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Erdoğan e a questão curda depois de 2023

No dia 28 de maio, Recep Tayyip Erdoğan venceu pela terceira vez as eleições presidenciais na Turquia, país que governará por mais cinco anos. Quando seu mandato terminar, em 2028, ele terá permanecido no poder por 25 anos. Depois de ter atuado como primeiro-ministro durante onze anos, entre 2003 e 2014, Erdoğan tornou-se presidente em 2014 e, desde então, tem governado nessa posição. Durante esses vinte anos no poder, Erdoğan implementou políticas conflitantes e teve diferentes faces. Grosso modo, houve dois Erdoğans: Erdoğan até meados da década de 2010 e Erdoğan a partir então. Enquanto o primeiro introduziu algumas reformas notáveis no domínio das liberdades de pensamento e de associação, o segundo tem sido severo com os seus opositores. Da mesma forma, embora Erdoğan tenha mantido boas relações com a União Europeia (UE) e os EUA em sua primeira fase, a partir de 2014 passou a agir como se a Turquia fosse um aliado da Rússia e não um membro da Otan. Além disso, enquanto o primeiro Erdoğan consultava colegas, o segundo Erdoğan tornou-se um partido e um governo de um homem só. Em suma, enquanto o primeiro Erdoğan se empenhou em resolver a questão curda através de negociações e reformas, o segundo passou a associar a questão curda na Turquia com o terrorismo.

Atualmente, questiona-se se Erdoğan continuará a ser “o segundo Erdoğan” ou se terá uma face totalmente nova no seu último mandato na presidência. Existe curiosidade, tanto na Turquia como no exterior, em saber se ele irá reforçar seu regime autoritário ou se irá recuar e regressar a uma política mais democrática. É também curioso saber se aprofundará os seus laços com a Rússia de Putin, ou se atuará como um verdadeiro aliado do Ocidente. Do mesmo modo, questiona-se se Erdoğan vai continuar a abordar a questão curda como uma questão de segurança ou se vai regressar às políticas de negociação e reforma. No que se segue, especularei sobre os passos futuros de Erdoğan no seu último mandato presidencial. No entanto, primeiro é preciso descrever a forma como Erdoğan e os seus antecessores se envolveram na questão curda no passado.

O Estado turco e a questão curda

Governado durante séculos pelos impérios iraniano e otomano, o Curdistão, a terra natal da população curda, encontra-se atualmente sob a soberania da Turquia, do Iraque, da Síria e do Irã. O Curdistão otomano foi dividido entre a República da Turquia, o Iraque e a Síria após a Primeira Guerra Mundial. Embora os curdos da atual Turquia tivessem laços relativamente fracos com o Estado central e mantivessem sua identidade etnocultural quando submetidos ao regime otomano, sua autonomia de fato foi esmagada e os curdos foram forçados a assimilar a cultura turca após a fundação da Turquia como Estado-nação. Os que resistiram e se revoltaram contra a disseminação do poder estatal e da cultura turca no Curdistão foram reprimidos. De fato, o Estado turco governou as pessoas de etnia curda em seu território por meio da assimilação e da repressão constante desde a fundação da República até tempos recentes, enquanto também “monitorava” cautelosamente a população curda no Iraque e na Síria, para garantir que fossem efetivamente controlados pelos respectivos Estados e assim permanecessem isolados dos curdos da Turquia. A tríade assimilação, repressão e monitoramento funcionou até ao final da década de 1990. No entanto, no início do novo milênio, o Estado turco procurou novas formas de lidar com a população e as questões curdas. O fato de o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK)1, que lançara uma guerrilha contra o Estado turco com um grupo de militantes em 1984, ter se transformado, na década de 1990, em uma organização militar — que mantinha uma guerra de baixa intensidade contra o exército turco e um complexo político que administrava jornais e canais de televisão e mobilizava milhares de civis na Turquia e na Europa — e o fato de o partido pró-curdo ligado ao PKK ter sido apoiado por mais de um terço da população curda, obrigou o Estado turco a procurar outras formas de relacionamento diferentes da assimilação e da repressão. Desempenhou papel semelhante a Turquia ter se candidatado à adesão plena à União Europeia. A candidatura para UE obrigou o a introdução de reformas que conferissem aos cidadãos curdos direitos políticos e culturais básicos. Em suma, no início do século XXI, o Estado turco começou a lidar com a questão através de novos meios, como a negociação e o reconhecimento. Por um lado, os oficiais turcos conduziram negociações secretas com o PKK para pôr fim ao conflito armado; por outro, foram feitas alterações constitucionais na legislação turca para tornar possível a aprendizagem, o ensino e a radiodifusão em língua curda.

Erdoğan e a questão curda

Erdoğan adotou esses novos meios para lidar com a questão curda em seus primeiros cinco anos no poder. Depois de levantar o estado de emergência que durou vinte anos no sudeste da Turquia, região povoada por pessoas de etnia curda, Erdoğan e o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP)2 introduziram algumas reformas adicionais para tornar possível a radiodifusão e o ensino em curdo. Além disso, foi promulgada em 2005 uma lei para compensar as perdas infligidas pela lei profile war entre o PKK e as forças de segurança na década de 1990. Alguns passos mais substanciais de negociação e reconhecimento foram tomados durante o que é hoje conhecido como “processo de paz” ou “processo de resolução”, que teve lugar entre 2009 e 2015. Os oficiais turcos se envolveram em tratativas publicamente conhecidas com Öcalan, o chefe do PKK preso na Turquia, e com os principais escalões do PKK no estrangeiro, para uma desescalada e possível desarmamento do Partido. Foi também nesses anos que a agência pública de radiodifusão lançou um canal em língua curda 24 horas por dia, e o Conselho do Ensino Superior decidiu criar departamentos de língua e literatura curdas nas universidades. Em conjunto, tais passos de negociação e reconhecimento foram os mais fortes na via de uma verdadeira negociação para pôr fim à luta armada e ao reconhecimento da identidade curda na história da República da Turquia. A adoção por Erdoğan dessa nova via produziu os seus resultados. Nas eleições de 2011, quase metade dos eleitores das cidades povoadas por curdos apoiaram o AKP de Erdoğan.

No entanto, em meados de 2015, quase tudo virou do avesso. O processo de paz terminou, os confrontos entre o PKK e as forças de segurança recomeçaram e os funcionários e apoiadores do partido pró-curdo foram pressionados pela polícia e pelo sistema judicial. Essa mudança súbita se deu por razões internas e regionais. Em primeiro lugar, tornou-se evidente que o PKK não tomaria a decisão final de desarmamento antes das eleições de junho de 2015, enquanto Erdoğan necessitava urgentemente de tal passo por parte do PKK para obter uma vitória eleitoral.

Em segundo lugar, as pesquisas de opinião antes das eleições mostrariam que, enquanto o apoio eleitoral do HDP (Partido Democrático Popular)3 pró-curdo estava aumentando, o apoio eleitoral do AKP estava diminuindo devido ao fato de cada vez mais apoiadores do Partido questionarem o processo de paz. Por último, enquanto os confrontos entre o PKK e as forças de segurança turcas estavam em pausa, as Unidades de Proteção Popular — YPG ligadas ao PKK e apoiadas pelos EUA (mais tarde HDS/SDF — Forças Democráticas Sírias) ganharam o controle de uma grande parte do território sírio junto à fronteira turca durante a guerra civil na Síria. Em outras palavras, no início de 2015, Erdoğan tinha concluído que o processo de paz estava funcionando para o bem do partido pró-curdo na Turquia e das Unidades de Proteção Popular — (YPG) ligados ao PKK na Síria, mas não para o bem do AKP na Turquia e do Exército Nacional Sírio que era apoiado pela Turquia. Foi nesse contexto que Erdoğan pôs fim ao processo de paz na primavera de 2015.

Enquanto o partido pró-curdo quase duplicou os votos nas eleições de junho de 2015, o AKP de Erdoğan obteve o seu segundo resultado mais baixo desde que chegou ao poder em 2002 e não conseguiu construir um governo de partido único. Como o AKP não queria construir um governo de coalizão e os partidos da oposição também não queriam estar envolvidos em coalizões com o HDP pró-curdo, as eleições foram renovadas em novembro de 2015. Aterrorizada com o súbito e suspeito aumento dos atentados do Estado Islâmico na Turquia e com o regresso dos confrontos entre o PKK e o exército turco, a opinião pública mudou as suas preferências eleitorais em poucos meses e o AKP obteve, desta vez, uma das votações mais elevadas da sua história e construiu um governo de partido único.

O “segundo” Erdoğan: 2015–2023

Tendo recuperado a maioria no parlamento e construído novo modelo de partido uno, o AKP retomou o envolvimento com a questão curda por meio de uma política de opressão sob a presidência de Erdoğan. As chamadas “guerras de trincheiras”, que foram travadas imediatamente após o colapso do processo de paz por um grupo de militantes do PKK, assistidos por um grupo de milícias e por jovens em algumas cidades e bairros curdos, foram esmagadas por uma campanha militar que durou meses. Centenas de militantes e forças de segurança foram mortos, centenas de milhares de pessoas de etnia curda foram deslocados e todas estas cidades e bairros foram arrasados durante esta campanha. E isso foi seguido por uma campanha de opressão contra o HDP, contra as ONGs, as estações de televisão e de rádio e os jornais próximos do partido.

A tentativa de golpe realizada por oficiais ligados à Comunidade Gulen nas forças armadas turcas, realizada em 15 de julho de 2016, deu poder a Erdoğan para facilitar sua campanha de repressão. Após esse fato, Erdoğan e o AKP declararam estado de emergência, que durou dois anos, quando era para durar, supostamente, três meses. Erdoğan utilizou o estado de emergência para expulsar não só aqueles que estavam filiados ao movimento Gulen, mas também para afastar toda a burocracia dos seus opositores, incluindo aqueles que estavam próximos do partido pró-curdo, e para destruir instituições políticas e culturais pró-curdas. Depois de suspender as imunidades parlamentares da maioria dos 59 deputados do HDP, quinze deputados, incluindo dois presidentes do partido, foram presos e cinco tiveram seus mandatos revogados. Do mesmo modo, 94 dos 102 presidentes de câmara do Partido das Regiões Democráticas (DBP)4, o partido irmão do HDP na região curda, foram substituídos por administradores nomeados pelo Estado e 75 copresidentes de câmara e copresidentes em exercício foram presos. Além disso, quase todos os jornais, canais de televisão e ONGs pró-curdos foram encerrados e os seus bens confiscados.

Resumidamente, foi como se Erdoğan tivesse atualizado a política de opressão de décadas do Estado turco no início de 2016. No entanto, o que o “segundo Erdoğan” fez no domínio da questão curda foi bem mais do que atualizar a política de opressão dos velhos tempos. Ao mesmo tempo que revisitava a antiga política autoritária na Turquia, Erdoğan substituiu a antiga política de monitoramento dos curdos do Iraque e da Síria pela de envolvimento direto com eles. A partir de julho de 2015, o exército turco lançou extensas operações militares na Síria e tomou o controle de Afrin, Jarablus, Manbij e Tel Abyad, povoadas por curdos e árabes, ou seja, as cidades que começaram a ser controladas pelas Unidades de Proteção Popular (YPG) durante a guerra civil na Síria.

Entretanto, o Estado turco não se limitou a pôr termo à autoridade das Unidades de Proteção Popular (YPG) nessas cidades sírias. Pelo contrário, começou a exercer um domínio direto nelas, estendendo todos os principais ramos do aparelho de Estado turco. Após a tomada pelos soldados turcos apoiados pelo Exército Nacional Sírio, a polícia e os governadores turcos assumiram o controle das localidades, as empresas de comunicação turcas e os serviços públicos de correios abriram as suas filiais, as universidades turcas abriram faculdades, etc. Em outras palavras, o Estado turco passou a exercer uma soberania de fato sobre essas terras. Este controle foi reforçado pela utilização dos instrumentos da população e do espaço. Para além da aplicação de uma engenharia demográfica através da substituição dos curdos sírios por árabes sírios nos territórios confiscados, os territórios sírios e turcos foram efetivamente separados através da construção de um muro de quilômetros de comprimento na fronteira. Entretanto, o exército da Turquia construiu dezenas de postos militares no Iraque para bloquear as atividades do PKK. Em suma, a Turquia substituiu todas as principais funções do Estado sírio no território sírio povoado por curdos e tem exercido um controle militar extensivo sobre as partes do Iraque povoadas por curdos, o que revela que Erdoğan substituiu a política de monitoramento das pessoas de etnia curda tanto na Síria como no Iraque por um controle direto e uma espécie de soberania de fato sobre eles. Para concluir, o “segundo Erdoğan” não só revisitou e intensificou a antiga política de opressão após 2015, como também introduziu novas políticas e instrumentos para lidar com a população e as questões curdas.

Depois de 2023: “terceiro” Erdoğan?

Agora é curioso saber se Erdoğan continuará se envolvendo com a população e a questão curdas em virtude da política de intensificação da repressão interna e de uma soberania de fato externa em seu terceiro e último mandato. Como Erdoğan voltou a derrotar a oposição nas últimas eleições, apesar de estar no poder há duas décadas, normalmente não deve sentir necessidade de renovar as suas políticas nesse aspecto. Em vez disso, Erdoğan pode tomar a sua vitória nas eleições como um sinal de que as suas políticas de linha dura na questão curda são aprovadas pelo público turco. O fato de o apoio eleitoral ao partido pró-curdo ter diminuído de 11,8% para 8,8% nos últimos cinco anos pode aumentar ainda mais a confiança de Erdoğan na sua posição atual.

Há, todavia, outros fatores que podem obrigar Erdoğan a renovar as suas políticas. Em primeiro lugar, embora o apoio eleitoral ao partido pró-curdo tenha diminuído, o apoio da população curda a Erdoğan e ao seu AKP diminuiu ainda mais. Enquanto o AKP de Erdoğan era apoiado por quase metade das cidades com população curda em 2007, o apoio do AKP nessas cidades é atualmente de cerca de 20–25%. Embora esta diminuição não tenha conduzido a uma derrota eleitoral nas últimas eleições presidenciais, o AKP de Erdoğan perdeu em 2019 as eleições locais em cidades importantes como Istambul, Ancara, Adana e Mersin, porque a maioria dos cidadãos curdos nestas cidades apoiou os candidatos da oposição. Se as pessoas de etnia curda das principais cidades votarem nas próximas eleições locais de 2024 como fizeram nas eleições de 2019, é muito provável que o AKP de Erdoğan enfrente outra derrota. Além disso, enquanto os presidentes de câmara do partido pró-curdo nas cidades curdas foram substituídos por administradores nomeados pelo Estado, parece que as próximas eleições de 2024 serão novamente vitoriosas para as candidaturas do partido pró-curdo nestas localidades. Por isso, se Erdoğan está disposto a ganhar as eleições autárquicas nas grandes cidades, ou tem de conquistar de novo o coração da população curda ou então tem de encontrar uma forma de convencê-los de que não devem apoiar as candidaturas da oposição. Como Erdoğan parece determinado em ganhar novamente as eleições autárquicas, pelo menos em Istambul, pode pensar em renovar a sua posição de linha dura.

Em segundo lugar, Erdoğan não parece ser capaz de manter a sua atual posição de distanciamento nas relações com o Ocidente, ou seja, com os EUA e a UE. Isso se dá por duas razões. Em primeiro lugar, Erdoğan parece ter percebido que o custo diplomático e político da sua reprovação à Rússia e do seu distanciamento do Ocidente pode se tornar mais substancial do que ele calculava. Segundo, a economia turca precisa de capital e investimento estrangeiros, cuja principal fonte continua sendo o Ocidente. De fato, deve ser por isso que Erdoğan colocou alguns nomes pró-ocidente em seu novo gabinete, já dando sinais de que estão prontos para reforçar laços. No entanto, como o reforço das relações com o Ocidente pode exigir um regresso aos padrões democráticos, Erdoğan pode pensar em reconsiderar a sua posição.

Em suma, embora a sua vitória nas eleições presidenciais e a diminuição acentuada dos votos do partido pró-curdo possam encorajar Erdoğan a manter sua linha autoritária, em geral, e a sua posição na questão curda, em particular, o fraco desempenho do AKP nas eleições locais e a necessidade da Turquia em relação à economia ocidental podem levar Erdoğan a reconsiderar sua atitude austera em relação aos seus oponentes e à população curda. Em outras palavras, embora seja provável que Erdoğan possa escolher permanecer como tem estado nos últimos dez anos ou mais, ele também pode vir com uma nova face devido aos desafios internos e diplomáticos que tem pela frente.