3

Homenagem a Alfredo Bosi (1936–2021)

“O desejo de verdade que nós temos é a única força que pode retificar, corrigir a potência extraordinária da imagem do simulacro.” (Alfredo Bosi), Adriano Rampazzo

Tive a honra de ser aluno do professor Alfredo Bosi em uma disciplina de Literatura Brasileira Colonial, assunto que até então, jovem graduando que era, não me atraía nem um pouco ― afinal, quem liga pra poesia épica brasileira ou para o conjunto de textos em geral sem graça e burocráticos de nossos colonizadores? Eu então, aluno pobre, vindo da educação pública, sem fazer a menor ideia do que era ou o que podia a crítica literária, não atentava para o fato de que a disciplina seria ministrada pela mesma pessoa que havia escrito a Dialética da colonização, obra monumental, brilhantemente localizada entre a crítica literária e a história e que a despeito de todas as premiações, merecia destaque ainda maior no âmbito das Ciências Humanas. Espécie de complemento da análise do período de formação da literatura brasileira como sistema elaborado por Antonio Candido em sua Formação da literatura brasileira, a Dialética aborda o momento pré-sistêmico da “nossa” literatura ― daí, inclusive, o acerto da mudança de perspectiva, das grandes sínteses sociológicas estruturais para o devir em fluxo dos processos históricos. O resultado foi um dos melhores cursos que fiz em toda a minha vida, e a razão de adorar ministrar Literatura Brasileira Colonial.

Lembro do maravilhamento que suas aulas me causavam. Não só pela profundidade do conteúdo, dotado de uma erudição sem pedantismos, de alguém que ama o saber (um saber vivo, porque compartilhado), mas também por aquilo que se deixava adivinhar pelo conjunto de sua postura. Bosi chegava humildemente, devagar, algo curvado e sorrindo, com um pedacinho de papel todo rabiscado depositado sobre a mesa. Sua voz era suave e delicada, levando os alunos a se curvarem em postura atenta, mesmo quando o mestre falava com o auxílio de um microfone ― como se o que se desejasse sorver fosse não apenas o conteúdo, mas as palavras em si, como prolongamentos materiais do corpo. O prazer que ele sentia por estar ali era transparente, sendo transmitido nos gestos de generosidade que ofertava a todos que a ele se dirigiam.

O tema geral da aula poderia ser Antonil ou Anchieta, mas ele começava sempre com um dado anedótico, algo como (para citar um comentário real): “Gilberto Freyre era um guloso”. Quem não estava familiarizado com seu rigor e erudição pensava logo se tratar de uma digressão solta, da qual a construção geral do argumento iria progressivamente se afastar. Entretanto, aos poucos, com precisão milimétrica, o pensamento começava a se bifurcar por fendas que abririam os leques mais descompassados, indo da cultura popular paraibana do século XVIII aos textos que ele traduziu pessoalmente na Itália, até enfim chegar em Antonil, finalizando com um retorno à gula de Gilberto Freyre, que de fato anedótico ganhava força hermenêutica mais geral. Tudo isso no tempo exato de uma aula. Devo confessar que ao longo de minha trajetória nunca encontrei outro professor que demonstrasse tamanha erudição, livre de qualquer pedantismo e aliada a um didatismo capaz de tornar os assuntos mais herméticos deliciosos de acompanhar. As quatro horas de aula passavam voando.

Católico de esquerda, Bosi era um humanista no sentido mais forte que a palavra pode assumir, daqueles que avaliam o nível de uma civilização não por seus avanços técnicos e materiais, mas pelo destino que nela ocupam os mais pobres. Esse é o espírito que anima boa parte de sua produção intelectual, a começar pelo desejo de democratização do saber que se reconhece em sua História concisa da literatura brasileira, finalizada na década de 1970, quando o autor contava com apenas 34 anos, e que atualmente se encontra já em sua 52ª edição.

Em entrevista concedida em 1979, Bosi expressa claramente de onde emerge o espírito da obra:

Quando veio o golpe de 64 e a Universidade foi atingida e a metodologia tomou conta, eu tinha uma imensa frustração, um imenso desejo de fazer coisas que não pude fazer. Realmente, todos aqueles projetos cortados pela raiz, muitos dos meus companheiros foram exilados, alguns entraram para uma clandestinidade muito mais violenta, mas eu de qualquer maneira estava com o coração do lado deles, de toda aquela cultura que foi cortada. Então, a História Concisa, apesar de suas limitações, apesar de ser um livro basicamente didático, foi um livro escrito sob esta inspiração de encontrar nos escritores esses germes de revolta, esses germes que podemos dizer de uma suposição dialética. E eu acho que desta época até hoje, apesar de todo o aprofundamento cultural, o aumento quantitativo de informações, o que me sustenta é essa atitude de espírito gerada neste período que eu batizo, às vezes, como período de “Brasil Urgente”, pois eu colaborei nele e realmente é a minha atitude básica1

Bosi tem plena consciência de que o que faz desse livro um clássico não é apenas seu caráter de manual, de um didatismo alheio a simplificações, mas sua busca por aquilo que, na literatura, é capaz de resistir ― tema que atravessaria suas preocupações estéticas e sociais em diversos momentos, como nas análises presentes em Literatura e resistência (2002) e Ideologia e Contraideologia (2010), ou em ensaios da profundidade de “Poesia-resistência” (O ser e o tempo da poesia, 1977). Também na Dialética da colonização podemos observar esse mesmo espírito, empenhado em reconhecer nos clássicos da literatura colonial os fracassos a um só tempo cristãos, civilizatórios e literários da formação do país, quando observados da perspectiva dos verdadeiros sujeitos nacionais: os negros e os indígenas. Nesse sentido, dois pontos altos do livro são as análises de Gregório de Mattos, que de nacionalista libertário e carnavalizador passava, após a demolidora e corajosa análise de Bosi, a conservador racista, misógino e adulador de Portugal, e a análise que faz do indianismo anti-indígena de José de Alencar ― a propósito, defensor apaixonado da escravidão ―, para quem o Brasil deveria ser formado pelo sacrifício indígena em nome do desenvolvimento do sangue europeu.

Alfredo Bosi fazia parte de uma geração de intelectuais dotados de um conhecimento profundo do melhor da tradição Ocidental ― e que no seu caso envolvia, para além da literatura brasileira e italiana, filosofia, história, cultura popular, música e artes plásticas ― que era mobilizado e matizado a partir de uma crença radical nas potencialidades do Brasil. Não o Brasil oficial, excludente e negativo, mas o Brasil que se deixa adivinhar por entre a cultura de resistência popular. Ao lado de nomes como Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux, Anatol Rosenfeld, Paulo Freire e Mário de Andrade, imbuídos do espírito civilizatório antiprovinciano dos modernistas, acreditava na capacidade do Brasil em se tornar um país imenso caso houvesse um processo profundo de democratização do conhecimento e uma guinada civilizatória real, a partir do desenvolvimento dos saberes populares.

É nesse espírito que Bosi escreve sua História concisa da literatura brasileira. Espírito que também anima Otto Maria Carpeaux a escrever as cerca de 4 mil páginas da monumental História da literatura ocidental, voltada para o público brasileiro. “Para quê escrever uma obra dessas em um país semiletrado como o nosso”, é o que à época, como hoje, se perguntava. Ora, se não se escreve, de fato, ninguém lerá, e é essa pulsão utópica capaz de realizar feitos enormes no presente que marcou essa geração. Uma geração que sonhou coisas muito grandes para o Brasil e cujos feitos não se apequenam por terem se realizado em escala muito menor ― por vezes reforçando antigas cisões que se julgava combater ― do que se almejava. Hoje, quando nossos sonhos se veem reduzidos ao horizonte mais imediato possível ― acordar vivo no dia seguinte, levantar e encontrar os nossos bens ― é preciso recuperar essa propriedade realista do sonhar, que torna possível imaginar outras vivências para além das dores do presente. Dela depende nossa possibilidade de reinvenção futura.

Para mim, a imagem de Alfredo Bosi permanecerá para sempre como a dos grandes mestres que eu gostaria de ter, um tipo de intelectual/professor que não me parece mais possível, pelas próprias mudanças radicais dos sentidos da universidade e da docência. A universidade não é mais a mesma, os alunos não são mais os mesmos e a função da universidade mudou. Bosi viveu em uma época em que as aulas eram uma construção intelectual viva em andamento, daquelas que são publicadas e se tornam clássicos, como os seminários de Lacan, os cursos de Saussure e as aulas de Antonio Candido.

Mas, sobretudo, Bosi era uma figura humana extraordinária. Já velhinho, cochilava em partes dos seminários chatérrimos, mas conseguia recuperá-los ponto a ponto, complementando-os de modo a deixá-los mais interessantes e valorizando o trabalho dos estudantes. Era sempre muito solícito e sensível às demandas do movimento estudantil e me lembro dele se emocionar bastante com a apresentação de dança afro do grupo de capoeira do mestre Pinguim, que à época se reunia no Núcleo de Consciência Negra da USP. Uma amiga lembrou da época em que ela levava seu filho recém-nascido para assistir às aulas e Bosi a ajudava como dava, segurando a criança no colo até que ela pudesse se ajeitar melhor.

Sua partida me emocionou bastante, em parte por aquilo que nele se confunde com minha própria trajetória, na memória afetuosa de um grande mestre. Mas em parte também por sua passagem se dar em um momento histórico tão triste e conturbado, que em grande medida é a negação daquilo que ele sonhou para nós ― embora pense que sua mensagem nesse momento fosse para que seguíssemos acreditando. Um Brasil apequenado e mesquinho ― e sua partida só faz confirmar o quanto nossos sonhos diminuíram de tamanho. Bosi morreu de covid-19, mas não consigo afastar a amarga sensação de que ele morreu, ao menos em parte, de Brasil.