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“Com novos cometas”: algumas considerações sobre Morda meu coração na esquina, poesia reunida de Roberto Piva1

No início de 2023, a Companhia das Letras publicou Morda meu coração na esquina, volume que reúne grande parte da poesia de Roberto Piva. A organização do livro ficou a cargo de Alcir Pécora, professor livre-docente da Unicamp, que no início dos anos 2000 já havia sido responsável pela primeira reunião dos livros do poeta, em três volumes, na Editora Globo.

Espécie de versão brasileira do poète maudit — alcunha de que ele não gostava —, Piva estreou em 1963 com Paranoia, livro seminal da poesia brasileira do século XX, e publicaria ainda outras sete coletâneas de poemas. Figura múltipla e contraditória, brincava que sua formação se baseava em “futebol, gibi, desenho animado, Hegel e troca-troca”,2 mesmo que a leitura de alguns de seus poemas seja suficiente para perceber ali um sofisticado sistema rítmico, a construção de imagens pouco convencionais, a busca por uma constante expansão estética e uma imensa bagagem de leituras, que vai da Commedia aos poetas beats, do modernismo brasileiro às práticas arcaicas do xamanismo, dos autores renascentistas à ufologia. Em sua obra, conciliou homoerotismo e preocupação ecológica, alucinógenos e crítica às Instituições. Depois de mais de uma década fora de catálogo, a reunião da poesia de Piva ressurge em boa hora, pela primeira vez em um único volume.

A edição mais recente traz algumas novidades em relação à anterior: novos textos críticos de Alcir Pécora e de Claudio Willer, uma cronologia atualizada e um índice de títulos e primeiros versos; além da inclusão — controversa — de “Fragmentos poéticos”, uma seção na qual o organizador e a editora, a também poeta Alice Sant’Anna, selecionaram catorze dos poemas inéditos de Piva descobertos nos últimos anos. O livro reproduz ainda os ensaios de Eliane Robert Moraes e Davi Arrigucci Jr. que já constavam na fortuna crítica dos volumes da Globo.

O relançamento permitiu a correção de algumas gralhas e erros presentes na edição precedente — a numeração equivocada dos poemas de Quizumba, por exemplo — da mesma forma que tem levado o nome e a obra de Piva a outros meios, como o episódio de podcast que a Companhia das Letras organizou entre Alcir Pécora e Eliane Robert Moraes, mediado pela poeta-editora Alice Sant’Anna. Nesse programa, ficamos sabendo como foi o longo e divertido processo, pelo que nos revela o organizador, de escolha do título Morda meu coração na esquina (retirado de um poema do livro Abra os olhos & diga Ah!, de 1975). Título, aliás, muito acertado e que condensa bem o universo piviano, como a “contradição entre rua e alcova”3 que perpassa quase toda a sua obra e que é analisada pelo organizador em seu ensaio introdutório.

Apesar da republicação e das novidades que ela traz, nem tudo merece louros nesta nova edição. De maneira geral, ela parece apenas uma reciclagem da anterior e, à exceção dos breves “Fragmentos poéticos”, ignorou praticamente todas as recentes pesquisas e descobertas de textos inéditos e dispersos nos arquivos de Roberto Piva. Soma-se a isso o fato de não ter havido nenhum esforço do organizador e da editora de repensar a organização geral dos textos para publicá-los em um único volume. São esses os principais pontos que abordaremos adiante.

As notas para esta resenha já se avolumavam quando um outro texto, que também assinalava a questionável inclusão parcial dos inéditos, foi publicado no blog da revista Novos Estudos por Fábio Weintraub — que, diga-se, foi editor de Ciclones (Nankin Editorial, 1997), um dos últimos livros de Piva. O ponto de vista de Weintraub é crítico e abrangente. Aponta, com sua experiência no mundo da edição, para assuntos relevantes que vão para além do texto, como o uso “eminentemente decorativo e imotivado”4 no início do livro de apenas 10 das 76 fotografias que Wesley Duke Lee fez para a edição original de Paranoia e a escolha questionável da capa e do projeto gráfico:

o volume ora publicado pela Companhia das Letras também parece atestar pouca familiaridade com o pensamento e as concepções estéticas defendidas pelo autor em termos mais gerais — o que se revela em aspectos que extrapolam a organização dos textos, como a capa e o projeto gráfico, assinados por Elisa von Randow. Diferentemente das capas de outras antologias de autores associados, como Piva, à “poesia marginal”, como Cacaso, Ana Cristina, Waly Salomão e Paulo Leminski, em que a imagem de capa se apoiava em algum elemento emblemático da imagem pública dos poetas (como o bigode de Leminski ou os óculos de Cacaso), a capa gráfica de Morda meu coração na esquina, apoiada em uma concepção clean e sóbria, com o sobrenome do autor em letras garrafais sem serifa, parece antes evocar um poema visual concretista. Levando em conta as críticas de Piva ao racionalismo construtivo, à “estética cabaço” das “vanguardinhas de colégio de freira”, como o poeta costumava brincar, a escolha da capa parece contradizer o trabalho de um artista afeito à anarquia e aos excessos (“A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”, verso de Blake que Piva costumava repetir como uma espécie de mantra).5

O resenhista explica também que nos últimos anos apareceu uma série de publicações e trabalhos focados na produção inédita de Piva e que não foi levada em conta por Pécora e Sant’Anna na seção “Fragmentos poéticos”. São elas: as plaquetes Carta aos alunos (Biblioteca Roberto Piva, 2016) e Poesia & delírio (Córrego, 2017); o livro Antropofagias e outros escritos (Córrego, 2016) — o resenhista esclarece que os catorze poemas inéditos da edição recente foram extraídos daí, visto que os selecionadores não mencionam diretamente a fonte; e a tese de doutorado de Ibriela Bianca Berlanda Sevilla, defendida na UFSC em 2015, cujo objeto eram os dois livros inéditos que ela descobriu ao estudar o arquivo do poeta, intitulados Corações de hot-dog e Out-door.6

A isso, gostaríamos de acrescentar que é preciso lembrar também dos mais de vinte poemas publicados esparsamente pelo poeta ao longo da vida, a começar por aqueles da Antologia dos novíssimos (Massao Ohno, 1961), lançados antes mesmo de seu primeiro livro, passando por suas colaborações em jornais e revistas dos anos 1970 a 2000, como na Imã, Singular e Plural, Azougue, entre outras. Textos esses já organizados e editados por Sergio Cohn no volume dedicado a Piva na coleção Postal (Azougue Editorial e Editora Cozinha Experimental, 2016).

No início de sua apresentação à nova edição, Pécora expõe o temor de incluir esses textos “inéditos”:

Talvez a mais importante delas [das decisões editoriais] foi a de decidir se incorporaríamos os poemas publicados posteriormente à morte do escritor, sem saber se ele daria esses poemas como finalizados para publicação. A minha hesitação quanto a isso se devia à convicção de que Piva possuía clara definição do livro que compunha, a cada vez. Poemas isolados não necessariamente teriam o mesmo acabamento ao compor um livro novo. Assim, preferimos fazer desse conjunto de inéditos apenas uma antologia de catorze poemas, escolhidos estritamente pelo gosto meu e de Alice, e tratá-los mais modestamente, ou precavidamente, como “fragmentos”.7

É sabido, sim, do rigor e comedimento de Piva na publicação de livros, ponto que Claudio Willer inclusive comenta e questiona de modo breve no posfácio de Antropofagias e outros escritos. Mas a hesitação do organizador é estranha, já que é uma prática comum incluir postumamente textos inéditos às obras reunidas de um escritor. Mas partindo da lógica de Pécora no fragmento acima, a pergunta que nos fica é: por que não incluir, então, os poemas esparsos? Esses, sim, passaram pelo crivo do poeta ainda em vida, só não foram organizados e sistematizados em livro, de modo que poderiam figurar nos ditos “Fragmentos poéticos”.

A hesitação e, por conseguinte, a decisão do organizador e da editora de não incluir os “inéditos” e dispersos acaba suscitando questionamentos nos leitores, que são justificados pela qualidade e importância de alguns textos que ficaram de fora dessa seleção. Encontra-se em Corações de hot-dog, um dos livros descobertos por Ibriela Sevilla no espólio do poeta, um dos poemas mais interessantes da obra de Piva, o “Poema elétrico do cu”.8 O texto “Poesia & delírio”, incluído em Antropofagias e outros escritos, é uma breve e importante visão da ars poetica piviana e poderia seguramente integrar a nova edição da poesia reunida, mesmo que como apêndice. Nos poemas esparsos, nos deparamos com o “Poema automático”, uma parceria a quatro mãos com Claudio Willer que ajuda a pensar as relações não óbvias que Piva manteve com o surrealismo, uma vez que, como anuncia o título, os autores se valeram do método da escrita automática — discussão esta, sobre o surrealismo de Piva ser ou não incidental, encabeçada pelos próprios Willer e Pécora nos textos do aparato crítico do volume e iniciada já há quase vinte anos.

(Por falar em textos esparsos, relembramos ainda que na coletânea Jardins da provocação [Massao Ohno, 1981], também de Claudio Willer, o poema “As palavras da tribo” foi escrito a oito mãos: por Willer, Piva, Juan e Cristina Hernandez. Poema este não incluído na antologia organizada por Sergio Cohn e tampouco na edição da Companhia das Letras.)9

A não inclusão desses textos por uma justificativa de suposta qualidade dúbia nos parece, portanto, problemática. Em 2008, quando foi publicado o terceiro volume das obras reunidas, Pécora incluiu — decerto a pedido de Piva, que ainda estava vivo — o livro então inédito Estranhos sinais de Saturno, que acabaria por ser o título geral daquele último tomo e valeria ao poeta o prêmio Alphonsus de Guimaraens da Bibiblioteca Nacional de melhor livro de poesia daquele ano. Particularmente, acreditamos que há poemas nesse livro de qualidade (e complexidade) bastante inferior se comparados a outros da poesia “inédita” e dispersa. É pena, porém, que seja difícil para os leitores e futuros estudiosos da obra piviana decidirem se concordam ou não conosco, visto que esses textos são, hoje, de acesso complicado: não só estão espalhados em diversas publicações diferentes, como quase todas encontram-se fora de catálogo ou tiveram edições de distribuição restrita — a plaquete Carta aos alunos e a edição de poesia dispersa da coleção Postal não podem ser encontradas nem mesmo em sebos virtuais. O que escapa a essa regra é a tese de Ibriela Sevilla, disponível no repositório da UFSC, mas que não reproduz a integralidade dos dois livros inéditos descobertos por ela (esse, aliás, nem era o intuito de sua pesquisa).

Se a incompletude do corpus textual da recente edição é notória, há ainda uma outra escolha de organização que nos parece questionável: a de manter a obra separada em três eixos, assim como aconteceu quando os livros foram publicados em três volumes pela editora Globo. Antes de dizer o porquê, vale aqui uma pequena digressão para situar o leitor que não conhece a edição precedente.

Quando Pécora organizou pela primeira vez a obra reunida de Roberto Piva, ele percebeu, de maneira pioneira, que ela poderia ser dividida em “três grandes ciclos ou agrupamentos”:10

  1. A poesia dos anos 1960, reunida sob o título de “Um estranho na legião” (formada basicamente por Ode a Fernando Pessoa [1961], Paranoia [1963] e Piazzas [1964]), compõe-se pela obra inicial do poeta;

  2. A poesia dos anos 1970–80, reunida sob o título de “Mala na mão & assas pretas” (formada basicamente por Abra os olhos & diga Ah! [1975], Coxas [1979], 20 poemas com brócoli [1981] e Quizumba [1983]), época da maturidade poética e que Pécora vê como “o mais exuberante de tudo que ele [Piva] produziu”;11

  3. A poesia publicada a partir dos anos 1990, reunida sob o título de “Estranhos sinais de Saturno” (formada basicamente por Ciclones [1997] e Estranhos sinais de Saturno [2008]), obra de viés eco-etno-xamânico.

Essa divisão nos parece certeira e ajuda bastante os pesquisadores da obra piviana, nos quais nos incluímos. Portanto, no campo da crítica, ela nos parece pertinente e atual. Editorialmente, era acertada quando a obra reunida estava sendo publicada em três partes separadas, com intervalos de anos que variavam entre o aparecimento de um e outro tomo; mas, a partir do momento que ela é enfeixada em um volume único, manter essa divisão deixa de fazer sentido. Por quê? Por três motivos de diferentes vieses, mas que acabam por se complementarem:

  1. O método, à primeira vista, tende mais à inutilidade do que à compreensão, visto que o leitor atento, mas não familiarizado com a divisão que acabamos de explicar, chega antes ao índice que ao texto introdutório do organizador, de modo que só vai entender aqueles três blocos muito tempo depois;
  2. No geral, trata-se de um procedimento esdrúxulo, tanto entre os volumes de poemas completos que a Companhia das Letras tem lançado — Ana Cristina Cesar, Hilda Hilst, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar etc. —, quanto entre edições reconhecidas publicadas por outras editoras, como a Poesia completa de Lúcio Cardoso (Edusp, 2011) ou a de Cecília Meireles (Global, 2001; 2017). De todos esses exemplos, cada um com suas particularidades, o de Piva é o único a ter os livros/textos separados por fases/períodos definidos de maneira arbitrária pelo organizador. (Mesmo que tenha sido uma divisão aprovada pelo próprio poeta, vinte anos atrás, para uma edição que ele acompanhava de perto a construção; o que não é mais o caso.);
  3. Se a divisão é arbitrária, ela pode certamente condicionar de algum modo a leitura dos livros. Fica subentendido que aquela separação — chancelada pela editora e, há muitos anos, pelo poeta — é natural, e que, por exemplo, “Paranoia pertence à primeira fase” ou “Ciclones, à terceira”, como se isso fosse um fato evidente e, no limite, inquestionável.

Em seu ensaio introdutório, Pécora explica que essa divisão “não significa que exista alguma separação radical entre esses núcleos: os elementos mais relevantes de um período permanecem nos outros, havendo continuidade e coerência marcantes no conjunto”.12 Se não há separação radical entre os núcleos e que agora a obra foi reunida em volume único, então por que insistir em dividi-la, editorialmente, em três “agrupamentos”?

Ainda sobre o texto introdutório de Pécora, aqui mencionado várias vezes e intitulado “A epopeia bélico-amorosa de Roberto Piva”, é importante pontuar que ele reúne as “Notas do organizador” presentes nos três volumes editados pela Globo, e as expande, logo no início, com um depoimento do cineasta e amigo do poeta, Ugo Giorgetti. A reunião e expansão daquelas “Notas” acaba por formar um dos melhores e mais completos panoramas críticos da poesia de Piva que temos hoje publicado, ao lado de “Uma introdução à leitura de Roberto Piva”, de Claudio Willer.13 Trata-se de um ensaio minucioso e abrangente, de um crítico que vem lendo e pensando essa poética há décadas, e que busca entender em detalhes a construção formal dos poemas (coisa ainda rara na bibliografia crítica piviana) e interpretar as movimentações temáticas e estéticas de cada uma das fases. Por si só, o ensaio de Pécora se basta, assim como os ciclos, fases ou núcleos que ele defende. Por isso, mais uma vez, não há por que manter a divisão do índice em eixos.

Essa possível reestruturação do índice que aqui defendemos demandaria uma nova organização geral dos textos, o que poderia ser uma boa oportunidade para organizador e editora repensarem se vale mesmo a pena manter de fora todas as recentes descobertas, independentemente de os poemas “inéditos” e dispersos serem bons ou maus, terminados ou incompletos (aliás, o fragmento é forma que Piva praticou, nos lembra Weintraub). Esse tipo de julgamento cabe, também, aos demais leitores.

É por questões como essas, abordadas rapidamente neste texto, que concordamos com o resenhista da Novos estudos quando fala de uma “atualização insuficiente” da edição atual em relação à anterior. Pelos fatos expostos, a conclusão a que chegamos é que Pécora continua um dos melhores e mais importantes intérpretes da poesia piviana; por outro lado, mostra-se como um organizador arbitrário e refratário às descobertas feitas após a morte do poeta. É compreensível até certo ponto seu apego (poderíamos chamar assim?) à estrutura por ele elaborada há quase vinte anos para organizar a poética piviana. Mas de lá para cá novos rumos se abriram e as recentes pesquisas mostram-se incontornáveis. Sendo assim, uma atualização verdadeira — de corpus textual e de organização estrutural — é de tremenda importância. Por isso o termo poesia reunida, em destaque na capa da nova edição, até parece um eufemismo: reúne todos os livros editados em vida pelo poeta e parcialmente os textos “inéditos” e dispersos, mas está longe de ser um verdadeiro volume de poesia completa. Portanto, há ainda um caminho considerável a ser trilhado para que possamos ter, algum dia, uma edição à altura da complexidade — poética e filológica-editorial — que nos exige a obra de Roberto Piva.