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Vestida de preto1

Talvez Duplo figurado seja um bom trabalho para começar a perder-se na arte de Flávia Ribeiro. Uma imagem fotográfica de profundo negro que apresenta duas mãos segurando uma esfera dourada. O dourado e a mão contrastam com o negro onde sutis distinções permitem entrever tênues dobras na escuridão. Jogos de tons extremamente próximos se diluem, produzindo dobras quase imperceptíveis a figurar o longo vestido que cobre por completo aquele ou aquela cujas mãos está segurando a esfera. A sua face também não é vista, vemos apenas cabelos negros e percebemos que se trata de uma pessoa que nos dá as costas. A dimensão do corpo na imagem é de 1 para 1, isto é, o tamanho real de um ser humano.

Quem sabe seria a própria artista trajando um negro absoluto e cujas mãos brilham ao portar uma esfera dourada? Uma curiosa esfera que, em uma espiral de pétalas, espelha mãos daquela que a produziu? Flávia Ribeiro foi, sem dúvida, uma artista para quem a criação em muito se misturou ao fazer de suas mãos. Uma artista apaixonada pelo prazer manual da produção da gravura, e que marcou parte significativa de sua trajetória, sobretudo a gravura em metal cujas placas de cobre reluzente muitas vezes são obscurecidas pela maneira negra, tornando-se especialistas em produzir os mais variados, densos e aveludados tons de preto.

Suas exposições há muitos anos já não apresentavam novas gravuras no estrito senso, porém a placa de metal, os tons de negro e o fazer manual sempre se mantiveram como uma prática, então, transposta para outros formatos. Por exemplo, nas esculturas intituladas Pré-objetos, que possuem um tamanho compatível ao manuseio de nossas mãos. Obras em que se pode notar a cuidadosa manipulação da artista; cada pequena parte da superfície apresenta as marcas de seus gestos. Como o “toque de Midas” que tudo transforma em ouro, tais objetos são metamorfoseados em arte por suas mãos, mas, em lugar do reluzente dourado são peças extremamente escuras em que os gestos se diferenciam no negro sobre negro.

São esculturas fundidas em bronze que recebem uma pátina negra. Elas formam estranhas estruturas a circunscrever um espaço vazio, sustentam-se por meio de pequenas hastes como se tivessem pés, e a maioria delas possui quatro hastes que as colocam de quatro como um pequeno animal. Porém, sua forma vazada e aérea as reconduz a uma figuração abstrata; são como abstratos desenhos negros sobre um fundo que os contradiz em cor. Um fundo em sua maioria dourado, as patas desse animal abstrato se equilibram, ora evitando ora pisando sobre pequenos tapetes de veludo quase todos na cor amarela. Tapetes, compostos por finas tiras de veludo meticulosamente costuradas, ponto a ponto, pela artista. Mais que amarelos, eles soam dourado, pois sua textura aveludada brinca com a luz.

A artista denominou tais esculturas de Pré-objetos. Sabemos o que são objetos, convivemos com eles em nosso dia a dia, mas o que são pré-objetos? Se eles se dão como objetos, certamente, então não são animais, a despeito das curiosas pernas que os retiram do chão e fazem com que avancem e interajam uns sobre os outros. A psicanálise denomina pessoas como objetos, objetos do desejo. Mas o que seriam pré-objetos do desejo? É possível dizer que as peças desejam e até mesmo se penetram? Mas elas não eram meros desenhos abstratos sob um fundo de cor? Seres solitários, algumas duplas e mesmo um trio? Estaríamos, por meio de nosso olhar, desejando demais? A despeito de sua escala manual, os Pré-objetos evocam a grandiosidade. Conversando sobre eles com uma arquiteta, imaginamos as obras como preciosas maquetes de construções monumentais, como suas formas constituem espaços fechados, as suas superfícies em outra escala ampliada bem poderiam ser paredes de uma estranha construção. Não, talvez seja melhor concebê-los como são, abstratos desenhos negros sob fundos dourados que ganham o espaço tridimensional.

O desenho era uma atividade constante da artista, lembro-me da série de Noventa e nove mais um desenhos que outrora ocupou as paredes de seu ateliê, produzindo uma enorme superfície desenho que se espalha em escala arquitetônica. O seu desenhar, como a própria revelava, sempre partia da observação ainda que muitos desenhos não cheguem a retratar o objeto original. Objetos muitas vezes eram escolhidos porque em si já não possuem mais formas reconhecíveis, como um lacre de vinho rasgado, um pequeno detalhe de uma teia de aranha, um mofo em um vidro, o instante do desabrochar de uma flor, um galho seco perdido de uma árvore, detalhes mínimos de um inseto. Também podemos ver figuradas em vários deles as estruturas negras dos Pré-objetos. Então muitos dos desenhos não seriam mais abstratos, mas uma figuração “realista” de objetos abstratos? Há uma transição entre os Pré-objetos e os desenhos e vice-versa, mas jamais somos capazes de determinar quem precede quem, do tridimensional para o plano ou o seu contrário. Esses desenhos também possuem uma vontade tridimensional, sendo translúcidas folhas finíssimas que, penduradas apenas pelas extremidades superiores, balançam interagindo com os deslocamentos de ar. Temos uma grande parede que, instalada por desenhos, flutua.

Dentre seus incontáveis desenhos, vem à memória uma imagem que se abre para uma estranha sobreposição tautológica entre figuração e a cor carmesim. O vermelho carmesim, em sua tonalidade precisa, vem a ser uma das principais cores a marcar não apenas seus desenhos, mas sua obra com um todo. Nesse desenho em questão a cor é apresentada cobrindo quatro figuras que ressoam a insetos e esses pequenos vermes curiosamente remontam à longínqua origem do próprio carmesim.

Minerais à parte, o primeiro e verdadeiro pigmento carmesim, um dos corantes mais raros e especiais conhecidos na antiguidade, era produzido a partir do corpo de insetos mortificados. Um corante que desafiou as forças destrutivas da luz, temperatura, umidade e tempo, sendo proveniente do oriente árabe, tendo conquistado a Grécia e a Roma antigas. A própria Bíblia menciona que os descendentes de Noé usavam roupas coloridas por um corante vermelho feito a partir de um pequenino inseto, o antigo artrópode que modernamente será conhecido pelo nome de Kermes vermilio. A palavra “vermelho” deriva da arcaica palavra francesa “vermeillon” que provém do latim “vermiculus”, o diminutivo da palavra latina “vermis”, ou seja, “verme”, de onde provinha a obtenção do corante carmesim. O inseto kermes vermilio que, desde tempos imemoriais, foi tomado por um pequenino verme, ou seja, vermilio. Apenas o corpo mortificado das pequenas fêmeas vermilio são usadas para extrair o pigmento.

O que se pode aprender sobre a arte de Flavia Ribeiro a partir dessa divagação sobre os mortificados insetos carmesim? Talvez um caminho para compreender que a precisa escolha das poucas cores empregadas pela artista possui uma longa e rica história. O carmesim, um tom peculiar de azul esverdeado, certo amarelo e o dourado que se encontram espalhados por sua obra, possuem em comum o curioso fato de historicamente se encontrarem presentes em manuscritos medievais, sobretudo em iluminuras de textos de origem religiosa cristã. São cores que ainda hoje preservam o seu frescor original em manuscritos de épocas remotas. A escolha cromática da artista nos aponta para a sobrevivência de tempos antigos: um reluzente dourado, o vermelho mortificado e esse leve azul infinito. Somadas a essas três, ainda acrescentaria as duas não cores: o intenso negro que tudo devora em escuridão e a sutil particularidade do diáfano, este não matiz que se dá entre presença e ausência, entre o visível e o invisível, que foi empregado em abundância pela artista como um véu, ou melhor, como uma velatura de delicadeza.

Um extenso véu faz parte da obra intitulada Caixa morte / a noiva; são três diáfanos tecidos de organza de seda branca que sobrepostos formam um ondulante tapete branco, uma espécie de véu estendido no chão sobre o qual a caixa se encontra. Uma caixa morte com três obscuras perfurações vem formar uma espécie de redução geométrica de uma caixa-crânio, uma caixa quase, mas não quadrada. Um terceiro elemento completa a geometria da obra, uma frase manualmente escrita em vermelho carmesim na extremidade da translúcida organza branca: “quando me perder do meu corpo, quando nele me acabar, será uma despedida fugaz e incrédula da matéria que me personificou”.

Desde o início da década de 1970, a morte foi um dos principais temas latentes em sua obra. A morte, sim, a permanente morte da estabilidade da matéria cuja estanque forma personifica um corpo e produz a cristalização de uma identidade. Perder-se de si justo no instante do próprio encontro, desconstruir identidades, não é esta uma das principais experiências estéticas que nos persegue pela obra de Ribeiro? Desde o Duplo figurado, cuja imagem se dilui em profundas sombras, passando por objetos que se desdobram em planos negros que se metamorfoseiam em corpos desejantes que, contudo, jamais se constituem para além de um “pré”, desenhos que assumem o papel de extensas paredes, cores que atravessam tempos, tempos mortificados, sequer a caixa para a morte é exatamente quadrada, a sua obscura geometria é distorcida.

O negro que atravessa e se espalha por toda sua obra nunca foi o do luto que paralisa o tempo, pelo contrário. Certa vez, um errante artista afirmou com precisão que “muitos gostariam de esquecer o tempo por completo”, porque este esconde o “princípio da morte (todo artista autêntico sabe disso)”. O negro-morte de Flávia Ribeiro é fecundo de um tipo preciso de tempo, aquele capaz de diluir os limites das formas e ideias. Um negro que também é carmesim, um negro que, dentro de si é ouro, o negro de uma circunstância sempre ímpar, que jamais se resolve, encontra-se ao se perder e, somente descansa em movimento.