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A sociedade neoliberal e sua crise

resposta a Pedro Romero Marques

A disputa política sobre a forma de reorganização das sociedades após a pandemia está em andamento. Para as esquerdas influenciarem o desfecho, elas precisam não apenas de grande capacidade de ação e mobilização, mas também de um diagnóstico preciso sobre o que está em jogo. O esforço intelectual de identificar os processos em curso e seus potenciais desdobramentos, no calor da hora, pode parecer um exercício fútil de futurologia, especialmente quando realizado por um integrante da tribo desacreditada dos economistas. Mas os riscos inerentes a esse esforço justificam-se pela importância estratégica de suas conclusões. Os comentários críticos de Pedro Marques a O interregno e a pandemia abrem um diálogo frutífero para avançarmos nessa reflexão estratégica.1

O ponto de partida de Marques é a concepção de Pierre Dardot e Christian Laval sobre o neoliberalismo, celebremente exposta em A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, publicado originariamente em 2009.2 Dada a influência recente da obra dos dois intelectuais franceses, não surpreende que muitas das críticas que recebi por conta do ensaio tenham sido formuladas a partir dessa perspectiva. Uma análise mais cuidadosa da obra de Dardot e de Laval requereria um novo ensaio. O objetivo desta breve réplica é apenas suscitar algumas questões, levantar algumas hipóteses e sugerir, de forma preliminar, que tal concepção de neoliberalismo é compatível com o diagnóstico sugerido em O interregno e a pandemia, permitindo, não obstante, aprofundá-lo em algumas direções. Na sequência, três delas serão analisadas.

I

A primeira é a questão da subjetividade neoliberal. Marques argumenta que minha aposta na superação do neoliberalismo “não leva em consideração o peso que exerce a subjetividade neoliberal no modo de vida contemporâneo”. De fato, esse é um ponto central para a formulação de Dardot e de Laval. Segundo eles, “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”.3 Assim, superar o neoliberalismo não pode se resumir a derrotar as políticas neoliberais, mas implica uma transformação do próprio modelo de subjetivação do capitalismo contemporâneo, baseado na “generalização da concorrência como norma de conduta”.4

A força desse modelo de subjetivação não deve ser subestimada, mas também não convém a superestimar. O enraizamento da dominação neoliberal nas práticas cotidianas dos governados não exclui a possibilidade de recusa e de resistência.5 Importa avaliar em que medida as mobilizações sociais apontam para além desse modelo de subjetivação e em que medida elas podem levar a seu aprofundamento. Como enfatizado em O interregno e a pandemia, alguns anos após a deflagração da crise econômica mundial em 2008, uma onda global de protestos pode ser identificada, do Norte da África ao Sul da Europa, dos Estados Unidos ao Brasil. Embora alguns desses movimentos apresentassem certa ambiguidade do ponto de vista do alinhamento político, o exame etnográfico realizado por Paolo Gerbaudo deixa claro que eles apontavam para além do neoliberalismo.6 Na contramão da privatização dos espaços públicos e da delegação da coordenação social para o mercado, o “movimento das praças” visou a reinstituir espaços urbanos como locais de deliberação e coordenação democrática. Além disso, há muitas evidências de que tais movimentos convergiam na demanda pela ampliação e pela melhora da qualidade dos serviços públicos, contrariando a orientação neoliberal de transferir aos indivíduos e às famílias a responsabilidade por sua educação e por sua saúde. Ainda, a repercussão institucional dessa onda global de protestos, em vários casos, consistiu em uma renovação da esquerda no plano da política partidária, envolvendo rupturas claras com a centro-esquerda que fizera tantas concessões ao neoliberalismo.

É verdade, contudo, que esses movimentos e essa renovação à esquerda foram ofuscados pelo avanço político e eleitoral da extrema direita, nos últimos anos. Cabe, então, perguntar: esse avanço enfraquece ou alimenta a razão neoliberal? Nesse ponto, há certa ambiguidade. É indubitável que o crescimento da extrema direita ocorreu em muitos casos sobre os escombros do centro político neoliberal, recorrendo a uma retórica antissistema. Alguns elementos dessa retórica contrariam claramente o discurso neoliberal hegemônico no período anterior a 2008, como, por exemplo, os ataques ao livre comércio. Mas já se demonstrou que o neoliberalismo e o neoconservadorismo podem ser interpretados como duas faces da mesma moeda, uma reforçando a outra.7 Segundo Fraser, o próprio “modo empresarial de subjetivação” serve como ponte que une os dois discursos:

O mesmo gesto que consagra o indivíduo bom como aquele que maximiza o seu capital humano gera também como contrapartida ícones racializados de agência defeituosa e irresponsabilidade pessoal […]. Tais noções oferecem insumos fáceis para distrair com bodes expiatórios, estimulando a substituição de uma crítica estrutural-institucional de um sistema em crise por antagonismos político-identitários.8

Se essa imbricação é esperada, como explicar que o neoliberalismo tenha passado do que Fraser denominou “neoliberalismo progressista”, no auge da conversão neoliberal da social-democracia (a chamada Terceira Via), para o neoliberalismo neoconservador de parte da extrema direita atual? A resposta passa necessariamente por 2008. Quando a bolha do consumismo financiado por endividamento dos trabalhadores estourou, não foi mais possível esconder a polarização social produzida nos países do centro capitalista (especialmente no polo gerador de demanda) ao longo das décadas neoliberais. Nesse momento, a face simpática de um neoliberalismo progressista que almejava se universalizar caiu em desuso e foi substituída pela retórica agressiva da exclusão, da violência e do fanatismo. A força do modelo de subjetivação neoliberal e seu vínculo com o neoconservadorismo ficam provados pelo fato de que tal retórica sai das franjas do espaço público e logra ampliar ser apoio para uma parcela, embora minoritária, significativa da sociedade, permitindo em alguns contextos (como nos casos de Trump em 2016 e Bolsonaro em 2018) vitórias eleitorais.

Até o começo do ano, ainda era plausível supor que o voto nesses candidatos de extrema direita era essencialmente produto da precariedade econômica das grandes maiorias, cujo sofrimento havia sido canalizado em seu benefício por políticos habilidosos de extrema direita. Mas a adesão desses grupos à retórica neoconservadora seria circunstancial e poderia ser revertida sem grandes dificuldades, uma vez que ficasse clara a incapacidade da extrema direita de solucionar seus problemas. O ano de 2020 mostrou, no entanto, que a adesão a esses projetos é mais profunda do que se supunha, com Trump e Bolsonaro mantendo uma popularidade substancial em meio a crises econômicas e sanitárias profundas. Não se trata de 40% de fascistas, é sempre bom ressaltar, mas de uma consolidação imprevista de um vasto neoconservadorismo. Mike Davis, discutindo a eleição recente nos Estados Unidos, afirmou: “De repente, a América descrita pelo movimento Occupy, o povo versus a ganância do 1% mais rico, foi desmascarada como algo completamente diferente: uma maioria confusa em fase dos 40% por cento militantes e intransigentes”.9

Dardot e Laval estão certos, então, em insistir que derrotar o neoliberalismo será mais complicado do que alterar as políticas econômicas. Mas não se deve perder de vista que tal neoliberalismo neoconservador é a expressão de uma forma de dominação em crise, em que o próprio discurso já não visa à universalização, mas apenas a mobilizar uma minoria fiel para uma batalha constante. Sintomas mórbidos do interregno, para voltar às expressões gramscianas. Se a resiliência do apoio a Trump surpreende, é verdade também que a derrota de uma candidatura à reeleição à presidência dos Estados Unidos é relativamente rara. Se a resiliência do apoio a Bolsonaro surpreende, é verdade também que tal apoio é menor do que o dos presidentes anteriores, em fases equivalentes de seus primeiros mandatos. O fato de que a extrema direita, e não a esquerda, tem colhido os frutos do esvaziamento do centro político aponta para os obstáculos para a superação do neoliberalismo, mas não serve como evidência de que o neoliberalismo neoconservador representa uma forma de dominação com potencial duradouro de estabilização.

II

A segunda questão a ser analisada concerne ao Estado. Marques critica a hipótese de que o neoliberalismo pode ser superado por um novo capitalismo de Estado, argumentando que o “estímulo [trazido pela pandemia] à proteção social (…) parece ser mais a exceção do que a regra”. Esse novo capitalismo de Estado, na forma autoritária sugerida em O interregno e a pandemia, não precisa ser baseado em ampla proteção social, mas apenas em uma restrição pelo Estado do âmbito da dinâmica concorrencial. Seja como for, a resistência a vislumbrar um ação estatal para além do neoliberalismo (mesmo que em sentido regressivo) também evoca os argumentos de Dardot e Laval. Segundo eles, “[o] Estado neoliberal não é (…) um ‘instrumento’ que se possa utilizar indiferentemente para finalidades contrárias. (…) ele é uma peça da máquina que se deve combater.”10

É verdade que a transformação profunda da ação estatal e da estrutura burocrática dos Estados, após décadas de neoliberalismo, não deve ser subestimada e coloca obstáculos ao seu redirecionamento. No entanto, sem menosprezar a autonomia relativa do Estado, nos contextos em que alguma deliberação democrática subsistir, é razoável supor que potenciais transformações ideológicas na base da sociedade repercutam em transformações na lógica de ação estatal e em uma, mesmo que gradual, alteração de sua estrutura.

Outra objeção comum à hipótese do novo capitalismo de Estado, sugerida aliás pelo próprio Laval em um texto recente,11 é que tal horizonte é inviável em uma situação de crises globais e interdependência crescente das sociedades. Confunde-se, nesse caso, capitalismo de Estado com isolamento autárquico. Mesmo em pleno neoliberalismo, que relega a coordenação social à lógica competitiva do mercado, crises globais impuseram coordenação internacional. Talvez o exemplo da coordenação entre os bancos centrais para salvar os sistemas financeiros após a bancarrota do Lehman Brothers seja o caso mais emblemático.12 Assim como essa coordenação não evitou os efeitos sociais dramáticos da crise, uma coordenação internacional entre capitalismos de Estado pode também não dar conta dos efeitos mais importantes das futuras crises globais. Mas esse é outro problema. A questão é que capitalismo de Estado não é necessariamente incompatível com coordenação internacional.

A resistência a conceber uma ação estatal para além do neoliberalismo pode também representar uma universalização indevida dos casos neoliberais mais radicais, os Estados Unidos à frente. É possível argumentar que o avanço do neoliberalismo reduziu a diversidade entre as diversas sociedades e que é possível tratar o centro capitalista como uma unidade, embora diversa.13 A pandemia, no entanto, parece estar demonstrado a fragilidade desse argumento, contrastando de forma gritante os efeitos de diferentes formas de enfrentamento da crise sanitária, enraizadas em diferentes capacidades estatais. Tanto na Alemanha, quanto no Leste Asiático, o Estado provou ser um instrumento de coordenação social incomparavelmente mais eficaz (não obstante seus inúmeros problemas e as injustiças e os autoritarismos representados por algumas dessas iniciativas) do que nos Estados Unidos, para mencionar alguns exemplos.14

III

A última questão refere-se ao suposto otimismo dos meus prognósticos. Não foi apenas Marques que representou meu ensaio dessa maneira, o que sugere que, de fato, ele transmita esse tom, embora não tenha sido minha intenção. A forma de superação do neoliberalismo ainda está em disputa e as esquerdas devem disputar o sentido dessa superação sem resignação, evitando conceder uma eventual derrota antes da hora. Mas é verdade que partimos de uma situação desvantajosa e que, dentre os dois cenários que sugeri, a superação regressiva do neoliberalismo parece mais provável do que a emancipatória.

Sobre esse ponto, vale retomar o argumento de Laval, no artigo recente mencionado acima. Contra Marques, Laval diz que “[a] despeito de todo pessimismo que é legítimo manter contra as ilusões de um novo começo, há uma nota de esperança”.15 A base dessa esperança é que a pandemia, segundo ele, levou à “crise do imaginário neoliberal”, por ter revelado que “[o] princípio vital da concorrência manifesta-se, cada vez mais, como uma justificativa de sobrevivência dos mais ricos”.16 Tal crise abre duas alternativa, na visão de Laval. A primeira delas é o retorno do que ele chama de “imaginário soberano”, uma falsa superação da crise que ele caracteriza simplesmente como um “novo neoliberalismo”.17 A outra alternativa é o retorno do comum, descrito da seguinte maneira:

Aparece então a possibilidade de um outro mundo, que se fundamentaria sobre serviços públicos mais fortalecidos, mais bem respeitados e financiados, o que implicaria o estabelecimento de maior justiça social e fiscal, a redução drástica das desigualdades, o controle democrático da economia e a submissão das finanças às necessidades da sociedade.18

As duas alternativas à crise do imaginário neoliberal assemelham-se notavelmente àquelas que sugeri em O interregno e a pandemia. A diferença crucial é que Laval vislumbra apenas a superação emancipatória do neoliberalismo, argumentando que a saída regressiva do imaginário soberano não consistiria em efetiva ruptura com a razão neoliberal. Tal disjuntiva, neoliberal ou comum, parece-me politicamente questionável. A resistência a admitir uma renovação não neoliberal da dominação capitalista pode levar as esquerdas a insistirem em combater uma forma de dominação em decomposição e a subestimarem novos adversários em gestação.19 É o risco recorrente de travarmos a guerra passada, falhando em identificar corretamente as disputas do presente.