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Um memorial para a amnésia

Cena de Um memorial para Antígona. (Foto: Matheus Brant.)

O que a Tebas mítica, que serve de cenário para o conflito entre os filhos de Édipo e o déspota Creonte na tragédia de Sófocles, tem a ver com o Brasil de 1979? A peça Um memorial para Antígona, do grupo teatral comitê escondido, com direção de Vicente Antunes Ramos, junta esses dois espaços e temporalidades para encenar um teatro sobre — o esquecimento.1 Sete atores se alternam declamando passagens de textos inspiradas no drama do autor grego e que são intercaladas com trechos de discursos realizados no Congresso Nacional de Brasília quando do debate, em 1979, em torno da criação da Lei de Anistia. Há também testemunhos de ex-presos políticos, depoimentos e obras de parentes de familiares de mortos e desaparecidos ecoam do palco. Em um bem encenado e amarrado teatro pós-dramático brechtiano, é através das palavras que as ações são anunciadas. Ecoando a estrutura de tribunal que caracteriza a tragédia clássica, é como se a Lei da Anistia finalmente encontrasse um fórum para ser revista: o palco do teatro. Os espectadores são o júri popular possível.

Os atores promovem oralmente uma dupla batalha que desdobra e entrelaça os conflitos tebanos da tragédia com a história de um país marcado pela prática de enterrar suas histórias de violência. Na versão apresentada, transformando o enredo da tragédia de Sófocles, os cidadãos tebanos, após o assassinato de Antígona, reúnem-se para a inauguração de uma estátua em sua homenagem. Um paralelo claro é estabelecido entre a homenagem a uma heroína realizada por iniciativa do próprio déspota que a condenou à morte, Creonte, e, por outro lado, a história do Brasil recente, determinada em boa parte por uma ausência de julgamentos, apuração e devida condenação dos atos hediondos de terrorismo de estado ocorridos no Brasil entre 1964–1979 (ano da Lei de Anistia). Indo mais a fundo na questão: se Antígona foi condenada à morte por ter desrespeitado o decreto de Creonte que proibia o enterro de Polinices e tinha realizado por conta própria os devidos rituais fúnebres para seu irmão, no Brasil a Lei da Anistia permitiu que corpos de desaparecidos assassinados pelo estado permanecessem sem o devido enterro. Por um lado, em Tebas, a lei de Creonte desrespeitava o direito natural de se enterrar um parente, realizando os devidos rituais fúnebres; de outro, um estado moderno desaparecia com as suas vítimas, impedindo os funerais, e repetia esse tipo de decreto arbitrário ao anistiar os criminosos, barrar as investigações jurídicas e o esclarecimento dos assassinatos, a demarcação dos locais onde os corpos foram escondidos etc. Lá e cá, a injustiça triunfa. Lá e cá, corpos insepultos poluem o ar da política, determinando uma suspensão da democracia. Mas, se na Grécia mítica a vitória de Creonte é uma vitória de Pirro, já que ele perdeu seu filho, Hemon, que acaba se suicidando após a morte de sua amada Antígona, e perde a sua esposa, que também se suicida, a situação no Brasil é bem diferente.

É importante saber que essa peça foi concebida durante o fatídico ano de 2019 e deveria ter sido estreada em 2020. Ela acabou sendo apresentada apenas em 2023: após a pandemia, já no início do terceiro governo de Lula e em um momento que muitos exclamam “Sem anistia”, referindo-se aos crimes cometidos pelo governo de 2019–2022, que levaram à morte centenas de milhares de brasileiros por conta do negacionismo contra as devidas medidas sanitárias que deveriam ter sido tomadas de modo célere diante da pandemia de covid-19. As questões que serviram de estopim para o tema da peça, a reiterada prática, no Brasil, de se anistiar os criminosos que servem ao Estado, o fato de termos eleito um presidente entusiasta da tortura, assumiram entrementes um significado ainda mais carregado.

Isso sobretudo se lembrarmos do crime ocorrido em 25 de maio de 2020 em Minneapolis, quando um policial branco assassinou, estrangulando de modo bárbaro e diante das câmaras, o afro-americano Georg Floyd. A reação internacional a esse assassinato desencadeou a derrubada de centenas de estátuas, monumentos e placas que comemoram personalidades ligadas aos crimes da colonização e à escravização durante a Modernidade. Pensar a importância das marcas de memória, que de certo modo orientam nossa geografia mnemônica e espiritual em nossas cidades, passou a ser considerado um momento central na construção de políticas de Estado. Não que essas estátuas e marcas da memória já não fossem centrais nessas políticas desde a mais profunda antiguidade. Basta lembrar o faraó Akhenaton e sua fúria iconoclasta contra os templos a Amon que ele fez destruir de modo massivo. Após a morte de Akhenaton, por sua vez, os faraós fizeram uma destruição tão radical de sua cidade sagrada, construída em 1370 A.C. em El Amarna, que apenas no século XVIII ela foi redescoberta. Mas na Modernidade, ou seja, desde o século XV, nossas cidades tendem a ser pontuadas por estátuas e monumentos em homenagem a seus líderes políticos e militares. Essa prática também se sedimentou no modo monumental de se construir a história, como criticou Nietzsche, em 1874 , em seu ensaio Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida.2

Depois de Nietzsche, coube a Walter Benjamin fazer a crítica desse hábito de se monumentalizar déspotas e assassinos. Em suas teses Sobre o conceito de história, ele anotou, criticando o viés da historiografia tradicional, feita do ponto de vista das elites:

A empatia com os vencedores beneficia […] sempre os que ora dominam. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje foram vencedores vão junto ao cortejo triunfal dos dominantes, que marcham sobre aqueles que jazem hoje no chão. Os espólios, como de costume, são levados no cortejo triunfal. São os chamados bens culturais. O materialista histórico os observa sempre com o devido distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele contempla têm uma origem sobre a qual não pode refletir sem horror. Devem a sua existência não apenas ao esforço dos grandes gênios, que os criaram, mas também à corveia anônima dos contemporâneos destes. Não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie. E assim como a cultura não está livre da barbárie, assim também ocorre com o processo de sua transmissão, na qual ela é passada adiante. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico dela se afasta ao máximo. Ele considera que a sua tarefa é escovar a história a contrapelo.3

Justamente, este “escovar a história a contrapelo” é o que o nosso comitê escondido realiza com essa encenação. De modo bastante benjaminiano, a peça aproxima e coloca em curto-circuito eras cronologicamente afastadas, mas que ao serem sobrepostas, produzem uma imagem dialética, ou seja, facultam visualizarmos de modo crítico e empoderador a nossa história. A memória, afinal, é uma criação dinâmica de cada presente. Ela só existe de modo múltiplo. Adentramos a arena política armados dessas memórias. Os donos do poder no Brasil sempre cultuaram com muito carinho a sua história linear, esse triunfo de nossos regentes, de D. Pedros a Bolsonaros, construindo uma história de supostos progressos e de um presumido acúmulo de conquistas.

A história escovada a contrapelo, no entanto, revela uma longa e plural miríade de narrativas que se perdem no tempo, são sistematicamente silenciadas, rasuradas, apagadas e impedidas de se divulgar. Existe uma relação direta entre a economia em termos financeiros e a economia mnemônica. O fato de o Brasil ser o segundo país do mundo com a pior divisão de renda é estruturalmente correspondente ao fato das memórias dos subalternizados serem sistematicamente apagadas neste país. A uma população sem direito à memória corresponde também uma população sem direito à identidade e às cidadanias social e econômica. A uma polícia genocida correspondem práticas amnésicas para lidar com as memórias dos espezinhados. A história do genocídio indígena multissecular, da escravização, das torturas, da fome, do aprisionamento, do abandono, da humilhação, a história dos inúmeros levantes dos escravizados, dos operários e camponeses, dos heróis anônimos, essas histórias são passadas oralmente, via testemunhos e via outras modalidades de inscrição que tentam burlar censura onipresente.

Em Um memorial para Antígona, portanto, o comitê escondido nos propõe uma inteligente e provocativa reflexão acerca desses hábitos típicos deste país pontuado por golpes e por continuidades das elites. O mote da peça é a frase repetida com ênfase: “Passado abandonado não se torna passado”. Nossas elites se perpetram no poder e suas histórias unilaterais também. Elas precisam dessa pseudo-história para se manterem no poder. Se no século XXI minorias (majoritárias, é verdade) estão conseguindo se empoderar e estão enfrentando o poder patriarcal branco, a resposta tem sido uma enorme onda neofascista.

Como o escritor sobrevivente do campo de concentração de Dachau, Robert Antelme formulou em 1948: “Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS”. Essa também tem sido a prática nas burguesias latino-americanas, e o Brasil merece destaque nessa prática. Essa eterna reiteração e ostentação do poder e de seu cetro comanda a construção de estátuas a militares e bandeirantes, com destaque, é claro, para o Monumento às bandeiras de Victor Brecheret no parque do Ibirapuera em São Paulo. Sob suas centenas de toneladas, séculos de histórias de horror são reiteradamente sufocadas.

Corpo, memória, voz e espaço

Talvez por conta desse sufocamento das narrativas da memória da maior parte da população — aliado ao fato de que essa peça foi praticamente reescrita durante a pandemia, quando os brasileiros sufocavam por conta da necropolítica oficial — atores (com ou sem máscaras imaginárias contra a covid) respiram de modo insistente por bocas entreabertas em Um memorial para Antígona. Frases são entrecortadas por respirações, ruídos estridentes impedem que ouçamos parte dos textos recitados. É como se estivéssemos diante de um dispositivo enguiçado de produção crítica da memória. A memória sufocada brota aos jorros. Um corpo em agonia emite sons que denunciam histórias de horror e de memoricídios.

Mas essa peça também é resultado de um belo trabalho de pesquisa. Apresentando os debates em torno da criação e votação da Lei de Anistia em 1979, ela faz um trabalho psicanalítico de escavação em nossa capa de memória ressequida, composta por uma terra quase petrificada pelas políticas memoricidas e de esquecimento no que toca (também e não apenas) à ditadura de 1964–1985. Freud comparava a sua técnica psicanalítica ao gesto de escavar de um escultor, e a contrapunha ao do pintor de colocar camadas de tinta. Na peça, a estátua de Antígona representa, por sua vez, uma “memória encobridora”, uma imagem-biombo, feita para se ocultar os crimes de Creonte, para se esquecer de Polinices (o guerreiro pela autêntica democracia) e de seus companheiros. Mas Freud também comparava sua técnica psicanalítica ao trabalho de um arqueólogo, que escava na terra. E as descobertas que o comitê escondido traz à superfície não são de pouca monta.

Já a primeira fala, do herói da luta pela democracia Teotônio Vilela, é estarrecedora. Trata-se de um largo elogio da Anistia como pacto de esquecimento:

Srs. senadores, Srs. deputados, membros da Comissão Mista da Anistia. Estamos aqui reunidos para examinar matéria importante para os rumos que toma a nação, a saber, o projeto de Lei n. 6.683, a chamada Lei da Anistia, enviado para o Congresso Nacional pelo Sr. João Batista Figueiredo, o Presidente da República neste ano de 1979. Que se registre aqui este momento histórico em que este Congresso, em Comissão Mista, se reúne para debater esta lei. Com o selo da liberdade, a Anistia é o mais belo movimento que já se estruturou no país depois da instalação do arbítrio, principalmente pela espontânea congregação de entidades civis e parcelas descomprometidas da sociedade aberta no firme compromisso de erguer os direitos da pessoa humana acima de desentendimentos e guerras, e firmar um pacto de esquecimento capaz de gerar uma nova solidariedade pelo futuro. Srs. Membros da Comissão Mista da Anistia, declaro aberta a sessão

Mas é sobretudo nas falas dos deputados da Arena, o partido que apoiava a ditadura, que escutamos a insistência em associar anistia, perdão, esquecimento e conciliação. Trata-se justamente do gesto memoricida e assassino do direito, das leis e das convenções que tornavam e tornam impossível a suspensão da esfera jurídica em caso de crimes imprescritíveis e não passíveis, portanto, de perdão. Não existe anistia para os crimes cometidos pelo terror de Estado. Como pudemos ver e ouvir recentemente no excelente filme Argentina, 1985, de Santiago Mitre, o promotor Júlio Cesar Strassera no seu discurso final de acusação, em um belo gesto retórico, propõe aceitar a tese (na verdade absurda) segundo a qual o que ocorrera na Argentina na ditadura de 1976–1983 teria sido uma “guerra”, ou seja, Strassera propõe aceitar provisoriamente a famosa “teoria dos dois demônios”. O sábio promotor pondera:

Adotemos agora a teoria da guerra, tão repetida pelos réus. Podemos considerar o sequestro de indefesos, ao amanhecer, por gangues anônimas, um ato de guerra? É um ato de guerra torturá-los e matá-los, se não ofereceram resistência? É um ato de guerra ocupar lares e fazer famílias de reféns? São alvos militares os recém-nascidos?

E, na mesma toada, na peça, o guerreiro de Polinices, ou seja, o representante dos que caíram na luta contra os déspotas fala: “Eles diziam que era uma guerra. Mas nós não tínhamos a menor chance. Etéocles [representante do exército] girava a manivela [da máquina de eletrochoque de tortura], e dizia que estávamos todos em guerra.”

Contra a noção absurda de que se poderia por decreto de anistia perdoar aos verdugos e pacificar a sociedade, somos confrontados com a poderosa manifestação do pronunciamento do Movimento Feminino pela Anistia, que havia sido criado em 1975:

Anistia, já foi dito, não é perdão. Porque perdoar pressupõe humilde gratidão de quem é perdoado. Como sabemos todos nós, reunidos aqui, não é bem disso que se trata. Foi, então, sugerido, que se desse à palavra ANISTIA outra conotação — a de esquecimento. Acontece, porém, que aqueles que se apoderaram do poder sofreram apenas algumas baixas. Por conseguinte, se anistia é esquecimento, o que têm a esquecer é, relativamente, pouco E muito pouco diante do que, de nós, será exigido em matéria de esquecimento. Porque teremos de esquecer o Pau de Arara. A Câmara de Sons. A Cadeira do Dragão. A Geladeira. Os choques elétricos. O isolamento. Os estupros. As cicatrizes que marcaram para sempre o corpo e a mente de tantas e tantas vítimas de terrível repressão que varreu o país de ponta a ponta. Que se abateu como algo de diabólico sobre toda a nação. As paredes úmidas das celas e das salas de tortura guardarão para sempre o eco dos gritos de agonia e as manchas de sangue, do suor e das lágrimas daqueles de quem tentaram arrancar confissões e delações.

No entanto, tampouco muitas dessas paredes de prisões nas quais os que lutaram contra o regime e por seus ideias revolucionárias foram presos podem ecoar algo, já que o Carandiru e o presídio Tiradentes foram demolidos e mesmo o Deops de São Paulo, que hoje abriga o Memorial da Resistência (principal local de memória crítica do período da ditadura), passou por uma reforma que retirou das paredes das prisões as inscrições que ali haviam deixado esses prisioneiros. Políticas do esquecimento. Mas, no Brasil, os monumentos, ao molde dos que reverenciam aos bandeirantes, continuaram a ser erigidos em homenagem aos ditadores, como o Mausoléu a Castello Branco, no centro de Fortaleza, além das milhares de denominações de logradouros que homenageiam torturadores, ao arrepio das recomendações que constam no relatório da nossa Comissão Nacional da Verdade.

Na peça, o guerreiro de Polinices também lembra das palavras de Creonte que clamavam para que “deixemos o passado para trás”. Mas, pondera o guerreiro, como esquecer, se o nome de Polinices não está escrito em lugar algum, a não ser na sua própria memória de guerreiro: “Como eu posso esquecer, se eu ainda escuto os ruídos da guerra, os gritos e o som da manivela que gira?”. E outra voz brada: “Como eu posso esquecer, se a dor ainda dói, se o sangue ainda lateja, se eu ainda me lembro?”. A memória do mal exige uma dupla inscrição na sociedade: uma nos locais de memória e nas datas comemorativas. Outra, imprescindível também, se quisermos construir uma nação sem candidatos a pretensos “salvadores da pátria”, golpistas, exige que o sistema jurídico faça o seu trabalho. Demanda que sejam suspensos os pactos de esquecimento e de perdão. Lembrando que a anistia aprovada foi articulada pelos próprios algozes, ainda durante o período ditatorial. Essa lei se apropriou então da legítima bandeira de uma anistia, reivindicada pelos que lutavam contra a ditadura, que seria restauradora da justiça e sem perdão aos torturadores. A esfera da justiça, que é um dos pilares do poder e resiste a se abrir para os que se colocam do lado da luta pelo fim da sociedade de exploração, tem se mostrado particularmente avessa às lutas pela democracia no Brasil, ao menos até o governo Bolsonaro (quando o STF se tornou a única instância na Praça dos Três Poderes mais preservada do fascismo). A cassação da presidenta Dilma, em 2016, e a prisão do candidato potencialmente vencedor das eleições presidenciais, Lula, em 2018 são dois casos eloquentes nesse sentido. A esfera do direito, que habita os palácios de justiça kafkianos, gigantes e neoclássicos, tem apoiado muitos regimes ditatoriais, como foi o próprio caso do regime hitlerista, com seus “grandes” juristas. Na peça, não por acaso, ouvimos repetido o mote: “Teve muito choque elétrico por entre essas colunas gregas.”

Trauma

Junto com esse processo mnemônico e de construção da justiça vem também um processo de busca pela verdade dos fatos horrendos de então. Os cadáveres insepultos devem ser localizados, identificados e seus familiares devem ter o direito de finalmente enterrá-los devolvendo a dignidade aos que foram assassinados de modo indigno.

O guerreiro de Polinices está assombrado por suas memórias. Ele está traumatizado, lembrando que o traumatizado é aquele que está tomado por “memória demais”. O paradoxo é que os traumatizados no Brasil têm esse “excesso” mnemônico sem a contraparte de locais e datas para inscreverem essas memórias. Não se trata de se reivindicar novos monumentos gigantes e pesados, mas de se propor espaços e dispositivos de memória ao molde de antimonumentos, que apresentem justamente esse trabalho de memória enquanto trabalho de luto — interminável. O guerreiro fala:

Sim, sim, mais que uma estátua, hoje deveríamos estar aqui inaugurando um buraco. Um monte de terra, e um buraco com sete palmos de profundidade, vazio. Se houvesse pelo menos uma cova, uma cova que nunca pudesse ser fechada. Se marcasse aqui o lugar onde ele caiu… talvez eu pudesse olhar para esse buraco e gritar dentro dele.

Essa cova seria um espaço de memória intenso, um verdadeiro espaço de recordação.

Se a anistia e a estátua de Antígona, em frio mármore branco, significam na peça as marcas do esquecimento, da construção de falsas narrativas, que “sepultam o passado”, ao invés de acolhê-lo com dignidade, ao final da peça resta a esperança quanto à construção de outras modalidades de inscrição mais abertas aos verdadeiros heróis da história:

Algum dia, vocês vão ver, vamos construir o nosso, o verdadeiro memorial de Antígona. De Antígona e de Polinices. E de todos os mortos. Lá estará a terra, lá estará o cetro — não restará nenhuma dúvida, então, sobre a queda de Creonte. Isso daqui é pouco, muito pouco. E lá estará escrito: Para que nunca mais se esqueça: Passado abandonado não se torna passado. (para Ismene) Você se esqueceu de tudo.

Nós nos esquecemos de tudo, ou de quase tudo, como o comitê escondido nos mostra. Mas o pouco de que nos lembramos pode ser semente para resgatar os milhões e milhões de histórias a narrar. Zarpemos!