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Tecnologia como gênero e outras fenomenologias encarnadas

Entrevista com McKenzie Wark

English original

Esta entrevista em duas partes foi gravada com a escritora McKenzie Wark no dia 28 de janeiro de 2022, numa colaboração entre a Revista Rosa e a plataforma online Weird Economies.

Você encontra a segunda parte aqui.

A transcrição foi editada para maior clareza. A tradução é de Tom Nóbrega.


Parte I: Fatuar, ficcionar e outrar-se, tecnologias de incorporação

Em Capital is Dead [“Capital está morto”] você aborda a teoria como uma forma de literatura e enfatiza que o ato de criar uma nova linguagem pode ser vital para nos tornarmos capazes de perceber e de analisar plenamente o momento em que nos encontramos. Te propomos então uma pergunta que se desdobra em duas: Estamos lendo teoria de forma errada esse tempo todo? De que modo devemos ler teoria?

Sanannda Acácia

McKenzie Wark — Olha, a gente deveria ler teoria da mesma maneira como lemos qualquer outra coisa: de várias maneiras diferentes ao mesmo tempo. Uma dessas camadas de leitura precisa ser estética. Outra camada precisa entender a teoria como um tipo de intervenção que incide sobre o campo da linguagem propriamente dito. Então, ao invés de pensar que a gente pode pular a dimensão estética e ir direto ao conceito — existe uma espécie de idealismo nessa tendência a pensar que a teoria versa apenas sobre conceitos, e eu mesma posso incorrer nesse erro às vezes — devemos também prestar atenção à materialidade da linguagem. Não acho que seja por acidente que a maioria das obras de teoria que se tornam de alguma forma canônicas tendam a fazer coisas interessantes com a linguagem. E aqui talvez a teoria às vezes se diferencie um pouco da filosofia, onde isso [a experimentação de linguagem] parece ser opcional. Talvez a filosofia tenha outros objetivos e responda a demandas diferentes. Mas eu acho que a teoria precisa sempre procurar maneiras de pressionar a linguagem que recebemos, já que a linguagem que recebemos é sempre repleta de ideias prontas. Parece ser necessário transformar um pouco a linguagem para que a gente possa ser capaz de pensar de forma diferente.

Uma das questões mais urgentes do momento, especialmente no Brasil, é como lidar com o excesso de notícias falsas veiculado através do Facebook, do WhatsApp, do Telegram e de outras plataformas, já que as fake news foram fundamentais para que o fascismo e o discurso da extrema direita ganhassem impulso e poder político. Em uma palestra muito interessante que você deu para a Bienal de Riga, você tenta superar a distinção habitual que se faz entre ficção e fato, transformando-os em verbos — práticas de ficcionar [ficting] e de fatuar [facting] — que você entende como vitais e necessárias. Você propõe algo muito interessante: a ideia é de que ao invés de contrapor fato e ficção, colocando a ciência em uma posição idealizada e correndo o risco de cair em ideias problemáticas a respeito da noção de verdade, deveríamos abrir um espaço para práticas de ficcionar e fatuar, que proponham formas mais complexas de entrelaçar ficções e fatos. O problema, portanto, não seria tanto como contrapor notícias falsas com notícias reais, mas como escapar de uma ficção ruim. E pode-se dizer facilmente que o Brasil de Bolsonaro é realmente péssima ficção, a pior piada dos últimos tempos. Portanto, já que, retomando algo que você formulou em Philosophy for Spiders [“Filosofia para aranhas”], “temos todos os motivos para suspeitar que a imaginação foi colonizada pelo pai da mesmice controladora”, a pergunta é: que ficções poderíamos criar para desmontar a narrativa fascista?

MW — Bem, tem muita coisa aí. Não acho que existam respostas fáceis para nada disso. O que acontece com a mídia com a qual estamos lidando agora é que ela nunca foi projetada para a sociedade civil. Ela foi projetada para extrair valor. Na era do rádio e da televisão isso também acontecia, mas sua história é um pouco mais complicada. Talvez dê para traçar muitas reflexões sobre o papel que esses veículos desempenharam na construção das nações, por exemplo.

Mas quando passamos para o próximo capítulo da evolução da mídia, é como se ninguém realmente pensasse mais sobre isso [a sociedade civil]. Ou talvez essas preocupações tenham sido postas de lado. E a partir daí temos plataformas que realmente são criadas basicamente para extrair de nós um surplus de informação, nada mais.

O conteúdo não importa. O que se percebe é que certos tipos de mídia que capturam nossa atenção girando em torno de emoções como o medo, o pânico e a raiva funcionam extremamente bem. Essas são emoções que você pode conectar muito facilmente a uma espécie de “romance fascista”. De certa forma, viver dentro do fascismo é como viver dentro de um romance gigante. Isso é meio excitante, porque há sempre algo perigoso que precisa ser atacado. Somos colocados diante de uma série de ameaças que aparecem o tempo todo. E, é claro, vai haver heróis e vilões. É algo como uma ficção em série: a cada vez é um novo personagem que se torna uma ameaça. O que se espera de nós é que nos agrupemos em torno do herói fascista da história. O tipo de atenção que gira em torno do aparecimento recorrente de ameaças é bastante estimulante e, por isso, muitas dessas estratégias estão sendo empregadas agora de forma bastante intencional.

A pergunta colocada pela teoria é: como sair desse romance gigante? Ou, caso isso não seja possível, como criar um romance de um gênero mais interessante?

Podemos pensar um pouco contraintuitivamente: talvez o problema com notícias falsas não esteja apenas no nível dos fatos. A questão é que por vezes os fatos não estão completamente errados quando se trata de notícias falsas. O ponto é que as notícias falsas são enviesadas, ressaltam alguns elementos em detrimento de outros. Cabe ainda lembrar que muitas vezes a mídia burguesa liberal que supostamente seria melhor também está repleta de fatos questionáveis. Não é como se você pudesse reivindicar um mandato legal para estar completamente do lado dos anjos nessa coisa toda. Vale a pena prestar atenção a esta pergunta: será que poderíamos estar dentro de um romance diferente? Será que pode haver formas diferentes de ficcionar? E isso pode ser desafiador em um momento em que é difícil sustentar que pode haver mesmo futuros diante de nós, não importa de que tipo forem.

E é assim que a ideia do retorno ao passado, que é outro elemento da estrutura narrativa do fascismo, consegue seu apelo, torna-se algo desejável. É algo como: “oh, isso aqui está horrível. Mas olha, esses caras nos prometeram voltar a algo que era melhor, a única coisa que precisamos fazer é exterminar outras raças e outros gêneros e toda essa história de alteridade. Vamos voltar a, sei lá, alguma espécie de Nirvana”. Então, sim, como criar ficções melhores? Eu não sou artista. Não sei como fazer isso, mas essa parece ser parte do desafio.

É realmente interessante a maneira como você se refere à possibilidade de uma ficção que esteja intimamente relacionada à ideia de futuro, ao invés de evocar um retorno ligado a alguma espécie de nostalgia. Agora vamos partir de alguns elementos que estamos discutindo de forma mais geral e tentar conectá-los a uma dimensão mais pessoal, ligada a noções de identidade. No livro que você escreveu sobre a Kathy Acker, Philosophy for Spiders [“Filosofia para aranhas”], ao invés de se referir a uma única autora, você se refere a uma teia de muitas Ackers múltiplas, divergentes. Nessa teia, o ato de outrar-se [selving] aparece como outra prática vital ligada à ideia de ficção. Será que você poderia descrever algumas das estratégias que alguém poderia empregar para outrar-se, seja como escritores ou como artistas, em meio a um contexto em que a internet e a mídia, como estamos vendo agora, estão tão conectadas a noções de identidade? Em que nossos perfis em diferentes plataformas se articulam constantemente, conectando contas de e-mail, cartões de crédito, números de telefone, plataformas de entretenimento, mídias sociais e etc.?

Sanannda Acácia

MW — Um escritor que me é muito querido, e que eu só posso ler através de traduções, é o Fernando Pessoa. O Livro do desassossego exerceu uma influência extremamente forte sobre mim. E essa influência está ligada à história dos heterônimos de Pessoa. Sua poesia eu não conheço tão bem, mas me conecto com essa ideia de construir várias personas, bastante completas, cada qual com seu ponto de vista estético autossuficiente. Me parece que o Livro do desassossego, ainda que seja a princípio um livro de Bernardo Soares, envolve vários heterônimos diferentes, segundo alguns estudiosos. Eu não sou uma estudiosa de Pessoa, talvez outras pessoas soubessem falar sobre isso melhor do que eu. De qualquer forma, para além do fato de eu amar sua escrita em prosa, fiquei impactada com essa ideia: “o que acontece se você deixar completamente de lado a impressão de que a subjetividade do escritor deve se circunscrever a algum tipo de arco coerente?”.

Para alguns escritores a ideia de um arco subjetivo coerente pode ser mais interessante do que para outros, mas certamente Kathy Acker não estava muito interessada nessa coerência. Ela permite que situações, experiências, sensações e a formação de conceitos arrastem a subjetividade para diferentes órbitas. Não se trata de heterônimos, como no caso de Pessoa, nem de esquizofrenia no sentido deleuziano: as personas de Acker variam, ao invés de se diferenciar radicalmente umas das outras. Pensar que, um pouco como Pessoa, Kathy Acker criava diferentes versões do “eu” que por vezes poderiam se conectar, me ajudou muito enquanto estava escrevendo sobre seu trabalho.

E aí o que notamos é que ela por vezes muda [de persona] no meio de uma frase, no meio de um texto. Dá para dizer que ela como que evolui para além de Pessoa, que criou identidades separadas que escreviam separadamente. Aqui [na obra de Acker] você está no meio de uma frase, e de repente: “oh, espera aí!”. Não apenas a prosa se tornou outra coisa, mas a autora talvez tenha se tornado outra pessoa, e você se dá conta disso perfeitamente enquanto está lendo. Esse me pareceu um conjunto interessante de experimentos, que abre muitas questões. Porque eu e Kathy somos da mesma era. Não acreditávamos em identidade de forma alguma. Como a identidade é criada? Até que ponto ela é uma construção? Essas questões nos pareciam mais interessantes do que tomar a subjetividade como pressuposto e escrever a partir desse ponto de vista.

Pode ser interessante pensar essas questões não apenas em relação ao escritor, mas também ao artista, porque a figura do artista costuma ser muito associada a ideias como estilo e identidade. Estilo e identidade permitem ao artista ser reconhecido(a) constantemente, não apenas contribuindo para que esse(a) artista demonstre ter a produção coerente que se espera dele ou dela, uma produção que estaria supostamente evoluindo, mas especialmente para atender a demandas de mercado. Afinal, o valor da obra também está relacionado à identidade do autor. Talvez essa proposta de ser capaz de mover a identidade como um espaço lúdico nos traga alternativas para podermos não apenas de manejar identidades diferentes, mas também investigar questões poéticas, teóricas e infraestruturais a partir de diferentes perspectivas, com diferentes nuances. É uma forma muito útil de pensar a identidade com um olhar inventivo.

MW — Sim. É preciso dizer que Kathy Acker era muito boa no que hoje chamamos de self branding. Ela tinha um modo de se apresentar, uma aparência consistente. E isso também tinha a ver com o fato de ela ter que trabalhar sendo uma mulher que, em seus próprios termos… ela sempre dizia: “Eu não sou convencionalmente bonita. Portanto, tenho que ser interessante”. Era o que ela dizia sobre si mesma. Então, ainda que no texto ela jogasse com a subjetividade de modo muito livre, ela tinha que apresentar essa imagem coerente, porque, sejamos realistas, os artistas trabalham em um mercado, e esse mercado funciona de uma maneira muito específica.

Existe também uma artista chamada Lynn Hershman, de cujo trabalho eu realmente gosto. Dos trabalhos dela, que são todos ótimos, o que é realmente impressionante é um dos que ela criou nos anos 1970 ­— foi nesse período que ela criou a maior parte das coisas para as quais eu acabo constantemente voltando —, ela criou toda uma outra persona chamada Roberta Breitmore, que usava sempre um certo tipo de vestido e um certo tipo de peruca. Ela tem toda uma documentação sob o nome de Roberta.

Ela foi em encontros românticos como Roberta e alguém a fotografou em lugares públicos com esses homens que ela conheceu nas últimas páginas de um jornal. Não se vê o rosto deles. Existe uma ética envolvida. Ela conseguiu um emprego com essa persona falsa. É um trabalho extraordinário dos anos 1970. E que, claro, agora está conectado a Lynn Hershman Leeson. Depois de um tempo ela se cansou de fazer isso e passou a incentivar outras pessoas a se tornarem Roberta. Então, surge algo como uma ideia de subjetividade distribuída, que mais tarde encontrou ecos no uso de nomes coletivos como “Luther Blisset”. Sempre me interessei por esse tipo de experimento, embora nunca tenha feito algo assim. Meu trabalho tem sido consistentemente como Mckenzie Wark, há 35 anos: só uso meu nome do meio e meu último nome. Mas estou interessada em pessoas que trabalharam para abrir esse espaço.

Nessa pergunta, vamos propor uma interação entre dois livros que você escreveu em momentos diferentes: Molecular Red [“Vermelho molecular”] e Philosophy for Spiders [“Filosofia para aranhas”], pensando no que pode vir a ser uma noção de corporeidade para além da noção de identidade. Alexander Bogdanov, cujas noções tais como a de prolekult você discute em profundidade em Molecular Red, fez experimentos com transfusão de sangue em seu próprio corpo, tratando o sangue como um fluido a ser compartilhado. Em Philosophy for Spiders, você fala sobre a maneira como Kathy Acker empregou a musculação e a masturbação como técnicas complementares à escrita. E poderíamos pensar ainda na experiência transgênero, ou transexual, como um experimento coletivo, um detournement acontecendo em nosso próprio corpo. Você poderia falar um pouco sobre a noção de corporeidade como um espaço para práticas que ao mesmo tempo ativam e deslocam a teoria, um espaço de experimentação que vai além do indivíduo?

MW — Uau. Isso é ótimo. Eu realmente não tinha pensado nessas coisas juntas, na verdade, mas sim. Sobre os experimentos de transfusão de sangue de Bogdanov, temos que ser claros e dizer que eles não funcionaram. Não se tratava de boa ciência. Não havia controles para esses experimentos. Mas acho que o banco de sangue da União Soviética se chamou Instituto Bogdanov por algum tempo, embora os stalinistas o considerassem uma espécie de persona non gratanessa época. Estou interessada em fenomenologias dos corpos, técnicas e situações que sejam compartilhadas, e talvez exista aí um mesmo fio que se conecta também com os trabalhos [que desenvolvi] sobre os situacionistas e suas “situações construídas”. Bogdanov, e também Andrei Platonov, de um modo muito diferente, criaram trabalhos a respeito de experiências de encarnação no corpo em tempos urgentes e sombrios. E também Acker, em circunstâncias muito mais privilegiadas, estava trabalhando sobre a linguagem do corpo, descobrindo como deixar o próprio corpo falar. Para ela algo emerge a partir do ato repetido de levantar um peso: em certo sentido, através das repetições, o corpo passa a falar à sua própria maneira.

E existe ainda o trabalho que estou fazendo atualmente sobre as raves, que são também situações construídas, mas que me permite me embrenhar sobretudo em fenomenologias da dissociação. Estou interessada nos estados dissociativos que as raves permitem, já que são estados que as pessoas trans tendem a vivenciar com frequência. A dissociação, em sentido clínico, costuma ser entendida como algo debilitante, mas talvez exista algo como uma arte da dissociação, algo que pode ser entendido como uma habilidade. Como entender a dissociação não apenas como uma deficiência [disability], mas como uma habilidade [ability]? É como se não pudéssemos estar aqui, como se não habitássemos nem essa subjetividade, nem esse mundo. Às vezes é a disforia de gênero que nos empurra nessa direção. Mas talvez tudo isso possa ser visto também como uma habilidade. Na verdade, acho que foi assim que consegui escrever esses livros: [era uma forma de compensação, já que] a dissociação me afetou de forma tão intensa, e por tanto tempo. E eu não sabia por quê. Quando eu fiz minha transição, por um tempo parei de escrever. Eu simplesmente não precisava mais fazer isso. E agora acho que estou de volta, com o livro sobre raves. Então, sim, acho que, por conta do meu desinteresse pela psicanálise, que me parece ter pressupostos demais, me interesso por fenomenologias experimentais em que o corpo encarna de maneira coletiva. Subjetividade e identidade me interessam menos do que os estados que se incorporam na carne.

Em uma entrevista, você disse que se interessa pela palavra “transexual” mais do que pela palavra “transgênero”, ressaltando que a experiência com gênero pode estar relacionada à experiência com a sexualidade. Faz pensar que a transição é algo que pode acontecer no encontro de corpos, e não apenas em uma jornada em que você sai à procura do seu ser essencial ou algo assim.

Sanannda Acácia

MW — Sim. É preciso tomar cuidado com a tradução. Porque de alguma maneira o termo “transgênero” em inglês não é equivalente aos modos como você poderia usar um termo semelhante em outro lugar. Estas coisas se passam de forma diferente em diferentes culturas. Portanto, eu gostaria de estar um pouco atenta a isso. Só posso falar a respeito do contexto anglófono. O termo “transgênero” se tornou uma espécie de categoria de identidade liberal quase aceitável, mas essa palavra tende a minimizar a experiência transexual das modificações corporais. E talvez tanto “transgênero” quanto “transexual” pode envolver uma série de ideias respeitáveis sobre de modos de existir, ideias que talvez tenham se tornado respeitáveis demais. Quero ter o cuidado de esclarecer que não é necessário pensar a experiência trans através da sexualidade, mas por algum tempo é como se não nos fosse permitido pensar dessa maneira de forma alguma. Para mim, houve uma possibilidade de pensar a respeito da experiência trans e de sua descoberta a partir da sexualidade. Acho que precisamos colocar isso em cima da mesa, mas não insistir demais.

Além disso, em inglês, a palavra “transexual” simplesmente soa melhor, é uma palavra ótima. Há um pequeno movimento em curso procurando recuperá-la, mas é muito importante não policiar os limites dessa palavra. Você pode perfeitamente não se medicalizar e se colocar como transexual. Eu ficaria totalmente feliz com isso. Para pessoas minoritárias, policiar a identidade alheia parece não ser uma coisa nem um pouco divertida de se fazer, já que todos os outros fazem isso conosco. Não sei como isso se dá na língua de vocês, mas sei que em espanhol há um movimento de resgate da palavra “travesti”, que talvez não se encaixe em nenhum desses termos em inglês. Para pessoas minoritárias, quando se trata de linguagem, é sempre necessário fazer uso de quaisquer táticas que estejam disponíveis ao redor para criar sentidos para nós mesmos e para nossos amigos, passando por dentro e indo de encontro à cultura dominante.

Sim, a palavra “travesti” existe em português também, é uma palavra poderosa que também segue muito viva por aqui. Em uma conversa recente com Orlando Betencourt, você disse que talvez não exista nada que não seja tecnológico ou técnico, já que os conceitos em torno da ideia do humano podem ter surgido através do encontro entre o trabalho e a ferramenta. E nesse sentido, poderíamos dizer que sempre fomos ciborgues. Você estava questionando esta ideia recorrente de que tudo seria cultural, e propondo uma atenção ao encontro entre ação, corpo, ferramenta e técnica. Em Philosophy for Spiders [“Filosofia para aranhas”], no momento em que você discorre sobre a relação de Acker com as motos, você comenta que “talvez o conceito de tecnologia represente ainda outro gênero, outro erotismo”. Você poderia desenvolver mais esta ideia? Quais são as formas de erotismo envolvidas no encontro entre o corpo e os artefatos? Como a tecnologia se molda e é moldada pelo desejo?

MW — Há algumas coisas diferentes em jogo aí. Talvez a técnica seja anterior à humanidade. Existe, provavelmente, uma versão arqueológica desse argumento que não estou qualificada a desenvolver, porque obviamente não sou arqueóloga, mas, de acordo com meu entendimento leigo, já havia hominídeos fazendo uso de ferramentas antes que surgisse o homo sapiens. A ferramenta parece literalmente nos anteceder. Até onde posso entender, a mão e a ferramenta evoluíram juntas. Há indícios tanto de ferramentas feitas de pedra quanto de ferramentas que se desintegraram, e que, portanto, não permanecem nos registros arqueológicos: parece que as pessoas podiam tecer e fazer cestas antes que fôssemos humanos modernos. Nossos ancestrais antes do homo sapiens podiam fazer tudo isso. A técnica não é algo secundário, que chega mais tarde na história do ser humano. Você poderia levar esse argumento ainda mais longe: talvez todas as espécies tenham suas próprias tecnologias.

E se você pensasse que as tecnologias podem ser integradas ao próprio corpo? E se pensássemos nos dentes como uma forma de tecnologia, ao invés de pensar apenas nos dentes falsos ou na faca como artefatos tecnológicos? Acho que temos que deixar de pensar na tecnologia como o outro, como algo que nos é alheio para de algum modo abraçá-la; abraçá-la e permanecer perto dela. E tudo isso levanta questões ligadas a gênero e erotismo em torno da tecnologia. E, se as tecnologias são assim tão íntimas ao que é humano, me parece interessante perguntar: qual poderia ser o seu gênero? E se a tecnologia fosse um gênero extra? Eu ia dizer terceiro gênero, mas talvez já existam mais de dois gêneros humanos. Eu não sei. Será que precisa haver um número?

Parece que a maioria das pessoas se reconhece em um dos dois gêneros de um binômio, mas existem também as pessoas intersexo e as pessoas trans. As linguagens ocidentais e imperiais tendem a operar a partir de uma divisão de gênero binária, que reduz o número de gêneros a dois. Talvez haja muitos. E se você pensasse que a tecnologia é também um gênero? Cheguei a esta formulação através da Andrea Long Chu: nos escritos dela, é como se a tecnologia colocasse uma espécie de parênteses na maneira como o gênero pode ser pensado. Existe alguma maneira de conhecer seu gênero sem alguma forma de técnica? Há um argumento que sempre aparece quando conversamos sobre gênero e que, para mim, é uma bobagem sem sentido: “gênero é biologia, está no seu DNA”. E aí, bom, como é que você conhece o seu DNA? A verdade é que a maior parte de nós não conhece. Presumo que meus cromossomos sejam XY, mas na verdade eu não sei com certeza, porque nunca fiz um teste.

Há uma pequena chance de que meus cromossomos sejam de alguma outra variante. Nem todos os humanos são XY ou XX, existem algumas outras variáveis. Como você pode conhecer seu gênero sem uma técnica? Você não o conhece diretamente em relação ao seu próprio corpo. Você não o conhece em relação a outro corpo. Existe sempre um elemento mediador no meio. Então, sim. Talvez você possa pensar [nesse elemento mediador] como um terceiro gênero, ou melhor, como um gênero extra em relação a qualquer que seja o número de gêneros humanos.

Estamos falando sobre o modo como a mídia e a tecnologia são ferramentas que estão dando forma e sendo formadas através de processos que acontecem no corpo. É bem interessante quando você diz que está mais interessada nos processos que acontecem no corpo do que na subjetividade entendida através de um ponto de vista psicológico. E essa próxima pergunta procura pensar de que maneira esses processos podem se relacionar com os dispositivos da classe vetorialista e da classe hacker. Porque, em parte, a relação entre essas classes se estrutura e se orienta através da relação entre a informação, a produção de subjetividade e o desejo.

Em Capital is Dead [“Capital está morto”] você comenta como essa ideia [da relação entre informação e desejo] orienta tanto a construção de perfis pessoais quanto de marcas corporativas, em especial na exploração de dados pessoais a fim de criar perfis de pessoas. E, levando em conta a maneira como estamos pensando a relação entre tecnologia e mídia, parece interessante pensar nas mídias que estamos usando hoje não apenas como formas de exploração de dados, mas também de transmissão de informação, transmissão de dados. E atualmente tudo isso tem criado muitos problemas, não?

Tudo isso está interferindo não apenas nas nossas relações interpessoais, mas também nas nossas relações de trabalho. Até agora a nossa conversa estava tomando um rumo inspirador, nos levando a pensar como a mídia e a tecnologia se encarnam no corpo e como podem ser usadas como ferramentas para encarnar de outras maneiras, mas talvez fosse interessante tentar olhar para esse outro aspecto da questão. Qual seria a maneira de abordar essa situação para que a gente não esteja constantemente explorando nossos desejos, subjetividades, identidades, corpos etc. para a produção de dados, plataformalização do trabalho etc.?

Sanannda Acácia

MW — O trabalho assalariado é de alguma forma um sistema totalizante do qual é muito difícil sair. Mas o tempo livre costumava ser uma possibilidade de saída. Uma das grandes exigências do movimento trabalhista era, pelo menos no meu mundo, uma jornada de oito horas por dia. Você precisava restringir a quantidade de tempo de trabalho para que houvesse tempo para o lazer, para o descanso e assim por diante. A partir daí, houve uma espécie de comodificação tardia da ideia de lazer, com a redução da jornada de trabalho. A resposta do capitalismo [à redução da jornada de trabalho] foi colonizar esse espaço e criar a indústria cultural. Com ela, houve uma espécie de mercantilização em escala industrial desse tempo que tinha sido liberado da jornada de trabalho assalariado.

Mas de alguma forma o tempo que gastávamos nessas atividades produzia valor apenas indiretamente. Era uma forma de recriar o valor do trabalhador, mas não era em si mesmo algo do qual se pudesse extrair valor para além do lucro que se conseguia a partir da exploração do trabalho criativo [daqueles que trabalhavam na indústria cultural]. Essa é a novidade [do estágio em que estamos]: extrair valor diretamente do que não está na esfera do trabalho, é esse o ponto de virada. Esse valor é extraído sob a forma de atenção, informação e trabalho não remunerado.

Surgiu aí uma nova zona [de extração de valor]. Não é como nos velhos tempos, quando a gente simplesmente ia ao cinema. E você podia sentar lá e assistir a um filme, no seu tempo livre. Você tinha que pagar pelo filme, isso fazia parte da indústria cultural. Agora você simplesmente anda com este telefone estúpido no bolso, gerando informações gratuitas para vinte, trinta empresas, a maioria das quais você nem conhece, e elas têm acesso aos dados que você está produzindo. É disso que se trata a mercantilização do não trabalho.

Então, sob essas condições, quais são as táticas que podemos empregar para criar diferentes qualidades de tempo, de situação, de relação, para além da exploração do não trabalho? Vamos conseguir nos manter fora disso apenas até certo ponto, mas há algo que me parece importante: precisamos ser capazes de criar situações que talvez não sejam necessariamente utópicas, já que todos os conflitos sociais que vivenciamos estarão lá, mas em que a extração de dados e a espetacularização são de alguma forma reduzidas ao mínimo. Essa é uma forma de dizer em poucas palavras por que eu gosto das raves. Eu saio para dançar por volta das quatro da manhã, e nas melhores festas é terminantemente proibido usar a câmera ou o celular na pista de dança.

Nas raves, estamos ainda dentro do campo da técnica. Vou dançar perto de um ótimo sistema de som, mas é como se de alguma forma pudéssemos fazer com que esse tempo se descolasse um pouco do tempo dedicado à extração. Esse tempo pode ter uma qualidade diferente, em que a forma como nos movemos uns em relação aos outros é o que importa. Vamos nos conhecer de uma forma diferente através da experiência que nossos corpos compartilham na pista de dança. Vamos perceber quem não pertence ao nosso grupo, já que vamos precisar nos deslocar para o outro lado da pista por conta de um bando de caras incovenientes [risos]. Esse é só um exemplo. Onde podemos criar espaços que funcionem com regras diferentes? Eu não sei que dimensão essas situações são capazes de atingir. Francamente não estou otimista de que esse processo de mercantilização que opera através de extração da participação, da informação e da atenção possa ser reversível, mas a arte de criar espaços internos a essa mercantilização do não trabalho me parece ser algo chave nesse momento.

Na sua conta no Twitter você fala sobre as músicas que você gosta, das pessoas que você viu e dos clubes em que você vai. Você costuma falar sobre artistas e coletivos como Discwoman e Juliana Huxtable. Você poderia falar um pouco mais sobre o livro que você está escrevendo sobre as raves e sobre os elementos da dança e da música eletrônica sobre os quais você está trabalhando?

MW — Durante a transição, perdi a capacidade de escrever coisas elaboradas, perdi a capacidade de escrever livros. Eu simplesmente não tinha nada. É como se eu não precisasse mais fazer isso. Antes da transição, eu estava tão maciçamente dissociada que acabava caindo em uma espécie de transe em que escrevia sem parar. E então, depois que eu saí do armário, fiquei totalmente sem escrever durante três anos. Só conseguia sair para dançar. Me pediram para contribuir com um livro para uma série sobre diferentes práticas e eu disse: “bom, não tenho lido o suficiente para escrever um livro, mas posso escrever sobre isso, sobre as raves”. É a única coisa que estou fazendo agora, foi algo que surgiu a partir desse movimento de buscar uma voz e um estilo um pouco diferentes. Estilisticamente, o livro se aproxima de Reverse Cowgirl [“Vaqueira invertida”] e da primeira metade do livro sobre Acker.

É uma tentativa de escrever partindo de uma experiência individual, minha experiência afirmativa de dissociação na pista de dança, e partir daí descobrir diferentes possibilidades de sair do campo da subjetividade, e mover-se para além da extração constante de informação do não trabalho. A cena queer de raves em Nova York é popular entre pessoas que fazem algum tipo de trabalho intelectual, como eu, e também entre pessoas que exercem algum tipo de trabalho social ou trabalho emocional. Muitos dos meus amigos trabalham à noite. A princípio não fazia nenhum sentido. É como se você trabalhasse em um clube por oito horas e depois fosse para outro clube. Como e por que fazer isso? Meu trabalho também é um trabalho emocional, às vezes. Não consigo ensinar apenas ideias. Eu ensino como as pessoas podem se tornar seus próprios professores, e isso é um trabalho emocional, também. Quando você faz um trabalho assim, às vezes tudo o que você precisa é sair para fora disso tudo. Alugar a própria subjetividade nos coloca sob pressão demais, e isso é algo exigido de muitos de nós, em muitos contextos de trabalho, esses dias. Então sair para dançar é uma forma de ficar livre de tudo isso. As raves me interessam como um campo de trabalho físico coletivo e improdutivo que pode ser compartilhado tanto por trabalhadores intelectuais quanto por aqueles que exercem um trabalho emocional.

Também estou tentando criar um diagrama da comunidade [das raves], mapear as tensões e as dificuldades de circular nesses ambientes, e como essa cena abre espaços para pessoas trans, ainda que ali também a gente esteja em minoria. Não se trata do nosso universo trans. É apenas um lugar onde somos pessoas comuns, e isso é bastante raro. Um lugar onde a presença de pessoas trans não chama atenção. Em alguns espaços representamos 10% dos frequentadores, 5% em outros, e o fato de não sermos alvo de curiosidade de ninguém nos faz dizer: “obrigada”. Espaços assim são muito difíceis de encontrar.

A Juliana aparece no livro. Acho que o texto começa e termina com shows da Juliana Huxtable. Em um desses relatos, ela divide o set com outro DJ que não quer mais tocar e então ela toca a noite inteira: é o último show que aparece no livro. Não estive lá durante todas as oito horas, não aguentei tanto tempo, mas ela aguentou. Ela é incrível. Eu peguei a segunda parte. Estou interessada em tipos sociais, então o livro Raving dialoga muito bem com Hacker Manifesto e Gamer Theory. Como esses tipos sociais [raver, gamer e hacker] um tanto abstratos navegam as tecnologias e o processo de mercantilização do século XXI? Dá para dizer que o livro que estou escrevendo forma um trio com esses outros dois, de alguma forma.

Há um livro chamado Make Some Space, de Emma Warren, em que a autora se debruça sobre um espaço que existia em Londres. O livro aborda os edifícios que abrigam as festas, mas olha também para as pessoas que as frequentam. Na cena das raves aqui no Brasil, existe uma preocupação muito profunda com a infraestrutura e o trabalho que estão por trás dessa cena, com o trabalho emocional feito pelas pessoas que giram em torno dela. E geralmente o que você nota quando se aproxima dessas comunidades é que sua existência está nas mãos de muitas poucas pessoas, certo? Existe um clube chamado Bossa Nova Civic Club [New York] que agora está quase fechando as portas por conta de um incêndio. Quando você perde um espaço, ou quando uma pessoa decide não fazer mais parte da cena, o efeito cascata costuma ser bastante grande. Será que o livro que você está escrevendo vai analisar também a infraestrutura por trás das raves, o pano de fundo por trás delas?

Sanannda Acácia

MW — Não de todo, mas existe uma passagem que se conecta com esse tema. A cena no Brooklyn gira especialmente ao redor de Bushwick e Ridgewood. São quase todos espaços para onde posso ir a pé, de onde a gente pode voltar para casa caminhando. São espaços industriais que costumavam ser muito desvalorizados. Acontece que, a partir do momento em que esses espaços começam a atrair pessoas, isso acaba contribuindo para um processo de gentrificação. E acabamos tendo que lidar com isso: participamos coletivamente de algo que será expropriado de nós, e vai fazer com que a gente tenha que se mudar para outro lugar. Há certas qualidades que tornam um espaço interessante, e não é fácil encontrar bons espaços no Brooklyn agora. Espaços que estejam no ponto ideal, no meio do caminho entre não estar em um lugar que seja longe demais e nem correr o risco de ser fechados pela polícia tão cedo. Esses espaços se tornaram bastante raros, um tanto difíceis de encontrar. Os bons mesmo costumam ser bem pequenos, com espaço para cem pessoas. Não estou me debruçando sobre grandes festas: mesmo quando falo de algumas que chegaram perto da legalidade, são festas cujo número de frequentadores não passa de algumas poucas centenas de pessoas. Na cena do techno, existe uma pequena rede de clubes legais que tiveram que fechar por conta do licenciamento. Como não estou falando sobre techno, estou olhando um pouco indiretamente para isso. Me concentro mais nos galpões: uma festa não é de fato uma rave, a menos que aconteça em um galpão, não? Ou talvez em outro espaço reformado, mas certamente não em um clube comum.

Aqui costumamos usar estacionamentos de carros [risos].

MW — Isso aconteceu bastante por aqui durante a covid. Escrevi sobre uma que aconteceu atrás do estacionamento da Ikea. Não sei se a Ikea existe no Brasil, é uma imensa loja de itens para casa com um estacionamento gigantesco, e atrás dele havia um espaço para raves. Esse foi fechado. Então a festa se mudou para uma rua sem saída em algum outro lugar. Outra vez acabou acontecendo em uma via férrea. Não dá para dançar entre linhas de trem. Você pode acabar quebrando o tornozelo! Lajes de prédios se tornaram uma tendência. Agora está muito frio, mas acho que na primavera veremos novamente as pessoas dançando nas lajes, ainda que essas festas sempre acabem sendo fechadas. No calor, talvez recomecem as raves de praia. Como é que você faz para dançar numa praia? [risos]. Seja como for, é uma maneira de descobrir espaços na cidade. Você segue as coordenadas de um mapa e de repente se dá conta que o lugar que procura fica dentro de uma floresta, e logo mais você estará como que tropeçando por aí [risos]. Eu amo esse tipo de coisa. O modo como você acaba descobrindo a geografia psíquica de uma cidade, deslizando por ela à procura de raves, experimentando a cidade como uma situação aberta para o prazer, para o não trabalho. Mas estou ficando velha demais para esse tipo de coisa. Fiz 70 anos no ano passado!

Sim. Normalmente essas comunidades pequenas dependem muito desse tipo de espaço e de um grupo diminuto de pessoas. Então, quando algo assim acontece, muita coisa se desestrutura.

MW — Houve um encontro sobre a cena noturna que chamamos de town hall em um clube chamado Nowadays, e que envolvia sobretudo pessoas negras e transexuais que trabalham à noite. E o que descobrimos é que todos os clubes eram propriedade de homens brancos heterossexuais, acredita? É como se fôssemos apenas locatários da nossa própria cultura. Digo isso como uma pessoa branca de classe média, mas tudo isso diz respeito sobretudo a pessoas negras e trans que não têm nada além da vida noturna. A vida noturna é o único caminho para casa, sabe?


Parte II: Movimentos laterais — estratégias rastejantes