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Entrevista com Anielle Franco

Isola, Christiana Moraes.

A que vocês, do Instituto Marielle Franco, atribuem o sucesso eleitoral de candidaturas de mulheres negras e da periferia nessas eleições municipais? Vocês tinham alguma meta em mente do ponto de vista da eleição das candidatas que aderiram à agenda do Instituto?

Anielle Franco — Acreditamos que o sucesso eleitoral das mulheres negras se deve a muitos fatores. A começar pela luta histórica das mulheres negras de ocuparem esses espaços de decisão e poderem apontar os rumos da sociedade. Há séculos nossas mais velhas vêm liderando suas comunidades para sobreviverem à política de extermínio, e graças a elas estamos aqui hoje podendo disputar essa possibilidade.

Sem dúvida esse sucesso também se dá pelo fato de que estamos falando da primeira eleição municipal sem Marielle. Desde 14 de março de 2018 viemos falando que não daremos nenhum passo atrás depois do que fizeram com a minha irmã. Pelo contrário. Seguiremos em frente por ela. A sociedade está respondendo a quem pensou que seria possível parar o rumo da história.

Uma das muitas dificuldades da política no Brasil é a falta de renovação de quadros e decorrência disso, uma pauta afastada das reivindicações dos movimentos sociais. Além disso, o clima político brasileiro é muito hostil ao feminismo, às pautas LGBT e do movimento negro. Como vocês se organizaram para fortalecer novas lideranças, apesar do sistema político?

A.F. — Entendemos que o sistema político precisa ser reconfigurado. Da forma como ele existe hoje, é feito para que não haja renovação, não haja conexão com a população e não haja diálogo. Por isso criamos a Pane — a Plataforma Antirracista nas Eleições —, com um conjunto de ações e ferramentas para mover as estruturas do sistema político.

Quais são os planos para manter os mandatos conquistados, articulados, mobilizados e vinculados com outros movimentos sociais?

A.F. — Ainda estamos refletindo e desenhando quais serão nossos próximos passos. É necessário agir com muita consciência e estratégia. Somos uma organização da sociedade civil independente e temos o papel de cobrar uma postura aberta dos mandatos e ao mesmo tempo defender o direito de que eles possam ser exercidos até o final; construímos a Agenda Marielle a partir das pautas e práticas que minha irmã defendia.

As candidatas que assinaram a agenda se comprometeram com essas práticas e lá estava a importância de serem espaços em constante diálogo com os movimentos. Ainda estamos entendendo como se dará essa relação. Mas, no momento, nossas ações estão focadas em incidir sobre as ameaças de morte e violências políticas que as mulheres negras comprometidas com a Agenda Marielle já estão sofrendo.

Quais são os maiores desafios para sustentar a renovação das pautas?

A.F. — Acredito que manter o pé no chão, a humildade, a capacidade de escuta e de diálogo são desafios importantes para os mandatos eleitos. O espaço do poder é muito tóxico, violento e adoecedor. Para se estar conectada com a atualização das pautas é preciso resistir ao engessamento desses espaços de poder.

Uma das acusações que persistem contra as candidaturas de pessoas negras, pessoas trans e mesmo de mulheres, é que são representações identitárias com compromisso exclusivo com temas próprios, como se esses temas não integrassem o conjunto de problemas da sociedade brasileira. Como enfrentar essa acusação?

A.F. — Quem ainda acha que a representatividade na política é apenas uma questão de identidade não entendeu nada. Óbvio que existe identidade porque a humanidade se constrói a partir de grupos que se identificam, mas estamos falando sobre sobrevivência e sobre eficiência. Precisamos de parlamentos que tenham mais a cara e a experiência do povo, para que as leis que são produzidas lá reflitam a necessidade da população.

Dito de outro modo: a pauta identitária em si é suficiente? Ou é preciso que esteja comprometida com valores do campo progressista?

A.F. — Óbvio que a representatividade pela representatividade não nos serve. Como minha irmã dizia, não basta ser mulher, não basta ser negro, tem que defender as pautas das mulheres e dos negros. Mas as coisas precisam andar juntas. Até para que as futuras gerações possam se enxergar nesses espaços. Saber que é possível.

O Instituto Marielle Franco se relaciona com os partidos políticos em geral, considerando que mulheres negras foram eleitas em várias agremiações, de matizes ideológicos radicalmente distintos? Ou fazem um trabalho paralelo, apenas com os movimentos de mulheres e o movimento negro?

A.F. — Somos uma organização da sociedade civil e independente. Queremos dialogar com pessoas das mais diferentes opiniões, porque entendemos que a vida é muito mais complexa do que essas caixinhas. O Brasil é um país de dimensão continental. Os partidos são diferentes em cada lugar. E entendemos que valores humanos estão acima de ideologia política. Sem dúvida temos o compromisso com a defesa de um sistema econômico justo, onde o lucro não seja mais importante que a vida. Mas acreditamos que é fundamental que possamos ser capazes de dialogar com todas as pessoas.

Qual o retorno que candidatas associadas à agenda do Instituto Marielle Franco e eleitas trazem para a consolidação da própria instituição, como participação em cursos de formação, reuniões para montar lideranças, apoio a mandatos coletivos?

A.F. — Ainda não definimos esse tipo de detalhe da relação. Mas só o fato de já podermos olhar para essa rede potente de 81 mandatos parlamentares espalhados por 54 cidades do país, comprometidas em multiplicarem o legado de Marielle, isso já é um retorno imensurável.

Multiplicar o legado da minha irmã e regar as sementes que ela deixou são dois dos nossos quatro pilares de atuação, e estamos certas de que esse ano demos uma importante contribuição para esse desafio.