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O feminismo universal é subversivo

Entrevistas com Martine Storti e Françoise Picq

conduzida e traduzida por
Lena Lavinas e Carla Rodrigues

Feminismos, Manuela Eichner.

A noção de feminismo que nos formou nos anos 1970, a despeito das nossas divergências, foi substituída pela de feminismos, de modo a dar dimensão ao valor plural, às divisões e às oposições no seio dos movimentos de mulheres. Se essa abordagem afirma basicamente a essência democrática e horizontal do feminismo, também parece pôr em questão seu universalismo. Existe um feminismo universal ou o efeito geracional reconfigura as ondas feministas e impõe, a cada vez, uma adjetivação?

Martine Storti — Os adjetivos sempre acompanharam a palavra feminismo. Certamente eles são hoje numerosos, mas o fato novo, a mim parece, é que a palavra “feminismo” pode recobrir análises ou posições opostas ou contraditórias. Por exemplo, aprovar ou desaprovar o uso do véu; ser a favor ou contra a GPA (sigla em francês para maternidade de substituição, comumente referido por “barriga de aluguel”); lutar contra o assédio ou julgar que isso conduz à imposição de limites à liberdade sexual; rebaixar o universalismo em prol da identidade, identidade branca ou identidade nacional; e mesmo qualificar o feminismo, dependendo do dia, com a fórmula hipocrática “tota mulier in utero” (“Toda mulher é um útero”)!

A questão é saber se são apenas desacordos, o que não seria nada embaraçoso, pois desacordos e divergências nos remetem à democracia, ou se são confusões, empreendimentos nebulosos, e até mesmo retrocessos. São estas perguntas que tento responder em meu último livro Pour un féminisme universel (Por um feminismo universal), recém-publicado pela editora francesa Seuil.

Proponho um feminismo universal porque a palavra “universalismo” — pelo menos na cena francesa — foi instrumentalizada, ideologizada e reduzida, por certas correntes políticas, à identidade nacional, permitindo que correntes e pessoas que sempre se opuseram à emancipação das mulheres se apresentem portadoras de um “feminismo universalista” para desenvolver uma perspectiva nacionalista e islamofóbica. Não estou dizendo, é claro, que todos aqueles e todas aquelas que afirmam ser universalistas defendem essas posições. Mas, de minha parte, prefiro usar o adjetivo “universal”.

Estou ciente de que existem falácias do universal e de que ele pode ser o disfarce do particular. Foi assim, por exemplo, o sufrágio universal que se qualificou como tal quando era apenas masculino. Mas nestes tempos de essencializações e de regressões identitárias, o universal recupera sua força subversiva e seu potencial emancipatório.

Um feminismo universal não está em uma posição superior, fechado em si mesmo, encerrado em suas certezas. Ele não é entregue pronto, se bastasse implementá-lo, como muitos defensores(as) do universalismo nos fariam acreditar. Concebo o feminismo universal como um movimento, um processo, constantemente em construção, constantemente reconfigurado, construído e reconstruído em lutas. Um universal feito de todas as lutas passadas, presentes e futuras. O feminismo universal é feito de histórias, e faz história, na contingência de práticas e de lutas sociais.

Françoise Picq — Sempre houve pontos de vista divergentes no feminismo. Divergências sobre as prioridades (primeiro, devíamos conquistar direitos civis ou apostar todas as fichas nos direitos políticos, como Hubertine Auclert?); sobre a estratégia: radicalismo ou “a política dos passinhos”, autonomia ou aliança com partidos políticos? E a desaprovação exercida sobre as que escolheram um outro caminho em nada fica a dever ao que se passa hoje. Assim, o qualificativo “burguês” do início do século XX tem função semelhante ao emprego de “feminismo branco” na atualidade: deslegitimar uma luta. Aliás, usam-se os mesmos argumentos para deslegitimar esse feminismo (em nome de uma luta principal, da luta de classes ou de um certo antirracismo1). Discuto o tema do “feminismo burguês” no meu livro Stratégies des femmes (1984) (versão para o inglês em www.francoisepicq.fr).

É normal que haja desacordos entre feministas. Isso faz parte do debate democrático. E a controvérsia pode ser interessante por abordar questões fundamentais e esclarecer contradições essenciais no âmbito da sociedade. Infelizmente, quando algumas optam pela execração, o debate acaba se tornando impossível. Até aí nada de novo, a história dos movimentos sociais é farta em polêmicas e excomunhões. As mulheres não são uma exceção, apesar da utopia da sororidade do início do MLF (Movimento de Liberação das Mulheres)…

Você pensa que a maneira de formular os feminismos por ondas coloca em perigo a transmissão intergeracional do feminismo, de tal modo que cada nova geração se vê obrigada a retomar as mesmas palavras de ordem e a repetir as reivindicações, inclusive as já conquistadas?

Martine Storti — A imagem da onda pode, de fato, induzir um reinício eterno, cada onda esquecendo aquela que a precedeu. O fenômeno é duplo e paradoxal. Cada geração pensa que está começando algo, como se não houvesse nada antes. Esse foi o caso do MLF francês, se pensarmos, por exemplo, no título da revista Partisans publicada em 1970, Libération des femmes, année zéro (“Liberação das mulheres, ano zero”). As lutas das mulheres, porém, não começaram em 1970, mas esse título demonstra tanto certa arrogância quanto, acima de tudo, uma grande ignorância do passado. Em defesa das jovens mulheres que éramos então, deve ser dito que a história de lutas feministas não nos foi transmitida e que apareceu em pouquíssimos livros.

Parece-me que hoje as gerações mais jovens são menos ignorantes do que nós fomos, em 1970, em relação às lutas que nos precederam, mesmo que não as conheçam em detalhes. O fato é que em certas questões, infelizmente, é necessário retomar as mesmas lutas, seja porque as conquistas são frágeis — é o caso, por exemplo, dos direitos sexuais e reprodutivos — ou porque os problemas permanecem. Apenas para dar um exemplo, é o que acontece com a questão da violência sexual e da violência de gênero. Nos anos 1970, as feministas francesas lutaram contra tais violências, mas, de fato, é necessário retomar e continuar essa luta. Daí o movimento #MeToo, que conquistou todos países e estratos sociais.

Françoise Picq — Com frequência, me opus à metáfora das ondas, que tende a embaçar as continuidades e a ocultar as oposições (oposições de pontos de vista, e não de gerações). Minha posição, no que tange a sucessão das gerações e os mal-entendidos que a acompanham, é de que se trata de distinguir as características desse ou daquele movimento, quais delas são conjunturais, porque ligadas a um certo contexto, e quais se inscrevem na história cumulativa e de longo prazo das conquistas do feminismo. Cada geração deve definir seus objetivos e suas formas de intervenção, mas não se pode aceitar que haja um questionamento dos direitos conquistados pelos movimentos feministas.

É se de esperar que a tomada de consciência feminista (o momento em que se percebe o fosso existente entre o princípio de igualdade e o de realidade) traga consigo indignação. Isso sem dúvida explica a recusa das jovens feministas em considerar o caminho já percorrido e as conquistas do movimento que precedeu. No entanto, isso torna a transmissão difícil e dolorosa para as “antigas”, cuja experiência é negada ou contestada, justamente as que desejariam inscrever suas mobilizações atuais na longa história do feminismo.

Ademais, é verdade que nada é jamais definitivamente alcançado e que certas lutas estão sempre a recomeçar. Assim, sobre a questão essencial do aborto (a principal conquista do feminismo nos anos 1970 para nós, europeias), vemos, ao mesmo tempo, uma extraordinária mobilização em alguns países, sobretudo na América Latina, e também uma enorme reação, sobretudo nos Estados Unidos. Com relação às violências sexuais, o que se mostrava uma vitória (o reconhecimento do estupro como crime) parece hoje algo irrisório quando se pensa na escala e na gravidade dessa violência (com a noção nova de feminicídio e o aumento dos casos). Sem contar o fato de o patamar de tolerância ter caído bastante.

A interseccionalidade, inicialmente uma ferramenta teórica, foi transposta para a ação e hoje molda os feminismos. Há “feministas interseccionais” e outras. Quais são as vantagens e as desvantagens?

Martine Storti — É difícil não reivindicar um feminismo interseccional por quanto é atraente o projeto de descrever, analisar e combater ao mesmo tempo várias opressões e dominações, notadamente de gênero, classe e raça. O desejo de tornar visível e de abraçar as múltiplas modalidades de exploração, opressão e dominação é combinado com o destaque de suas consequências em termos de discriminação e desigualdade.

Não se trata apenas de uma adição, ou mesmo de um cruzamento no sentido geométrico do termo, mas de seus efeitos transformadores: por exemplo, uma mulher negra pode ser vítima tanto do racismo quanto do sexismo, e consequentemente experimentar o sexismo e lutar contra ele de forma diferente de uma mulher branca.

Numerosos estudos, textos e livros — seria muito exaustivo citá-los aqui — atestam a eficácia da abordagem interseccional ao enunciar e descrever dominações mostrando que uma experiência não é apenas pessoal, mas comum a outras.

Mas como vítima, de alguma forma, de seu sucesso, a interseccionalidade também se tornou um instrumento de convocação, injunção e desqualificação. Uma feminista politicamente correta deve declarar-se pelo menos interseccional ou corre o risco de ser execrada, sendo remetida de volta à segunda geração do feminismo, à “velha escola”. Mais uma vez, este é um mal menor. Há um risco ainda maior, o de receber uma grande acusação: ser uma feminista cega à opressão da classe e, acima de tudo, da raça. E em muitos casos não só cega, mas também cúmplice, até mesmo uma de suas artífices.

Portanto, de minha parte, digo sim à interseccionalidade como conceito e ferramenta de análise e de luta, e digo não à interseccionalidade como slogan maniqueísta. Além disso, a interseccionalidade muitas vezes não leva a uma intersecção, mas a uma hierarquia das lutas, com a questão da “raça” tendo precedência sobre as outras.

Françoise Picq — A interseccionalidade se tornou uma exigência em nome da qual se coloca em questão o feminismo tal como nós o havíamos definido nos anos 1970. Naquela ocasião, quando a análise social era dominada pelo marxismo e a primazia dada à “luta de classes”, o movimento feminista logrou impor a legitimidade de suas lutas (num paralelismo com outras lutas). Jamais se pensou substituir a luta de classes pela luta das mulheres, mas tão somente articular ambas. Porém, recusamos que as reivindicações das mulheres fossem anuladas frente às outras (por exemplo, não hesitar em denunciar um estupro, mesmo que praticado por um oprimido).

Afirmar, na conjuntura presente, que as feministas dos anos 1970 desconsideraram as dominações de classe e de raça é uma falsificação histórica. O feminismo dos anos 1970 nasceu no lastro do Movimento de Maio de 68, no combate anti-imperialista e revolucionário. Nossa vitória foi impor uma análise da sociedade mais complexa que aquela que então predominava, análise na qual a questão das mulheres tinha ela também seu lugar. Hoje a interseccionalidade, anunciada como um progresso, acaba por hierarquizar as lutas e a revogar a luta das mulheres que não seria, em si mesma, legítima.

Na mesma linha, feministas negras e feministas pós-coloniais estão hoje lado a lado. No Brasil, acaba de ser traduzido o livro de Françoise Vergès (Um feminismo decolonial, UBU Editora, 2020), assim como podemos observar a valorização de autoras como Angela Davis ou Maria Lugones. Há limites para o pluralismo feminista?

Martine Storti — Mais uma vez, as discordâncias e o pluralismo não são, em si, embaraçosos. Mas uma coisa é um desacordo, outra coisa é uma reescrita da história. Por exemplo, ousar escrever que as feministas do MLF eram indiferentes ao racismo, ao neocolonialismo, às questões internacionais, é não apenas um conjunto de omissões, como também são mentiras deliberadas.

Além disso, convém se perguntar se se está no pluralismo feminista ou no retorno à contradição e às frentes secundárias de luta. As feministas dos anos 1970 conseguiram uma ruptura com o discurso tradicional da esquerda, mesmo a revolucionária, que se referia à emancipação da mulher como uma “contradição secundária” que seria resolvida após a revolução. Elas disseram “não somos a contradição secundária” nem uma frente secundária de luta.

Pergunto-me se hoje alguns(umas) não estariam começando novamente a colocar a luta antirracista ou anticapitalista à frente da igualdade e da liberdade das mulheres. Há ra­di­ca­li­da­des que podem, de fato, ser retrocessos. Repito o que disse anteriormente: digo sim a uma verdadeira interseccionalidade, digo não a uma interseccionalidade que disfarça uma hierarquia de lutas.

Françoise Picq — A priori, não há limites ao pluralismo, à condição, contudo, que se trate verdadeiramente de pluralismo, o que nem sempre é o caso. Se tomar­mos como exemplo Françoise Vergès, trata-se muito mais de difamação que de pluralismo. E de falsificação da história. Denunciar o movimento feminista dos anos 1970; caracterizá-lo como indiferente ao racismo, ao neocolonialismo… é desonesto. Mas parece ser indispensável à demonstração e à justificação da postura “decolonial”. Isso é particularmente insuportável por parte de Françoise Vergès, quando se conhece sua história com o MLF e sua participação à “impostura” de requerer o registro da logomarca do MLF.

Na sua radicalidade, o pensamento feminista, assim como Movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), permite uma reinterpretação do colonialismo e de sua permanência na atualidade. A com­preen­são do que é a violência colonial e como ela nos moldou é acessível a todos e apreensível para uma transformação? Ou será que falar de salário igual para trabalho igual facilitava as coisas?

Martine Storti — Penso ter respondido essa questão na resposta anterior, portanto, não vou retomá-la.

Françoise Picq — É evidente que existe hoje uma reinterpretação do colonialismo, uma inversão de perspectivas. A onda terceiro-mundista carregava nossas esperanças de libertação dos povos oprimidos. Em razão da desesperança, ele foi substituído pelo “pós-colonialismo”. Entende-se que o erro seja imputado de volta ao colonialismo, mas isso não nos permite avançar. Hoje temos uma consciência maior do que é a violência do colonialismo (que Macron chegou a qualificar de “crime contra a humanidade”). O Movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) se inscreve, na minha opinião, no passado escravocrata dos Estados Unidos e não propriamente no colonialismo.

A violência colonial parece se perpetuar contra grupos que historicamente têm sido seu alvo, sejam eles a população negra ou os povos indígenas. Parece, entretanto, que outros grupos também estão agora pagando o preço. O fenômeno global da violência contra as mulheres e o feminicídio podem ser vistos como uma manifestação da misoginia inerente à violência colonial?

Martine Storti — É verdade que a violência sexual é particularmente dirigida contra as mulheres que já sofrem discriminação e desigualdade como resultado do pós-colonialismo ou neocolonialismo. Mas não é dirigido apenas contra elas. A violência sexual e sexista contra as mulheres é, infelizmente, universal; ela ocorre em todos os continentes e em todos os estratos da sociedade, como demonstrou o movimento #MeToo.

Françoise Picq — Não creio que se possa associar a violência contra as mulheres e os feminicídios à violência colonial. Até porque, no caso da violência policial, são os homens as vítimas. As violências sexuais e de gênero existem em todo lugar, em todos os meios. É difí­cil estabelecer se, em geral, as mulheres que acumulam discriminações são particularmente mais vitimadas. O caso das mulheres indígenas do Canadá é conhecido, e os números dramáticos dos feminicídios no México, bem como no restante da América Latina, também. Mas eu não saberia se cabe associar tudo isso à perpetuação da violência colonial.

O movimento internacional #MeToo galvanizou o poder da voz das mulheres. Permitiu a reapropriação de seus corpos e a reconstituição de uma identidade negada. Também alimentou a radicalização do feminismo em um mundo globalizado relativamente despolitizado. Isso nos parece revolucionário porque permitiu um reequilíbrio — ainda insuficiente, deve ser salientado — de poder entre os sexos. Concorda?

Martine Storti — Eu não poderia estar mais de acordo. É verdade que as lutas contra a violência de gênero e sexual não começaram em outubro de 2017 com o #MeToo, já que essa é uma das pautas constantes dos movimentos feministas. Mas o #MeToo marca um ponto alto. Na minha opinião, é um exemplo de um “universal” construído em lutas, com mulheres como protagonistas de suas próprias vidas. Não é que a palavra tenha sido libertada, mas que mulheres a tomaram em uma iniciativa individual e coletiva que atravessou todos os países e todos os contextos sociais, políticos, profissionais, religiosos e outros. É uma luta que diz, mais uma vez, "meu corpo não está à sua disposição". Também questiona a opinião amplamente defendida de que os homens têm necessidades sexuais importantes que devem ser satisfeitas. O #MeToo rejeita tanto a violência quanto uma certa visão da sexualidade masculina e feminina, uma visão que ensina os homens a ceder a seus desejos, e as mulheres a ceder dos seus desejos.

Françoise Picq — Sem dúvida, o movimento #MeToo sacudiu o planeta, e realçou essa situação de dominação e de violência comum a tantas mulheres. Essa é uma nova etapa, não porque, como pretendem alguns, as mulheres tenham tomado a palavra, mas porque sua palavra foi mais ouvida. Isso modificou a correlação de forças por algum tempo. Não há garantias de que vá durar. A realidade que persiste é a da dificuldade de fazer reconhecer as violências contra as mulheres pela justiça, quando faltam provas tangíveis e o embate é a palavra de um contra a palavra da outra.

O feminismo, por ser essencialmente anti-hierárquico e engajado com a transformação estrutural das relações de gênero, sempre se apresentou como um movimento radical. Parece que o século XXI está nos trazendo um novo radicalismo feminista ou um feminismo radical que é bem diferente em suas práticas anteriores. Isso é verdade?

Martine Storti — O que você quer dizer com o adjetivo radical? Levar as coisas às suas raízes, como disse Marx? Nas práticas, certamente existem diferenças, mas vejo muitas semelhanças, pois ontem como hoje as práticas são múltiplas e diferenciadas. Nos anos 1970, por exemplo, havia uma mistura de insolência, humor, audácia, gestos que escandalizavam, palavras de ordem que surpreendiam, etc. Hoje é a mesma coisa. Vejo uma diferença importante, pelo menos na França: a organização das feministas em múltiplas associações. As reuniões ou as ações não são mais da responsabilidade de indivíduos, mas de grupos e de coletivos. Sobre o conteúdo, a exibição radical, a autoproclamação do radicalismo também pode se revelar um retrocesso, como mencionei anteriormente, este é um ponto que desenvolvo em meu livro.

Françoise Picq — O feminismo não é sempre e em todas as instâncias radical. Geralmente, as feministas reformistas são as que fazem avançar a causa das mulheres. Isso funciona melhor sempre que as distintas estratégias em jogo vão na mesma direção. Laure Béreni2 estudou esse sucesso na batalha pela paridade, ao forjar a noção de “espaço de luta das mulheres”. Assistimos hoje a um novo radicalismo por parte de certas feministas jovens, cujos métodos por vezes nos chocam. Porém, nossos métodos certamente chocaram da mesma maneira as feministas que se pretendiam sensatas nas suas reivindicações pela igualdade dos direitos.

Entre as muitas questões complexas no debate feminista, no Brasil como em outros lugares, está a do punitivismo. Isto nos leva de volta a Foucault, com seu Vigiar e Punir. Parece, entretanto, que as feministas defendem fortemente a punição como meio de prevenção contra a violência sexual e a violência de gênero. Como o feminismo pode distinguir entre justiça e reparação, por um lado, e punição e “cancelamento”, por outro?

Martine Storti — Eu não diria que “as feministas defendem fortemente a punição”. A luta contra a violência é tão constante, tão recorrente, que ainda temos de encontrar maneiras de dizer que tal violência é inaceitável e que aqueles que a cometem não podem escapar sem danos. Esse é um debate antigo. Nos anos 1970, na França, as feministas lutaram para que o estupro fosse reconhecido como um crime e fosse julgado como tal. Fomos acusadas de jogar “o jogo da justiça burguesa”. Mas naquela época, quando um chefe responsável por um acidente de trabalho que causara a morte de um trabalhador era julgado pelo mesmo tribunal, não era mais a justiça burguesa, mas a justiça em geral! Para dizer isto um pouco alto, estou farta desta culpa que está sendo lançada sobre as mulheres. O que pedimos a elas? Para ficarem quietas? Deixar os perpetradores de violência fazerem seu trabalho sob o pretexto de que não se deve punir? Claro que, aqui e ali, os perpetradores da violência também podem ser vítimas, do racismo, do capitalismo… Claro que a prisão e a punição, como você diz, podem não ser as soluções ideais, mas é ainda menos aceitável pedir às mulheres que carreguem o fardo do racismo ou da opressão social.

Françoise Picq — Esse é um dilema que nós conhecemos. Quando reivindicamos que o estupro fosse julgado (como crime perante a lei) na Cour d´assises,3 fomos acusadas de fazer o jogo da “justiça burguesa”. Mas não tínhamos como controlar a máquina que a gente tinha acionado. O que fazer? Não era mais possível continuarmos caladas e sofrendo. Hoje, pelo contrário, a crítica feita às feministas radicais é a recusa de recorrer à justiça, respeitando suas regras, o debate do contraditório, a presunção de inocência, preferindo em seu lugar o “tribunal midiático”, que condena antes de discutir. Esse é um problema concreto, pois a experiência mostra que não se pode confiar na justiça no que tange as violências perpetradas contra as mulheres, embora as coisas pareçam evoluir em resposta às mobilizações feministas.

A característica da racionalidade neoliberal é funcionar tornando o indivíduo responsável por seu próprio destino. Ao fazer isso, torna possível apagar estruturas sociais, mesmo superestruturas, exigindo assim a punição e a exclusão daqueles que são considerados “fracassados”, o que permite ocultar a ausência de políticas públicas e o desmantelamento do Estado social. Na sua opinião, o feminismo é um movimento contra-hegemônico ao modelo neoliberal?

Martine Storti — É difícil responder a esta pergunta porque a expressão “feminismo” encobre, como eu disse anteriormente, análises e posições divergentes. Na minha opinião, o neoliberalismo econômico tem efeitos muito negativos para as mulheres em termos sociais (trabalho feminino como valor de ajuste, desigualdades salariais, discriminação, mercado de prostituição, imigração, etc.). Portanto, o feminismo e o neoliberalismo são, de fato, antinômicos. Entretanto, o liberalismo econômico, o liberalismo político e o liberalismo cultural não devem ser confundidos. Observo que esta assimilação entre os três acontece tanto numa certa direita identitária quanto numa certa esquerda autoproclamada anticapitalista.

Françoise Picq — Não sei como responder a essa questão. Há que estabelecer o que se entende por “racionalidade neoliberal” segundo o contexto. Na França, o neoliberalismo é mais denunciado que reivindicado. A defesa do Estado do bem-estar e do “modelo social” é tamanha que é sempre em nome da sua preservação que se formulam políticas para reformá-los. Desse modo, o argumento de vocês de um “modelo contra-hegemônico ao modelo liberal” me parece por demais vago para que eu possa formular uma resposta.

Em todo o mundo o neoconservadorismo religioso, católico e evangélico, ameaça os direitos reprodutivos, em particular o direito ao aborto. Por que a lógica neoliberal se opõe tão ferozmente ao direito de as mulheres terem controle sobre seus corpos?

Martine Storti — Todos os fundamentalistas religiosos questionam os direitos sexuais e reprodutivos, não apenas católicos e evangélicos. Acrescentemos o pretexto de respeito às culturas, em outras palavras, do relativismo cultural. Devemos olhar o que está acontecendo na ONU, onde durante vários anos foi forjada uma aliança contra esses direitos entre a Rússia, o Vaticano, o Irã, a Arábia Saudita e, desde a eleição de Donald Trump, os Estados Unidos. Mas isso não vem da onda neoliberal, que está muito dividida sobre estas questões.

Françoise Picq — Os conservadorismos religiosos conhecem, decerto, uma renovação. E atacam os direitos das mulheres, em particular, os direitos reprodutivos. Mas trata-se de uma novidade (ou Neo)? Por outro lado, não creio que se possa estabelecer, de modo geral, uma relação entre conservadorismo religioso e neoliberalismo. Talvez seja o caso, mas parece difícil generalizar sem uma análise mais aprofundada.

A paridade na política fez grandes progressos na França durante as duas últimas décadas, ao contrário do que tem acontecido no Brasil, onde os percentuais de representação das mulheres na política ainda são baixos. A paridade de gênero na política provou ser uma vantagem para o feminismo, tornando-o mais forte e mais presente na sociedade francesa? Que vantagens e que contradições podem ser discernidas?

Martine Storti — A paridade de gênero tem, de fato, obrigado muitas instituições, não apenas no campo político, a nomear mulheres. Entretanto, em muitos casos, não existe paridade rigorosa e a visibilidade das mulheres em muitas áreas ainda é insuficiente. Nem todas as mulheres que ganharam posições graças à paridade são feministas, algumas são, outras não. Eu acrescentaria que, aqui novamente, várias concepções estão em ação, desde um feminismo concebido como integração igualitária na ordem estabelecida até um feminismo que visa mais além, ou seja, uma mudança global na sociedade.

Françoise Picq — Quando da luta pela paridade, as feministas estavam muito divididas. E é verdade que essa vitória não está isenta de ambiguidades.4 É um trunfo para o feminismo no sentido de sua integração à sociedade. Mas ao mesmo tempo, nem tudo é positivo nessa integração do feminismo, que abre mão de uma parte de seu dinamismo e de suas exigências.

O cinquentenário da MLF foi comemorado na França no final de agosto. Mantiveram-se duas características originais: seu radicalismo e sua autonomia. Que avaliação rápida e necessariamente incompleta pode ser feita de tudo o que foi realizado e tudo o que resta a ser feito?

Martine Storti — Muito já foi feito e muito há ainda a ser feito! No que diz respeito à situação francesa, o progresso é inegável se compararmos hoje com ontem: para ser franca, muitos direitos foram conquistados, a visibilidade da mulher é muito maior e, em termos legais, o patriarcado não existe mais. Mas a sociedade continua patriarcal. Sexismo, violência, desigualdades de remuneração e de posição social, discriminação, gestações que penalizam as mulheres — esses são apenas alguns exemplos, a lista do que ainda precisa ser mudado é longa. Se levarmos em conta a situação das mulheres no mundo, eu acrescentaria que a tarefa de acabar com a dominação masculina ainda é imensa. Assim, para citar um slogan de maio de 68, “este é apenas o começo, vamos continuar a luta”.

Françoise Picq — É obviamente impossível fazer, em poucas linhas, um balanço de 50 anos de lutas feministas, de suas vitórias e retrocessos. Do ponto de vista jurídico, e no que diz respeito à França, podemos afirmar que o essencial foi feito para eliminar todas as sequelas patriarcais do Código Napoleônico. Mais que isso, o lugar das mulheres na sociedade e o seu “estar no mundo” foram transformados. Contudo, a construção de uma igualdade real é bem mais complicada de ser instituída. A igualdade profissional nem de longe foi alcançada, os mecanismos para isso estão sendo implementados apenas gradativamente (nada espontâneo, pois a luta continua sendo necessária). A divisão de tarefas melhorou, mas segue profundamente desigual. O modelo de família e sexual foi modificado. É mais igualitário. Isso dito, ele permanece um modelo, inacessível para muitos e exposto a todo tipo de retrocessos ao sabor das mais variadas crises. Constatamos que a crise sanitária e o confinamento agravaram as desigualdades entre os sexos e exacerbaram a violência. E isso, para nos limitarmos à situação muito privilegiada das mulheres nos países mais desenvolvidos.

E compreensível que as feministas jovens se mostrem impacientes. Mas a tendência é que acabem perdendo de vista o que já foi conquistado.

O contexto internacional não é nada favorável aos avanços democráticos e sociais, e menos ainda aos direitos das mulheres. O temor de um retrocesso vis-à-vis ao que foi proclamado quando da Conferência Mundial de Beijing (1995) fez com que até agora não se tenha convocado outra conferência. Mas a mobilização das mulheres em todo o mundo, em prol da conquista de novos direitos, é extraordinária e portadora de grandes esperanças.