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Os imitadores

Sem título, Paulo Monteiro, 2021–2022

As páginas dos jornais, os canais de TV, os youtubers — mais ou menos qualificados — e as redes sociais engajadas em debates políticos discutem diariamente as complicações policiais nas quais a família Bolsonaro está enfiada até o pescoço. Junto aos militares de estimação, os Bolsonaro protagonizam cenas esdrúxulas, dignas dos filmes pastelão que agradam o pessoal da quinta série, onde Jair parece ter se fixado. Enquanto isso, o ministro Alexandre de Moraes segura com suas mãos de juiz linha dura a combalida democracia brasileira, cuja dependência nos obriga a refletir sobre os limites do poder do Supremo Tribunal Federal e desta aposta que parece ter unido — mas atenção: não de modo definitivo —, os poderes político e judiciário. Prova da aliança, ainda que contingente, são os primeiros julgamentos dos réus do 8 de janeiro, com o STF protagonizando o papel de contenção da extrema-direita. Há, claro, quem argumente que o recurso ao judiciário era a única forma de devolver o gênio da ultradireita para a lâmpada de onde nunca deveria ter saído.

Gostaríamos de apontar para outras duas direções: a primeira reitera o que o editorial do número anterior da revista já indicava. Enquanto com a mão direita o governo mantiver todos os acenos ao Centrão e com a mão esquerda só for capaz de se apoiar na garantia da lei e da ordem democráticas, não estaremos desenvolvendo as condições mínimas para trazer o gênio de volta à garrafa.

O segundo argumento dirige o olhar para as eleições municipais de 2024.

A grande maioria dos municípios brasileiros está sendo comandada por prefeitos de extrema-direita desde 2016. Em 2020, o fenômeno se acentuou, principalmente nas cidades menores, com até 200 mil habitantes, onde estão esses prefeitos “imitadores” (termo usado nos filmes policiais em referência a criminosos que copiam o modo de operação de assassinos famosos, desses que “assinam” seus crimes).

Pois bem: os prefeitos imitadores, mesmo cientes de que precisam se afastar da família Bolsonaro e de seu patriarca — pesquisas eleitorais, ainda que precoces, já apontam para o enfraquecimento de Jair como eleitor —, lutam para encontrar o equilíbrio numa posição, um tanto difícil de sustentar, que é antipetista, antilulista, e que pretende não se deixar queimar pelo bolsonarismo. No entanto, são governantes que buscam se manter no poder copiando o modelo de governabilidade adotado pelo ex-presidente. Nas câmaras municipais, as emendas parlamentares obrigatórias (inexistentes no âmbito municipal) são substituídas por nomeações para cargos públicos; nas ruas das pequenas cidades, obras de qualidade e orçamento duvidosos são entregues como sinal de “avanço” e “progresso”; e as mentiras de sempre são disseminadas nas redes sociais, ora impulsionadas por algoritmos, ora por aliados de carne e osso.

Esses prefeitos estão destruindo as cidades que governam com a mesma fúria negacionista do Bolsonaro “original”. Pregam o desprezo pela cultura e pelo conhecimento, a aliança com setores religiosos conservadores, total descaso com os processos decisórios democráticos, nenhuma interlocução com setores da sociedade civil.

É também o que se vê, com mais nitidez, na esfera estadual. O caso de São Paulo é clamoroso. O governador Tarcísio de Freitas nominalmente se afasta de Bolsonaro, mas sobe em um tanque para desfilar no 7 de setembro, enquanto sua polícia efetua matanças só superadas pelo Massacre do Carandiru, e sua Secretaria da Educação pretende acabar com o uso do livro impresso nas escolas públicas. São governos com as mesmas aspirações fascistas do ex-presidente; e tornam-se praticamente monocráticos na escala municipal, uma vez que pouco observados pela grande imprensa, pelo judiciário e pela opinião pública.

Contra esses imitadores, é quase impossível pretender repetir a dinâmica nacional. Primeiro, porque nas cidades pequenas é difícil articular uma frente ampla com a centro-direita para combater — e vencer nas urnas — a extrema-direita. Em municípios menores, há uma imensa dificuldade de organização da sociedade civil, de sustentar partidos de oposição, seja porque prevalecem acordos locais que em nada correspondem aos arranjos nacionais, seja porque não é possível copiar o modelo nacional e postar um Alexandre de Moraes em cada esquina como guardião do estado democrático de direito. São prefeitos eleitos no rastro da onda de extrema-direita que se avolumou em 2020 e que disputarão a reeleição ano que vem como imitadores. Para barrá-los, essa amálgama entre poder político e poder jurídico que se vê no âmbito federal não vai funcionar.

Estamos, então, de volta ao Supremo Tribunal Federal e seu protagonismo na política brasileira. Discute-se, neste momento, quem será o próximo ministro nomeado pelo presidente da República, com campanhas que, legítimas e necessárias, estão voltadas a conquistar um espaço na principal arena decisória da política brasileira, a Suprema Corte. Soma-se a esse debate a indicação do próximo procurador-geral da República, outra aposta forte no poder judiciário como centro da política. Faz mais de 100 anos que o jurista alemão Carl Schmitt argumentou que o estado de exceção está ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico: dentro porque precisa estar previsto como decisão do soberano, decisão essa que será política, mas amparada no jurídico; fora porque, para ser política, precisa estar prevista, mas não pode estar descrita. No caso brasileiro, a exceção tem sido mobilizada na injunção político-jurídico, mantendo fraca e débil a crítica da esquerda à forte atuação do poder judiciário na vida política brasileira.

Em parte, pode-se explicar essa conduta débil pela dificuldade de fazer oposição ao judiciário e se confundir com os bolsonaristas furiosos, pregadores do fechamento do tribunal com “um soldado e um cabo”. Mas precisamente justamente aí está o desafio: os imitadores que vislumbramos no cenário eleitoral do ano que vem nos obrigam a dois movimentos simultâneos – voltar a fazer política nas ruas e começar a nos livrar dessa dependência perigosa dos tribunais.

Em vez disso, a pauta dominante convida o campo antibolsonarista a continuar desenvolvendo seu próprio jogo de imitação — cuja benignidade, insistimos, se não for duvidosa, na certa é passageira —, e que consiste no hábito norte-americano de reduzir todo e qualquer embate político às barras dos tribunais. Basta ver o acompanhamento nervoso que se faz das decisões de um ministro do STF recém-nomeado, cujos votos estão sendo escrutinados como se deles dependesse o futuro da nação.

Tirar o foco da Praça dos Três Poderes e pôr os olhos na municipalidade e nos estados é parte da recuperação daquilo que a extrema-direita também nos tirou: a capacidade de fazer política. Nas ruas.