos: foi Kimberlé Crenshaw que a utilizou pela primeira vez em dois artigos publicados em revistas de Direito na virada dos anos 1990. No entanto, a coisa, ou seja, a consideração sobre as múltiplas dominações, não esperou pela palavra. Também é verdade que essa jurista afro-americana estava inserida no “feminismo negro” estadunidense, que nos anos 1980 enfatizava as cegueiras cruzadas do movimento dos direitos civis (em relação ao gênero) e do movimento das mulheres (à raça).

Contudo, essas questões foram paralelamente levantadas, na fronteira entre o inglês e o espanhol, por feministas “chicanas” (como Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa), dentro de uma subcultura que nutria a imigração mexicana nos Estados Unidos ou mesmo, já na década de 1960, no Brasil, no âmbito do Partido Comunista; as feministas brasileiras (como Thereza Santos, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro) desenvolveram também suas análises sobre a tríade “raça-classe-gênero”. Em suma, a abordagem interseccional não esperou pela palavra interseccionalidade; ela não tem uma origem exclusivamente estadunidense; e ninguém tem o monopólio sobre ela: não é uma “marca registrada”. É necessário, portanto, entender a interseccionalidade em função dos lugares e dos momentos em que ela encontrou ressonância.

Na França, foi em meados dos anos 2000 que começamos a falar sobre interseccionalidade; e foi inicialmente dentro dos estudos de gênero. Por quê? Um primeiro contexto foi a nova visibilidade da “questão racial” dentro da “questão social” que emergiu com os tumultos ou revoltas urbanas de 2005: a análise em termos de classe claramente não era suficiente; então começamos a entender que, para as ciências sociais, ser cego à cor em uma sociedade que é por ela obcecada é como ser cego para o racismo. Um segundo contexto teve um papel ainda mais imediato: em 2004, ano da lei sobre os símbolos religiosos na escola. A questão do “véu islâmico” dividiu as feministas: a fronteira entre “eles” e “nós” passou a partir de então, e de forma prioritária, através “delas”. Em outras palavras, a diferença cultural (nesse caso, religioso) tornou-se uma questão de gênero. A interseccionalidade permite falar dessas múltiplas lógicas. Importar o conceito é como traduzi-lo para um contexto diferente: na França, não se trata, como nos Estados Unidos, da invisibilidade das mulheres negras na intersecção entre feminismo e direitos civis; é sobretudo sobre a hipervisibilidade de mulheres com véus, no cruzamento entre antissexismo e antirracismo.

Circulações interdisciplinares

A tradução de uma língua a outra, e do contexto estadunidense ao francês, realça uma segunda diferença. Kimberlé Crenshaw é uma advogada, sua reflexão se concentra nas ferramentas da lei que ela utiliza para combater a discriminação. Nos Estados Unidos, o direito identifica as categorias “suspeitas”: o sexo e a raça. Nas práticas sociais, sua utilização, implícita ou explícita, está sujeita a uma revisão “rigorosa” para combater a discriminação. No entanto, inevitavelmente passamos da categoria conceitual para o grupo social. De fato, a interseccionalidade está tentando mostrar que não só uma mulher pode ser discriminada enquanto mulher, e um negro enquanto negro, mas também que uma mulher negra pode ser discriminada como tal. É, portanto, apenas porque uma pessoa é tida como pertencente a um grupo sexual ou racial que o direito pode reconhecê-la como vítima de um tratamento discriminatório em razão de seu sexo ou de sua raça. Contudo, em seu princípio, essa abordagem jurídica não tem nada de identitária: como sempre nas discriminações, o ponto de partida é o tratamento sofrido. Seria, portanto, absurdo repetir aqui os clichês franceses sobre o “comunitarismo norte-americano”: a interseccionalidade visa, pelo contrário, o combate à atribuição discriminatória a um grupo (mulheres, negros ou outros).

Na França, a lógica é bem diferente desde que a interseccionalidade chegou, através de estudos de gênero, no campo das ciências sociais. A consequência desta tradução disciplinar é que nós não costumamos lidar com grupos. A sociologia é mais interessada em propriedades, que podem funcionar como variáveis. Claro, não esquecemos a lógica antidiscriminatória por isso: todas as coisas sendo iguais (neste caso, na mesma classe social), não temos o mesmo salário dependendo se somos brancos ou não, ou a mesma aposentadoria se somos homem ou mulher. Portanto, não é mais possível depositar todas as explicações a uma determinação em última instância: todas as desigualdades não são solúveis na classe. Isso é óbvio para as mulheres que pertencem a todas as classes; mas, às vezes, é esquecido para as chamadas pessoas “não brancas”, tanto que elas são super-representadas nas classes populares — mas não é justamente, por um lado, o efeito de sua suposta origem? Claro, isso não quer dizer, por outro lado, que a classe seria solúvel em outra forma de dominação. Na realidade, significa simplesmente que as lógicas podem ser combinadas.

O interesse científico (e político) pela interseccionalidade é, portanto, um sinal de exigência de complexidade: não é suficiente analisar a classe para dar conta das lógicas de dominação. É por isso que as feministas não esperaram pelo conceito de interseccionalidade, nem sua tradução francesa, para criticar as explicações monocausais. Na França, por exemplo, face ao marxismo, o feminismo materialista há muito rejeitou essa lógica, mais política do que científica, do “inimigo principal” (de classe), que leva a ocultar outras formas de dominação. Em 1978, Danièle Kergoat questionou ainda a neutralização que, ao apagar a desigualdade entre os sexos, implicitamente colocou um sinal de igualdade entre “operárias” e “operários”:

A sociologia do trabalho sempre fala dos “operários” ou da “classe operária” sem fazer qualquer referência ao sexo dos atores sociais. Tudo se passa como se o lugar na produção fosse um elemento unificador de tal forma que fazer parte da classe operária se referiria a uma série de comportamentos e atitudes relativamente inequívocos (e isso, deve-se notar, é tão verdadeiro para os sociólogos que se reivindicam marxistas quanto para os outros).

No entanto, esse não é obviamente o caso. Contra essa simplificação, que tem o efeito de invisibilizar as operárias, a socióloga feminista não se contenta apenas de adicionar uma propriedade social, o sexo, à classe; ela mostra mais profundamente o que chama de sua consubstancialidade. Não há de um lado o “operário” e de outro a “mulher”; ser uma operária não é a mesma coisa que ser um operário — e é também diferente de ser uma mulher de classe média. O mesmo poderia ser dito: ser uma mulher branca ou negra, um menino árabe ou não, ou ainda um gay suburbano ou do centro da cidade, realmente não é a mesma coisa!

Classe e raça

Em um ensaio sobre o peso da atribuição racial na experiência social, o filósofo Cornel West contou o quanto os táxis em New York recusaram-se a parar para ele: ele é negro. Seu terno de três peças de nada adiantou (nem a cor do motorista, a propósito): a classe não apagou a raça — ou para dizer mais precisamente, o privilégio de classe não foi suficiente para abolir o estigma da raça. No Brasil, como mostrado por Lélia Gonzalez, para uma mulher negra de classe média não é suficiente estar “bem vestida” e ser “bem educada”: os porteiros continuam a lhes impor a entrada de serviço, de acordo com as instruções dos patrões brancos, que só têm olhos para elas durante o carnaval… Na França, um documentário intitulado Trop noire pour être française (Negra demais para ser francesa) parte de uma mesma tomada de consciência: a diretora Isabelle Boni-Claverie pertence à grande burguesia; contudo, exposta às discriminações, ela também acabou sendo pega por sua cor.

Esse é o interesse de estudar as classes médias (ou altas) de cor. Em primeiro lugar, podemos ver melhor a lógica da racialização, sem imediatamente dobrá-la de volta à classe. É precisamente porque a experiência da burguesia não se refere aos clichês habituais que dissolvem as minorias nas classes populares. Em segundo lugar, somos levados a repensar a classe: muitas vezes, reduzimos esse conceito à realidade empírica das classes populares — enquanto essa é uma lógica teórica de classificação que opera em todos os níveis da sociedade. Terceiro, muitas vezes são esses estratos educados que desempenham um papel importante na construção das identidades políticas minoritárias: os porta-vozes raramente vêm das classes populares, ou pelo menos são mais favorecidos culturalmente.

A articulação entre classe e raça circula, por exemplo, em torno do conceito de “branquitude”. O termo é novo em francês: é a tradução do inglês whiteness, um campo de estudo composto menos em torno de um grupo social empírico (os brancos) do que de um questionamento teórico sobre uma identificação (a branquitude). Não é, portanto, uma questão de reificar as categorias majoritárias (nem, é claro, as minoritárias); pelo contrário, os estudos sobre a branquitude mostram bem, para usar um título famoso, “como os irlandeses se tornaram brancos”: é um lembrete de que a “raça” não deve nada à biologia, mas tudo às relações de poder que se cristalizaram nos contextos históricos. Mais uma vez, no entanto, se coloca a questão: a branquitude é reservada aos brancos pobres, condenados a identificar-se como tal por falta de outros recursos? Fala-se também de “salário da branquitude”: o privilégio daqueles que não têm nenhum outro… Ou não seria mais conveniente compreendê-lo, não apenas como uma compensação, mas também e acima de tudo como uma linguagem de poder — incluindo, é claro, entre os dominantes?

Em particular, se o olhar “orientalista” exotiza o outro e o erotiza ao mesmo tempo, a sexualização não é reservada às populações negras ou árabes (na França), ou afro-americanas e hispânicas (como nos Estados Unidos), logo racializadas. No espelhamento, a branquitude sexual é uma maneira, para as classes média ou altas brancas, de se afirmarem “normais”, portanto, de definirem a norma, especialmente em projetos de identidade nacional. Certamente, pelo menos desde o mundo colonial as minorias raciais são sempre (indiferente ou alternativamente) hipo ou hiperssexualizadas: não o suficiente ou demais, mas nunca como deveria ser. Mas e os majoritários? Eles estão contentes em incorporar a norma — ou em definir suas práticas e representações em normas ou práticas legítimas. É por isso que a branquitude pode ser mobilizada em discursos políticos, como por exemplo pelos chefes de Estado (da Colômbia de Álvaro Uribe aos Estados Unidos de Donald Trump), mais frequentemente para trazer à ordem as minorias indóceis. A “questão social”, portanto, não deu lugar à “questão racial”, mas a primeira não pode mais ser usada para mascarar a segunda. Ao contrário, uma “questão” ajuda a repensar a outra.

Os controles faciais

Olhemos agora para os controles “faciais” da polícia, ou seja, baseados na aparência. Uma pesquisa quantitativa da defensoria dos direitos, instituição republicana que é responsável pela defesa dos cidadãos face os abusos estatais, recentemente mostrou que eles afetam desigualmente, não só de acordo com os bairros (as classes populares), mas também em função da idade (os jovens) e da aparência (os árabes e os negros) e finalmente do sexo (os meninos mais do que as meninas). O resultado é bem aquilo que podemos chamar de “interseccionalidade”. No entanto, vemos aqui que o cruzamento das lógicas discriminatórias não se limita a um acúmulo de deficiências: o sexo masculino funciona aqui como um estigma mais do que como um privilégio. A interseccionalidade é sinônimo de complexidade.

Os jovens de dezoito a 25 anos declaram sete vezes mais controles do que a população em geral, e os homens percebidos como negros ou árabes aparecem cinco vezes mais afetados por verificações frequentes (o que quer dizer mais de cinco vezes nos últimos cinco anos). Se combinarmos esses dois critérios, 80% das pessoas que se encaixam no perfil do “jovem percebido como negro ou árabe” relatam que foram controlados nos últimos cinco anos (contra 16 % para o resto dos pesquisados e pesquisadas). Em comparação com a população geral, e todas as outras coisas sendo iguais, esses perfis são vinte vezes mais propensos do que outros a serem controlados.

Repetimos: não há nada de identitário nessa abordagem. A propósito, a formulação do defensor dos direitos dissipa qualquer ambiguidade: “percebidos como negros ou árabes.” Em outras palavras, é a origem real ou suposta que está em jogo. Alguém pode ser vítima de antissemitismo sem ser judeu — devido a um traço físico, a um sobrenome ou mesmo a opiniões políticas. Contanto que tenha um primeiro nome ligado ao Islã, ou mesmo que tenha um ar “de origem magrebina”, sendo muçulmano ou não, arrisca-se a sofrer islamofobia. A homofobia afeta principalmente os homossexuais, e mais amplamente as minorias sexuais, no entanto, um rapaz considerado afeminado pode ser confrontado, qualquer que seja sua sexualidade.

E é por sinal de acordo com a mesma lógica que na França o Estado pode justificar os controles faciais. Condenado em 2015 por “falta grave” ele recorreu. Sem questionar os fatos estabelecidos, o Estado explicou que a legislação sobre estrangeiros envolve controlar “as pessoas de aparência estrangeira” ou “a única população que lhe parece poder ser estrangeira”. Tratar indivíduos por causa de sua aparência, supostamente atrelada a uma origem, a uma nacionalidade ou mesmo à irregularidade de seu visto de permanência, é alimentar a confusão ao racializar a nacionalidade. Entende-se assim: ser, é ser percebido. A identidade não existe independentemente do olhar dos outros.

O exemplo dos controles faciais é importante, não só para aquelas e aqueles que sofrem com eles, é claro, mas também para a sociedade como um todo: eles contribuem para a constituição de identidades fundadas sobre a experiência comum da discriminação. As pessoas racializadas são aquelas cuja subjetividade se constitui nesses incidentes repetitivos, que acabam por desenhar as fronteiras entre as experiências minoritárias e majoritárias. Mas a questão é também teórica: vemos aqui que a identidade não é a causa; ela é o resultado de práticas sociais de racialização — incluindo as práticas do Estado. O racismo não se limita à intenção: o racismo é realmente definido por seus resultados — em primeiro lugar sobre as pessoas envolvidas, indexadas à diferença pela discriminação.

A palavra raça

As lógicas de dominação são múltiplas: não há apenas a classe, mas também o sexo e a raça, assim como a idade ou a deficiência. Neste emaranhado, é sempre uma questão, não somente das desigualdades, mas também da naturalização dessas hierarquias marcadas nos corpos. O fato é que é principalmente a articulação do sexo ou da classe com a raça que está no centro dos debates atuais sobre interseccionalidade. E aqui encontramos uma singularidade nacional: de acordo com a ONU, dois terços dos países incluem em seus censos perguntas sobre a raça, a etnia ou a origem nacional. Na França, isso está fora de cogitação — o que complica o desenvolvimento de estatísticas “étnico-raciais” utilizadas em outros países para analisar as discriminações.

Mais ainda: é só na França que, a fim de combater o racismo, nos mobilizamos regularmente para remover a palavra raça da Constituição; ela lá aparece, contudo, desde seu preâmbulo de 1946 escrito em reação ao nazismo, só que para declarar um princípio antirracista: “sem distinção de raça”. É hoje uma batalha que se divide de acordo com o que postulamos ser um antirracismo dito “universalista” ou “político”: enquanto o primeiro rejeita a palavra raça, considerada inseparável do racismo, o segundo aproveita-a como uma arma contra a racialização da sociedade. O que está em jogo aqui é a definição do racismo, a depender se a ênfase é posta em sua versão ideológica (que supõe a intenção, e passa pela palavra) ou seu contrário estrutural (que o mede por seus efeitos, e que demanda nomear a coisa).

A batalha não se limita ao campo político, ela se estende ao campo científico. O racismo acadêmico costumava falar de raças (no plural), como uma forma de colocar a ciência a serviço de uma ordem racial, como no mundo colonial. Na pesquisa antirracista, agora é uma questão de raça (no singular): não mais o inventário das populações, a partir de um critério biológico ou mesmo cultural, mas a análise crítica de um mecanismo social que indexa indivíduos a grupos, e esses grupos a posições hierarquizadas por causa de sua origem, de sua aparência, de sua religião etc. Não é, portanto, uma questão de voltar às elocubrações racistas sobre os arianos ou os semitas; ao contrário, falar da raça é oferecer um vocabulário para possibilitar que se enxergue aquilo que não se quer ver: a discriminação racista também é uma atribuição racial. Cegar-se para a raça não significaria dessa forma cegar-se ao racismo?

Então é necessário não se enganar: para as ciências sociais atuais, a raça não é um fato empírico; é um conceito que nos permite nomear o tratamento desigual reservado a indivíduos e a grupos que são identificados como diferentes. A realidade da raça não é, portanto, nem biológica nem cultural; ela é social, visto que é definida pelos efeitos desses tratamentos, sendo a racialização da sociedade como um todo atravessada pela lógica racial. Aqui voltamos às análises clássicas de uma feminista materialista, Colette Guillaumin: “Essa é exatamente a realidade da ‘raça’. Ela não existe. No entanto, ela produz mortes. […] Não, a raça não existe. Sim, a raça existe. Não, claro, ela não é isso que dizem que ela é, mas ela é, no entanto, a mais tangível, real e brutal das realidades”.

Moral da história

Há alguma razão para nos preocuparmos com o declínio do universalismo na França? As lógicas de identidade estão ganhando terreno? Sem dúvida: isso é exatamente o que implica a racialização de nossa sociedade. Mais uma vez é preciso não confundir as causas e os efeitos, nem, aliás, o veneno e o antídoto. Em primeiro lugar, é a extrema direita que reivindica explicitamente o rótulo identitário: dos Estados Unidos de Donald Trump ao Brasil de Jair Bolsonaro, assistimos à vingança da masculinidade branca contra as minorias raciais e sexuais. Não nos confundamos aqui: elas são, então, as vítimas, e não as culpadas, dessa reação (ou backlash) que visa colocá-las de volta a seu lugar (de dominadas).

Em segundo lugar, a segregação racial que podemos facilmente constatar no espaço ao pegarmos o transporte público entre Paris e seus subúrbios não é o resultado de um comunitarismo minoritário. Para entendê-la, é necessário levar em conta um fenômeno duplo: por um lado, a lógica social descrita na expressão White flight (os brancos que abandonam os bairros relegados às minorias raciais, antecipando-se à segregação que suas próprias escolhas individuais aceleram…); por outro lado, as políticas públicas municipais cujo termo apartheid resume o resultado. O multiculturalismo estatal, na Colômbia, desenharia uma lógica completamente diferente: as políticas públicas visaram explicitamente as identidades culturais em nome da “diversidade”, possibilitando que os movimentos sociais pudessem se amparar.

Em terceiro lugar, lutar pela igualdade e, portanto, contra as discriminações, não é renunciar ao universalismo; pelo contrário, é rejeitar o comunitarismo majoritário. A interseccionalidade, portanto, não é a principal responsável pela fragmentação identitária — assim como a sociologia que analisa as desigualdades socioeconômicas não é a causa principal da luta de classes. Para as ciências sociais, é simplesmente fornecer-se de ferramentas necessárias para entender um mundo atravessado por múltiplas desigualdades.

Em quarto lugar, são os discursos públicos que geralmente opõem a classe à raça (ou os trabalhadores, presumidamente brancos, às minorias raciais, como se elas não pertencessem mais frequentemente às classes populares), ou ainda, como havia sido bem mostrado por Christine Delphy, o antissexismo ao antirracismo (como se as mulheres de cor não fossem afetadas pelos dois). A experiência da interseccionalidade, pelo contrário, é para cada pessoa, independentemente de seu sexo, sua classe e sua cor de pele, a imbricação de propriedades que acaba por definir, realmente, as identidades complexas (mais do que as fragmentadas); e é isso que as ciências sociais estão trabalhando hoje para compreender.