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Biden e a esquerda norte-americana: boas surpresas e muitas indefinições

Coisas horrendas, Renata Pedrosa

A visão mais consensual sobre Joe Biden é a de que ele é um político que se move ao sabor do vento. Em momentos em que o Partido Democrata balançou para a esquerda, ele andou um pouco para a esquerda. Quando o partido se moveu para a direita, lá foi ele um pouco para a direita. Com uma carreira no Senado que teve início em 1973, ele tem sido uma espécie de biruta capaz de indicar a direção dos ventos. Enquanto trabalhava em Washington, Biden fez do fato de voltar de trem para casa diariamente, no estado vizinho de Delaware, parte de sua identidade política; ele costumava valorizar suas raízes humildes na cidade operária de Scranton, Pennsylvania. Embora não escondesse suas ambições presidenciais, nunca foi alguém com atributos particulares que pudessem inspirar os eleitores democratas.

Foi mais ou menos por essa razão que ele foi escolhido por Barack Obama, em 2008, para ser seu vice-presidente: com sua experiência, ele poderia ajudar o jovem Obama a administrar seu relacionamento com o Congresso. Ele também se mostrava uma escolha razoável — mais velho, branco, homem, declaradamente católico e longe de extremos ideológicos — para qualquer pessoa inquieta com a eleição de um jovem negro para a presidência. Ninguém nos Estados Unidos teria pensado em Joe Biden para ocupar esse lugar; nem ele mesmo.

Não obstante, a presidência Biden começou com uma enxurrada de iniciativas ambiciosas, visando expandir e transformar a economia dos EUA de uma forma que o país não via pelo menos desde Lyndon Johnson, nos anos 1960. Ele percebeu, em 2020, que o momento exigia uma ação de grande impacto: “Acho que [o desafio]… pode eclipsar o que FDR enfrentou”, disse ele em abril passado, invocando Franklin Delano Roosevelt, presidente americano de 1933 a 1945, e arquiteto do genuinamente “social-democrata” New Deal. “Acho que as pessoas estão pensando ‘Meu Deus, veja aí o que é possível’, olhando para as mudanças institucionais que podemos fazer, sem nos tornarmos um ‘país socialista’ ou qualquer outra coisa fora de esquadro”. Se Biden for bem sucedido em sua ambição declarada de ter uma presidência “do tamanho de um FDR”, será possivelmente porque sua reputação como um centrista torna a ousadia palpável para uma gama bem ampla de pessoas. Seus planos, contudo, também vão depender de fatores estruturais que tornam improvável que tal ambição se realize plenamente.

Para entender como Biden e o Partido Democrata chegaram a este ponto, é necessário recuar alguns anos. Quando Biden iniciou seu mandato como vice-presidente em 2009, a economia estava desmoronando. Centenas de milhares de pessoas estavam perdendo seus empregos a cada mês e a taxa de desemprego aumentava rapidamente no que ainda era o início da mais profunda crise econômica desde a Grande Depressão dos anos 1930. Não havia uma causa “real” aparente — era uma crise esotérica causada pelos efeitos do fim da bolha imobiliária norte-americana em Wall Street e que tinha tornado o sistema bancário vulnerável através de instrumentos financeiros exóticos.

Foi uma crise que, segundo os membros de ambos os principais partidos à frente da economia desde os anos 1980, não deveria ter acontecido. Se predominasse a lógica da racionalidade de mercado, isso não teria ocorrido; mesmo Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal sob vários presidentes, teve de confessar: “descobri uma falha no modelo que percebi ser a peça crítica que define como o mundo funciona. Por quarenta anos me pareceu, dadas as imensas evidências, de que ele estava funcionando excepcionalmente bem”. Mas não foi o caso em 2009.

O catastrófico governo George W. Bush — que lançou a desastrosa guerra no Iraque, que foi insensível às consequências do furacão Katrina que atingiu Nova Orleans em 2005 e que deixou o cargo entregando ao seu sucessor a maior crise econômica de que há memória viva — foi profundamente impopular e prejudicou o Partido Republicano. Como resultado, formou-se uma forte maioria Democrata tanto na Câmara quanto no Senado. Mas o Senado dos Estados Unidos opera segundo um conjunto de regras bizantinas. Entre as mais relevantes para o destino do governo Obama estava o “filibuster”, um mecanismo legislativo pelo qual um único senador pode tomar a palavra e obstruir a votação de qualquer projeto de lei. Isso não faz parte da Constituição e surgiu essencialmente por acidente, mas seu uso foi empregado durante o século XX predominantemente por senadores segregacionistas do Sul dos Estados Unidos que queriam inviabilizar a adoção de uma lei federal dos direitos civis. Um filibuster, porém, pode ser anulado com o voto de sessenta senadores. Como resultado das eleições de 2008, os democratas se viram com exatamente sessenta cadeiras no Senado, tornando possível aprovar novas leis sozinhos caso conseguissem manter o caucus unido.

A eleição de Obama à presidência foi recebida com hostilidade imediata pelo eleitorado de direita. Desde a fundação da república, questões relacionadas a “ter um governo pequeno”, manter os impostos baixos e assegurar “os direitos das unidades federativas”, estão entrelaçadas às opiniões sobre raça dos eleitores brancos. Após a Guerra Civil dos anos 1860 e 1870 e novamente na era dos Direitos Civis dos anos 1960, os negros norte-americanos obtiveram ganhos limitados em virtude de ações empreendidas em nível federal. Com o tempo, como o racismo explícito se tornou menos aceitável no discurso público dos EUA, os políticos aprenderam a falar em linguagem codificada. Como disse o estrategista republicano Lee Atwater em 1981: “Em 1954, você dizia: ‘N…, N…, N…, N…”.1 Em 1968, você não pode dizer ‘N…’ — porque o tiro sai pela culatra e você apanha. Então, você começa a dizer coisas como… os direitos dos estados… e você vai ficando super abstrato. Agora mudou de novo, e você está falando em cortar impostos e todas essas coisas de caráter totalmente econômico, cujo subproduto delas é: dessa forma, os negros são mais prejudicados do que os brancos”. O presidente Barack Obama — um intelectual negro cosmopolita que tentou expandir o estado social — reuniu, numa única pessoa, as inquietações mais contundentes da direita americana. Ao observarem o extraordinário aumento da ira contra Obama, os políticos republicanos decidiram que qualquer cooperação com os democratas colocaria suas carreiras em risco dentro de seu próprio partido.

Por esse motivo, os democratas em 2009 tiveram que aprovar novas leis inteiramente por conta própria. Com o limiar de sessenta votos necessários no Senado, eles não podiam se dar ao luxo de uma única deserção. Assim, cada senador democrata passava a exercer um poder considerável; nada poderia passar a menos que tivesse a aprovação do democrata mais conservador do Senado. E com a direita nas ruas todos os dias denunciando o “socialismo” iminente, os democratas decidiram que a prudência era a melhor parte da cautela. Com medo de propor qualquer coisa acima de um trilhão de dólares, o projeto de lei de estímulo econômico terminou em 787 bilhões de dólares. O mesmo aconteceu na área da saúde: os democratas aprovaram um projeto de lei que funcionava principalmente através de subsídios pagos pelo Estado para expandir o acesso ao seguro de saúde privado. Ambos os projetos de lei eram melhores do que nada. Mas o projeto de lei da saúde (mais tarde conhecido como “Obamacare”, de início um insulto republicano) acabou deixando muitos milhões sem seguro de saúde. Da mesma forma, o estímulo econômico de então era muito pequeno, e milhões permaneceram sem emprego, pois os efeitos da crise econômica se prolongaram por anos.

Enquanto isso, a direita obteve ganhos políticos em todos os níveis: nos cargos de governador, no Senado nas eleições de 2010, e mesmo dentro do partido republicano, onde desafiaram e afastaram políticos que consideravam moderados demais. Embora Obama tenha ganho a reeleição em 2012, ele perdeu a capacidade de avançar com mudanças significativas na legislação e seus últimos anos foram marcados principalmente pelo recurso a decretos executivos e iniciativas na frente da política externa, na qual o presidente tem ampla liberdade para agir por conta própria.

Tudo isso foi enormemente frustrante para a esquerda norte-americana. Ao contrário dos anos da Grande Depressão, em que uma esquerda política vibrante ajudou a empurrar a administração Roosevelt para uma ação mais ousada, a crise de 2008 parecia de alguma forma ter beneficiado a direita. Em 2011, a crítica da esquerda ao sistema econômico tomou a forma do Occupy Wall Street, chamando a atenção para a desigualdade de renda e riqueza. O movimento pelas vidas negras se desenvolveu após um policial ter atirado e matado um adolescente negro em Ferguson, Missouri, em 2014, chamando a atenção para questões de racismo e iniquidades no sistema judiciário. Esses movimentos sociais não estavam ligados ao Partido Democrata de nenhuma forma estrutural, mas conseguiram mobilizar um grande apoio a causas importantes para a esquerda.

Então, nas eleições presidenciais de 2016, Bernie Sanders decidiu desafiar o suposto candidato que veria levar a indicação do Partido Democrata: Hillary Clinton. Sanders, um senador socialista democrata de Vermont, pequeno estado do norte do país, superou em muito as expectativas. Sua campanha revelou haver um eleitorado expressivo que apoiava a social-democrata dentro do Partido Democrata (embora talvez não tão grande quanto parecia, pois ele também atraiu o voto de protesto de alguns que simplesmente não gostavam de Hillary Clinton). Ele atraiu os esquerdistas, frequentemente acostumados a não participar da mobilização eleitoral, por não terem lugar no sistema bipartidário.

Hillary Clinton ganhou por pequena margem as primárias, e depois perdeu a eleição geral para Trump. Muitos da esquerda interpretaram essa derrota como prova de que contra a ameaça de Trump pela direita, o centrismo fracassaria. Nos anos seguintes, um número pequeno, mas crescente de candidatos genuinamente de esquerda como Ilhan Omar de Minneapolis e Alexandria Ocasio-Cortez de Nova York, venceu as eleições para a Câmara, principalmente em distritos urbanos e esmagadoramente democráticos. Embora tenham permanecido relativamente marginalizadas dentro do Partido Democrata, elas ganharam forte presença na mídia (e na mídia social, especialmente no caso de Ocasio-Cortez, extremamente habilidosa). Sua presença era a garantia de que as ideias de esquerda seriam debatidas, pressionando o Partido Democrata a se mover para a esquerda. Ao mesmo tempo, isso deu a oportunidade à mídia de direita de as apresentar (irrealisticamente) como as verdadeiras lideranças do Partido Democrata.

Foi neste ambiente que se realizaram as disputas das primárias democráticas em 2019 e 2020. Havia mais de dez candidatos buscando a indicação; alguns não atraíram quase ninguém, outros se destacaram, mas caíram rapidamente; outros representavam diferentes facções dentro do partido. Em um campo dividido, Sanders parecia ter o grupo maior, algo como fiéis 30% (abrindo o jogo: eu aconselhei a campanha de Sanders na área da política externa em 2020). Mas em meio às preocupações de que Sanders perderia para Trump nas eleições gerais, outros candidatos desistiram, deixando Joe Biden como a única alternativa. Nesse cenário, Biden obteve claramente a maior fatia do voto primário, e capturou facilmente a indicação do partido.

Durante a campanha, Biden fez questão de se distanciar da ala esquerda do partido. Ele rejeitou ostensivamente o “Green New Deal” apoiado por Ocasio-Cortez — que ele, intencionalmente ou não, sempre chamou de “New Green Deal”, como se não se interessasse em lembrar do nome da proposta. Ele afirmou ser “totalmente contra” os apelos de desfinanciamento da polícia que surgiram nos protestos em reação ao assassinato de outro homem negro no verão de 2020 pelas forças policiais. O caminho de Biden para a vitória incluiu os anti-Trump e os ex-republicanos moderados, que não queriam uma agenda radical. Mas ele também começou a falar numa agenda transformadora. E sempre respeitou os rivais derrotados nas primárias. Incluiu os assessores de seus ex-concorrentes em suas equipes de transição, à medida que se ampliavam. Selecionou uma ex-rival, Kamala Harris, como vice-presidente. Com Sanders, seu último rival, criou as Forças-Tarefa da Unidade em seis áreas: mudança climática, reforma da justiça criminal, economia, educação, assistência médica e imigração. Cada força-tarefa era formada por três pessoas nomeadas por Sanders e cinco por Biden, refletindo essencialmente o equilíbrio de poder dentro do partido. Foi uma boa política: os apoiadores mais à esquerda de Sanders não estão comprometidos programaticamente com o Partido Democrata, e isso lhes trouxe inclusão. As recomendações da força-tarefa se tornaram a base de uma plataforma partidária politicamente mais progressista.

Em novembro de 2020, é claro, Biden derrotou Trump!

Foi, no entanto, uma vitória mais estreita do que o esperado, e com alguns resultados chocantes. Trump melhorou (ligeiramente) sua popularidade entre os eleitores afro-americanos e latinos — especialmente entre os homens —, embora a maioria desses grupos tenha apoiado Biden (mais de 90% dos afro-americanos e mais de 60% dos eleitores latinos votaram em Biden, mas os ganhos de Trump ainda assim foram surpreendentes). Corretamente ou não, republicanos e alguns democratas moderados atribuíram ao medo do socialismo e da esquerda o fato de Trump conseguir mobilizar eleitores antigos e novos (este foi certamente um fator de peso na Flórida, onde as mensagens antissocialistas eram potentes entre eleitores de origem cubana, venezuelana e colombiana). Mais importante, entretanto, a eleição produziu uma pequena maioria democrata na Câmara e um Senado uniformemente dividido, com cinquenta cadeiras em mãos de democratas e cinquenta ocupadas por republicanos (como cada estado elege dois senadores independentemente da população, a base rural do partido republicano lhe dá uma enorme vantagem estrutural no Senado. Na verdade, os senadores democratas atualmente representam uma população superior em mais de quarenta milhões vis-à-vis seus congêneres republicanos). O empate significa que o partido do presidente controla a pauta, mas lhe falta o poder de quebrar uma obstrução. Os republicanos parecem ter adotado a mesma abordagem que prevaleceu durante a administração Obama: recusar a cooperação, e depois acusar os democratas de não adotarem uma abordagem “bipartidária” para governar.

Ora, as regras enigmáticas do Senado permitem que toda lei diretamente associada ao orçamento seja aprovada com cinquenta votos. Desta forma, Biden e os democratas aprovaram um “Plano de Resgate Americano” sem um único voto republicano. O pacote tem pelo menos três características notáveis. Primeiramente, seu tamanho: com 1,9 trilhão de dólares, é mais que duas vezes maior que o plano de recuperação de 2009. Biden não parece interessado em trilhar o mesmo caminho da administração Obama, de gastar muito pouco e se lamentar depois. A esquerda do partido que temia que Biden representasse uma terceira administração Obama ficou contente em ver essa mudança de enfoque. Em segundo lugar, o projeto de lei agrupou várias prioridades. Algumas delas são claramente temporárias, tais como as transferências diretas para ajudar as pessoas e os governos estaduais ao longo da pandemia da covid-19. Outras, entretanto, parecem destinadas a se tornarem, se possível, programas permanentes. Encontram-se, nesse caso, as transferências às famílias que deverão reduzir significativamente os níveis de pobreza infantil, ainda por demais elevados nos Estados Unidos se comparados a outras nações da OCDE. Se isso vier a acontecer, representaria uma importante expansão do estado de bem-estar dos EUA, que permanece sendo o mais débil dentre os países de seu nível de riqueza. Em terceiro lugar, o pacote foi amplamente popular, inclusive entre os eleitores republicanos (embora não entre os congressistas do partido). Alguns políticos republicanos se mostraram impressionados com o projeto, apesar de terem votado contra ele. Biden parece inclinado a abraçar a ideia de “bipartidarismo”, o que supõe a aprovação de projetos de lei grandemente populares, quer isso atraia ou não os votos dos deputados republicanos. Esta também é uma adaptação necessária das lições dos anos Obama.

Também em outras áreas, Biden superou as expectativas da esquerda. Ele tem se manifestado reiteradamente a favor dos sindicatos; inclusive, divulgou um vídeo de apoio a um esforço (infelizmente malsucedido) de sindicalização dos trabalhadores da Amazon no Alabama. “Tenho dito há muito tempo que a América não foi construída por Wall Street” — frase proferida ao se posicionar contra formas de intimidação por parte de empregadores —, “foi construída pela classe média, e os sindicatos construíram a classe média”. Depois que a proposta de aumento do salário mínimo foi descartada do plano de resgate econômico (porque teria sofrido obstrução), Biden fez o que estava ao seu alcance, qual seja, ordenou que se tornasse regra no âmbito do funcionalismo federal. À medida que a crise da covid reflui, o mercado de trabalho parece sinalizar uma recuperação salarial forte e Biden não vê isso como problema. Aos empregadores que se queixam de estar enfrentando penúria de mão de obra, Biden responde: “aumentem os salários!”

Em matéria de mudança climática, Biden aderiu novamente aos acordos de Paris e estabeleceu uma meta ambiciosa de redução pela metade das emissões americanas até 2030. Ele vincula as questões climáticas e os empregos sindicalizados ao lançar sua plataforma Building Back Better (“Voltar a construir melhor”), assentada nas melhorias em infraestrutura. Esta combinação sempre foi a ideia central do Green New Deal, que, no passado, ele disse rejeitar. Seu projeto de lei de infraestrutura promete outra rodada significativa de gastos do governo e inclui não apenas reparos em estradas e pontes, mas desenvolve uma visão ampla de infraestrutura em uma economia moderna. Ele inclui infraestrutura digital, resiliência climática, financiamento para pesquisa científica, bem como apoio aos trabalhadores do cuidado e da educação pública. Ao final de junho de 2021, um pequeno grupo de republicanos moderados concordou em apoiar o pacote para a infraestrutura, mas desta feita numa escala reduzida, o que levou à exclusão de prioridades importantes para a esquerda, tal como o combate à crise climática. Os deputados progressistas sugeriram que essa lacuna fosse compensada com outro projeto de lei, enfrentando o problema. Biden afirmou que pretende assinar ambas as leis, destacando, contudo, que, se necessário, vai assinar mesmo apenas uma.

Há, é claro, o pessoal da esquerda que acredita que Biden não foi suficientemente longe. É óbvio que Biden não abolirá o sistema capitalista. E os Estados Unidos vão continuar distantes do que é uma social-democracia. Uma das questões centrais da campanha de Sanders era a criação de um sistema de saúde universal, mas Biden até agora tem mostrado pouco apetite por grandes mudanças em um sistema que foi uma das conquistas legislativas assinadas pela presidência Obama. Outra questão importante para a esquerda era o cancelamento da dívida estudantil, que explodiu em um mercado educacional cada vez mais neoliberal. O presidente tem ampla autoridade para fazer isso, já que a maioria dos empréstimos estudantis é garantida pelo governo federal. Mas Biden ainda não o fez, talvez calculando que os estudantes universitários são um grupo relativamente privilegiado e, portanto, seria difícil levar adiante esse tipo de política.

Também na política externa, a esquerda amargou decepções. Muitos gostariam de ver a administração Biden aderir novamente a duas iniciativas da era Obama: o acordo antinuclear com o Irã e a normalização das relações com Cuba, ambas violadas pelo governo Trump. Biden não deu sinais de ter pressa em fazer nenhuma delas. A administração tem deportado pessoas na fronteira do México em grande número e acabou sendo pressionada a elevar as metas de refugiados reduzidas a níveis baixíssimos sob Trump. Há cálculos políticos e práticos que orientam estas decisões. Trump deixou as agências federais com falta de pessoal e mal administradas; reconstruí-las levará tempo. A abertura da esquerda à imigração tampouco encontra grande adesão popular.

Biden parece inclinado a avançar primeiro na política interna e não querer fazer nada que ponha em perigo sua agenda nessa frente. No entanto, muitos da esquerda pensam que Biden precisa ser empurrado para fazer mais coisas e melhor. Durante o recente conflito em Gaza, a presença de vozes de esquerda na mídia e na política tornou a experiência dos palestinos mais visível do que nunca nos Estados Unidos, o que pode ter ajudado Biden a pressionar Benjamin Netanyahu a aceitar um cessar-fogo em vez de arriscar a relação EUA-Israel. Por outro lado, a esquerda ainda se preocupa com o posicionamento de domínio e hegemonia dos EUA que Biden não questiona. Há medo de uma nova Guerra Fria com a China, pois Biden frequentemente se refere à sua agenda doméstica em termos de uma corrida internacional. “Estamos em competição com a China e outros países para ganhar o século XXI”, disse ele em seu primeiro discurso ao Congresso. Se isso leva a conflitos ou é principalmente para consumo interno, servindo de estímulo — como disse ele mais tarde — para “enfrentar o desafio central do tempo presente de provar que a democracia é durável e forte”, ainda está por ser visto.

O framework “defesa da democracia” serve de pano de fundo para aliar a interpretação de Biden acerca de seus papéis tanto na esfera doméstica quanto na global. Muitos interpretaram Trump como uma ameaça potencial às instituições democráticas de pequeno porte. Os contínuos esforços dos republicanos para encobrir a invasão do Capitólio em 6 de janeiro e seu desejo de punir os membros que denunciaram a mentira repetida por Trump de que as eleições foram roubadas dele, dão bem a dimensão do que se passa. Isso sem falar nos inúmeros esforços dispendidos pelos estados para dificultar o voto das pessoas nas próximas eleições — especialmente daquelas que tendem a apoiar os democratas. Biden pode ter uma janela limitada para fazer qualquer coisa a esse respeito, o que é normal já que o partido não controla a Casa Branca para obter vitórias nas eleições legislativas de meio de mandato. Os republicanos podem vir a controlar uma ou ambas as casas do Congresso até o início de 2023, e muitos democratas temem que esta condição possa se tornar essencialmente permanente, pois a distribuição geográfica dos eleitores é muito favorável aos republicanos.

Há muitas respostas possíveis, todas elas exigindo algum radicalismo processual. Washington D.C. (atualmente um distrito federal) ou Porto Rico (ainda uma colônia!) poderiam ser admitidos como estados, e, provavelmente, elegeriam quatro senadores democratas, caso o fossem. O tamanho da Suprema Corte (na qual Trump conseguiu colocar três novos juízes) poderia ser ampliado. A legislação federal relativa ao direito de votar, incluindo uma divisão distrital justa, representa uma agenda mínima. Mas tudo isso exigiria a abolição da obstrução. Ocasionalmente, a própria obstrução poderia ser abolida com cinquenta votos, mas os democratas mais conservadores opõem-se a isso.

Consequentemente, ações em favor dos direitos civis, do direito a votar, dos direitos das mulheres (se a Suprema Corte conservadora vier a acabar com a lei federal que garante o direito ao aborto, como muitos esperam) e do sistema de justiça criminal já estão provavelmente fora da alçada dos democratas. Nada podem fazer a respeito. Por enquanto, tudo que podem fazer é gastar dinheiro. Tudo que Biden pode fazer é assinar projetos de lei e emitir declarações detalhando decretos executivos. Os presidentes Franklin Roosevelt e Lyndon Johnson desfrutaram ambos de grandes maiorias no Congresso, durante as quais conquistas progressistas foram forjadas. A menos que Trump decida formar um terceiro partido e concorrer contra os republicanos, é pouco provável que essa situação tão favorável no passado se repita. Embora a febre dos anos Trump tenha desvanecido um pouco, o sistema continua muito frágil.

Por outro lado, pode ser que realmente a era do neoliberalismo ao estilo norte-americano esteja chegando ao fim. Enquanto Ronald Reagan declarou nos anos 1980 que o governo era o problema — e o Partido Democrata da era Clinton concordou —, Biden assumiu a presidência numa época em que os bens públicos — da saúde à educação e passando até mesmo pelo clima — determinarão a qualidade de vida nas décadas vindouras. A falta de governo se tornou um problema e a pressão do bloco social-democrata na política americana ajudou a deixar isso bem claro. Mas até que ponto Biden quer verdadeiramente uma ruptura com o passado e será capaz de promovê-la, isso ainda está por ser visto.