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Vivendo o trabalho subalterno

Eram quase 18h00 quando me despedi do pessoal na Escola. Conquanto fosse ainda quarta-feira, precocemente desejei um bom fim de semana para todos. Olharam-me com alguma estranheza. Então, lembrei-lhes que, nos dois dias subsequentes, eu não apareceria para trabalhar, pois estaria envolvido com minha experiência de trabalho subalterno. Fora designado para cumpri-la na Comlurb, mais especificamente na limpeza hospitalar. Por conta disso, naqueles dois dias, eu estaria no Hospital Municipal Souza Aguiar.

Era difícil esconder a ansiedade, e para descontrair disse-lhes que seria minha quarta ida ao hospital. De fato, eu já estivera lá em três outras ocasiões. Em maio de 1987, eu havia destruído a velha Brasília de meus pais, quando dormi dirigindo e colidi com o muro do presídio da Rua Frei Caneca. No Souza Aguiar, fui atendido na emergência, onde tive o queixo costurado e foi constatada a fratura da cabeça do fêmur. Puseram-me uma tração para recolocar as partes ósseas no lugar, enquanto aguardava a transferência pretendida por meus pais para o Hospital Samaritano. Lembro-me da remoção de um hospital para o outro com cinco bolsas de soro fazendo as vezes de contrapeso da tração e com meus pais assumindo e honrando o compromisso de devolvê-las ao hospital público. Regressei ao Souza Aguiar alguns anos mais tarde levando o porteiro do prédio em que morava para ser atendido, após ele cortar o braço tentando impedir que a água da chuva torrencial inundasse seu apartamento. Quando ele bateu na porta de minha residência, hesitei em oferecer a pretendida carona, pois tudo estava alagado e meu velho Opala não era, naquelas circunstâncias, muito confiável. Mesmo assim, o pânico diante do sangue que jorrava de seu braço fez-me encarar o dilúvio carioca para levá-lo ao hospital. O êxito da empreitada não impediu que, no retorno, o carro naufragasse na Avenida Presidente Vargas e de lá se recusasse a sair. Como fosse incapaz de fazê-lo funcionar, abandonei o Opala por lá, só voltando para buscá-lo no dia seguinte, quando descobri ter sido multado por estacionamento em local proibido. Pelo menos, o porteiro ficou bem e foi socorrido a tempo e a hora. Houve ainda uma terceira ida, anterior às duas narradas. Ela ocorreu em tempos imemoriais, quando era ainda criança e tive um infortúnio com o zíper da calça, o que nem vale a pena comentar.

Essa seria, portanto, minha quarta ida ao Souza Aguiar, mas em uma circunstância totalmente diferente. Afinal, eu fora designado para trabalhar, ainda que por um dia, na limpeza hospitalar. Rimos juntos das minhas histórias e pediram-me fotos. Prometi fazê-las se o meu velho celular não me deixasse na mão. Despedimo-nos sem escondermos a ansiedade: a minha por não saber o que iria vivenciar naquela experiência, a deles por escutar as improváveis narrativas de um dia de trabalho diferente.

De noite, em casa, pus-me a pesquisar sobre o Souza Aguiar. Originalmente instalado na Rua Camerino, ele foi inaugurado, em 1º de novembro de 1907, pelo prefeito Francisco Marcelino Souza Aguiar e transferido para o atual sítio na Praça da República em 17 de outubro de 1910. Foi apenas em 1955 que ele ganhou seu atual nome em homenagem ao prefeito de sua inauguração. Considerada a maior emergência pública da América Latina, o Souza Aguiar é objeto frequente de reportagens jornalísticas narrando muitas das dificuldades da saúde pública, cuja leitura fazia-me pensar na confortável situação de meu pai. De fato, eu iria trabalhar na limpeza de um hospital que contrastava enormemente com o conforto da situação de meu pai que estivera internado no Hospital Samaritano ao longo de 2016 e que, depois de duas curtas internações em fevereiro e abril, voltara ao mesmo hospital e ali se encontrava internado desde junho de 2017. Por conta disso, nos últimos meses, eu havia interagido enormemente com equipes de enfermagem e com o pessoal da limpeza, mas algo me dizia que eu iria encontrar uma situação absolutamente distinta. Definitivamente, a experiência hospitalar privada não servia como parâmetro para a experiência que eu estava prestes a viver.

Eu transbordava de expectativas, indagando-me continuamente o que aprenderia com aquela experiência, quando resolvi que o melhor consistia em deixar as coisas acontecerem e viver os dois próximos dias da forma mais natural possível. Eu havia sido designado para trabalhar como gari na limpeza hospitalar no Souza Aguiar e o melhor a fazer consistia em assumir esse papel plenamente, sem muito me perguntar sobre o que me esperava.

Meu treinamento no dia seguinte foi absolutamente teórico, mas ainda assim estava exausto quando pousei minhas coisas na mesa de casa. O dia fora, sem dúvida, longo e intenso, marcado por grande ansiedade desde o momento em que o despertador tocou às sete horas da manhã. Eu havia me programado para ir de metrô, usando o ônibus de integração para chegar até Botafogo. Entretanto, um compromisso em Santa Teresa às 15h00 bagunçou meu planejamento. Optei por ir de carro até o Rio Comprido, deixando-o na garagem da residência de meu pai. Esperava assim não atrasar para meu compromisso vespertino. De lá, segui para a estação Estácio do metrô rumo à Central do Brasil. Eram 08h30 quando saí na Avenida Presidente Vargas em frente à Praça da República, que contornei com passos modorrentos, como se quisesse fazer desaparecer a ansiedade ou saborear a expectativa da chegada ao hospital. No fundo, não conseguia realmente definir qual era o sentimento que me invadia naquele momento.

Passei pelo Arquivo Nacional, pela Rádio MEC, pela Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Odontoclínica Central do Exército, onde antes funcionava uma seção administrativa na qual eu havia efetuado meu alistamento militar. Enquanto tentava decidir se aquela era uma boa ou má recordação, cheguei à entrada do Souza Aguiar. Perguntei ao segurança da guarida onde ficava a gerência da Comlurb e, como ele não sabia a resposta, encaminhou-me para a recepção, sem que eu lá conseguisse chegar, pois fui redirecionado pelo vigilante que estava na porta de entrada:

— “A gerência da Comlurb fica atrás do Santander, contornando a Capela.”

Atravessei o pequeno estacionamento de carros e cruzei com dois senhores que pareciam estar vindo da Comlurb, um deles vestido com um colete laranja. Poucos metros depois, cheguei à gerência, onde fui recepcionado pela Arlete. Expliquei-lhe que estava procurando o gerente Gonzaga ao que ela replicou dizendo que eu havia provavelmente cruzado com ele a caminho do auditório. Prosseguiu dizendo que alguém me levaria lá, mas ofereceu-me antes um café ou água. Hesitei e, sem muita convicção, aceitei a gentileza. Ela então me conduziu pela sala até uma copa, onde outros tomavam café e comiam pão com mortadela. Arlete estendeu-me o copo de plástico e indagou:

— “Açúcar ou gotinhas?”

Repliquei que preferia puro, amargo. Nesse momento, Cledir, que em seguida me conduziria ao auditório, exclamou:

— “Nossa, sem nada? Impossível! Não dá para beber.”

Arlete levantou o braço fingindo flexionar o bíceps e disse baixinho que eu devia ser forte…

Enquanto tomava meu café, passei os olhos ao redor da sala, cujo ambiente era fortemente acolhedor. Ao lado da mesa, que comportava cerca de oito pessoas ao seu redor, havia dois murais de informes denominados Radar Comlurb, com vários cartazes remetendo à questão da segurança do trabalho, além de outros lembrando que 16 de maio é o dia do gari e enfatizando o orgulho profissional inscrito na #somos­todos­garis. Não demorei a terminar o café e, assim que me levantei, Arlete pediu para Cledir levar-me ao auditório. Caminhamos alguns passos até a Capela, quando Cledir perguntou-me:

— “Você é da Comlurb?”

Balbuciei um som gutural em resposta, que nem eu mesmo saberia dizer se aquilo era um sim ou não. De qualquer forma, ela prosseguiu caminhando como se a resposta não fosse importante, pois, naquela circunstância, eu deveria ser da Comlurb. Chegamos ao meu ponto de barragem, o vigilante da recepção. Cledir disse-lhe que estava me levando ao auditório e, sem fazer maiores objeções, perguntou pelo meu crachá. Como não tínhamos um, ele pediu que eu passasse pela recepção e fizesse um provisório. Não foi necessário nem mesmo um minuto para sua confecção. Na verdade, o crachá provisório era um adesivo, no qual a recepcionista apenas inseriu a data, sem me pedir qualquer documento de identidade.

Devidamente credenciado, vi outra funcionária da Comlurb se aproximar e cumprimentar Cledir. Quem se aproximara era Ligia, que, depois de um breve cumprimento, dispensou Cledir dizendo que se ocuparia de me conduzir ao auditório. Em silêncio, subimos as escadas e entramos no auditório, onde me esperavam os gerentes Robinson e Gonzaga. Cumprimentamo-nos e, em seguida, orientaram Ligia a levar-me ao espaço da gerência, onde poderia tomar um café e trocar de roupa. Optei por não dizer que lá já estivera e deixei-me conduzir de volta.

De volta ao ponto de partida, sou novamente recepcionado por Arlete que me informa sobre a presença de Silvana, que me esperava na copa. Dirijo-me para lá e quando chego travo finalmente conhecimento com aquela que tinha sido a interlocutora da Escola ao longo das últimas semanas. Quando se dá conta que eu já havia estado ali e estava regressando do auditório, Silvana diz que agora o comentário do segurança da guarida faz sentido. Faço cara de desentendido e ela, rindo, explica que, ao chegar, perguntou-lhe onde ficava a gerência da Comlurb, ao que ele respondeu que aquela era a segunda vez que lhe faziam essa mesma pergunta. Decididamente, havia muita gente indo para a Comlurb naquela manhã. Silvana ficou inquieta com a possibilidade de eu ter chegado antes dela, o que contrariava seus planos de receber-me. Rimos mais um pouco e falamos sobre o treinamento da véspera feito pela Anelise e Marcelo Augusto. Nesse momento, Arlete entregou-me o uniforme indicando onde ficava o banheiro para que eu pudesse me trocar. Tranquei-me e comecei a trocar de roupa. Embora a calça fosse um pouco apertada, como a cintura tinha um ajuste de elástico, ela não se transformava em um problema. Como não havia camisa G, pedi uma GG que, surpreendentemente, ficara ótima. Mas, quando pus a bota, dei-me conta que havia pedido um número grande demais para mim e que meu pé ficava sambando dentro do calçado. Aquilo ia ser um suplício, porém não havia o que fazer. Olhei-me no espelho e perguntei-me qual seria o impacto do uniforme. Um turbilhão de possibilidades passava pela minha cabeça, enquanto guardava meus pertences em um saco plástico de supermercado para, em seguida, abrir a porta do banheiro. Arlete recebeu-me com um sorriso e disse-me:

— “Agora, você é um laranjinha!”

Era mesmo?

Arlete acompanhou-nos até o auditório. Mais uma vez, na recepção, instaurou-se o imbróglio do crachá. De uniforme e com meu adesivo de provisório, não fui importunado pelo vigilante. Silvana, entretanto, foi direcionada para a recepcionista, mas, antes que fosse atendida, sacou de sua bolsa seu crachá profissional. Ela estava agora devidamente identificada e podia prosseguir. Resolutos, subimos até o auditório, onde fomos recepcionados por Robinson e Gonzaga. Arlete verificou que havia água à disposição para o treinamento e não tardou em regressar para o seu trabalho. Ficamos os quatro no imenso auditório: eu, Silvana, Robinson e Gonzaga.

Robinson apresentou-se dizendo que tinha 27 anos de Comlurb. Na limpeza hospitalar, tinham sido quatorze anos de Souza Aguiar, nove anos de Salgado Filho, três meses de Lourenço Jorge e três anos de Miguel Couto antes de regressar ao posto do Souza Aguiar no qual estava atualmente lotado. De colete, mais que experiente, ele parecia portentoso e imponente. Gonzaga, por sua vez, não estava lotado no Souza Aguiar, mas no Salgado Filho, onde trabalhava havia sete anos. Ele viera expressamente para meu treinamento e, eu aprenderia um pouco mais tarde, seria o gerente do meu dia de trabalho, pois Robinson havia sido requisitado para alguma coisa na Barra da Tijuca. Não me pediram uma apresentação formal, mas Silvana sugeriu que eu explicasse o projeto e as razões de minha presença ali.

Resolvi não me perder em explicações teóricas e contei o episódio do Fernando não sendo reconhecido pelos colegas ao por eles passar uniformizado como gari, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Era um bom atalho para falar sobre invisibilidade pública e sobre a percepção do Outro. Gonzaga reagiu dizendo que aquilo seria uma forma velada de discriminação. Aquiesci sem estender a conversa, pois queria começar o treinamento.

Nos primeiros minutos do treinamento, havia uma espécie de ruído na linha, pois ambos — Gonzaga e Robinson — dirigiam-se a mim chamando-me de senhor. Pensei em interromper e pedir-lhes que me chamassem de Roberto e que utilizassem o pronome você, mas fiquei quieto. Não tardou cinco minutos para que eles fizessem a transição, a formalidade do senhor desaparecesse e o você informal emergisse como forma de tratamento. Perguntei-me qual teria sido o impacto do uniforme naquela transição. Quanto ele teria contribuído para desmaterializar o juiz do trabalho — ali presente — e transformar-me em um simples aprendiz das técnicas de limpeza hospitalar?

O treinamento consistia em uma apresentação feita pelo Gonzaga a partir de um PowerPoint que reproduzia o Manual Técnico de Limpeza da Comlurb. Como eu e Fernando tínhamos recebido previamente a mesma apresentação, o ineditismo do treinamento encontrava-se muito mais nas explicações que Gonzaga oferecia sobre o trabalho que eu faria no dia seguinte. Nesse sentido, foram bons minutos nas lâminas iniciais, discorrendo sobre a missão, a visão e os princípios relacionados com a atividade de limpeza. Em seguida, ele começou a explicar as técnicas de limpeza hospitalar. Basicamente, três a aprender: a varredura úmida (e a retirada de pó das superfícies), o ensaboar e, por fim, o enxaguar e secar. Para a primeira, consoante a técnica dos dois baldes, utilizava-se pano úmido e rodo, além de pá, fazendo a varredura em um mesmo sentido, dos cantos para o centro, e sem fricção. Enquanto a varredura úmida tinha por objetivo remover o pó com a vantagem de não levantar poeira, o ensaboar tem como finalidade remover toda a sujeira. Diferentemente da varredura úmida — que utiliza os dois baldes com água, com um deles funcionando como tanque — o ensaboar emprega um dos baldes com detergente e outro com água. Por fim, o enxaguar e secar — que tem como finalidade remover todo o detergente e secar toda a superfície — também utiliza os mesmos instrumentos de trabalho, preenchendo os dois baldes com água. Durante todo o trabalho é exigido o uso de luvas, alternando-se entre uma de cor amarela para os mobiliários e outra de cor verde para superfícies onde a sujidade é maior. Durante o treinamento, Gonzaga enfatizou enormemente a dificuldade de realização da limpeza concorrente, isto é, aquela que concorre com a presença de outras pessoas durante sua consumação. Para equacionar este problema, ele indicou ser importante a sinalização do trabalho, a divisão do espaço durante sua realização para que não fique prejudicada a circulação dentro do hospital e a urbanidade com as pessoas.

Gonzaga descreveu o hospital como um espaço psicológico complexo, onde as interações nem sempre são tranquilas. Dessa forma, mencionou conflitos com a enfermagem, referenciando enfermeiros que se sentem donos do estabelecimento, bem como do trabalho realizado pelo pessoal da limpeza. Para ilustrar, disse já ter ouvido alguém da enfermagem dizer-lhe um pouco amigável Vocês trabalham para mim. Na sua narrativa, essa percepção de propriedade amplifica o que já é por si só complicado no âmbito de um hospital público: falta de material, falta de medicamento, momentos tensos. No caso específico do Rio de Janeiro, o hospital também funcionaria como um reflexo da violência da cidade, exigindo preparação para lidar com situações extremas: pacientes feridos, corpos dilacerados, parentes desinformados e angustiados, balas perdidas. Não raro, disse ele, há pacientes sob forte custódia policial. Eventualmente, faz-se também necessário administrar eventuais tensões com pessoas do público, sempre propensas a estimar que seus problemas sejam mais urgentes que os demais.

Ao cabo, o gari invisível das ruas torna-se quase onipresente nessa teia complexa de relações hospitalares. Ouvindo Gonzaga, dei-me conta que a literatura da sociologia das profissões que trata das relações de poder dentro do hospital investiga competições profissionais em torno do ato médico — envolvendo médicos e enfermeiros — bem como processos decisórios que contrapõem escolhas clínicas e orientações administrativas, mas não empresta maior importância ao pessoal da limpeza. Não se está aqui a insinuar que estes participem da definição do ato médico ou das decisões médico-administrativas, mas a especular sobre o eventual impacto que eles têm nesses processos em virtude de sua participação nas rotinas da vida hospitalar.

No hospital, a produção de lixo é intensa e contínua. Produz-se muito lixo ordinário, ou seja, resíduos sólidos urbanos, mas produz-se também lixo biológico orgânico. Os riscos de contaminação são enormes, assim como as possibilidades de ter que se lidar com sangue, excrementos e secreções. No material do treinamento, embora houvesse poucas fotos e a maioria delas fosse de baldes e empregados efetuando a varredura, destacava-se uma foto de uma grande poça de sangue utilizada para exemplificar a técnica de desinfecção de matéria orgânica. Foi difícil esconder minha ansiedade diante da possibilidade de ter que lidar com tal circunstância e, querendo disfarçar, timidamente, perguntei sobre coleta seletiva e reciclagem no hospital. Gonzaga respondeu que a existência do debate não fora ainda suficiente para transformar em realidade essa circunstância e voltou a falar do lixo biológico: cuspe, secreção, vômito, escarro, sangue.

Meu desconforto deve ter ficado evidente, mas meus instrutores procuraram me tranquilizar dizendo que meu dia no hospital não envolveria passagem pelo necrotério ou pelo setor de queimados e, provavelmente, não reproduziria as dificuldades iniciais por ambos enfrentadas.

O ambiente distendeu-se, estabelecendo-se entre eles uma competição velada sobre quem teria enfrentado a tarefa inicial mais difícil. Gonzaga contou-nos seus primeiros dias no Centro de Tratamento e Terapia Intensiva (CTI), enquanto Robinson descreveu a primeira vez em que se viu obrigado a limpar vômito. Para realçar a dificuldade da tarefa, enfatizou que a técnica naquela época não envolvia rodo e pá, mas consistia em reunir o material com pano da borda para o centro. Empolgada com as narrativas, Silvana acrescentou que conhecera aquelas dificuldades no laboratório anatômico de seu curso universitário. Como não me competia arbitrar aquela disputa silenciosa, disse-lhes que esperava ter apenas e não mais que um dia calmo de limpeza no hospital.

Que tipo de limpeza eu faria? Com quem eu trabalharia? Nada disso foi-me revelado no treinamento. Quando quis saber, Gonzaga, enfatizando que todos devem ser capazes de fazer tudo, descreveu uma alocação naturalizada de papéis, consoante a qual o gari minucioso ficaria no CTI ou no centro cirúrgico; o gari bruto, na varrição externa; e o gari discreto, na enfermagem. Para descontrair, contou a confusão que se estabelecera na pediatria por conta da presença de um gari formoso e bonito. Percebi que nada ganharia insistindo em saber minha alocação e deixei que ela se transformasse em surpresa.

Roberto Torterolli Junior, Sem título, óleo sobre tela, 240×150 cm, 2019.

Era pouco mais de meio dia e meia quando, no encerramento de treinamento, eles me propuseram uma visita do hospital. Disse-lhes que adoraria fazer a visita, mas seria interessante que ela fosse efetuada com a presença do Fernando, que fora dispensado do treinamento por conta de sua larga experiência na varrição pública. Despedimo-nos com o Robinson explicando que não estaria presente no dia seguinte, pois fora chamado para trabalhar em algum evento preparatório do festival Rock in Rio. Meu dia no hospital dar-se-ia, portanto, sob a supervisão de Gonzaga. Quando ambos sugeriram que fizéssemos uma foto, Silvana intercedeu pedindo que ela não fosse divulgada. Ninguém se opôs e, com meu celular, registramos o término do treinamento.

Dificilmente eu poderia dizer que estava pronto para o trabalho do dia seguinte, mas, ao menos, eu tinha como redimensionar minhas expectativas e imaginar as dificuldades do dia seguinte. Eram pouco menos que uma da tarde quando cruzei o portão de entrada. Eu havia romantizado minha saída, imaginando que entraria no Campo de Santana e sentaria em um de seus bancos para reler meu diário de campo e, com um olhar perdido no vazio, refletir sobre o que seria meu dia de trabalho subalterno. Nada disso ocorreu, contudo. Na companhia de Silvana, cortei apressadamente o Campo de Santana e, no Saara, saciamos nossa fome com um bom prato de comida libanesa. Ao fim, fiz minha segunda despedida do dia, não sem antes tentar explicar para Silvana porque havíamos escolhido a designação de subalterno para o projeto. No metrô, tomamos direções opostas: ela para Botafogo, eu para o Estácio, onde recuperei meu carro para voltar para casa, não sem antes cumprir meu compromisso em Santa Teresa.

Quando em casa cheguei, às cinco da tarde, estava exausto. Não havia feito nenhum trabalho braçal, mas sentia-me fraco, com as pernas pesadas e a emoção à flor da pele. Pensei na rotina do dia seguinte e tomei algumas decisões práticas: iria de carro até o Rio Comprido de novo, levaria marmita para o almoço e usaria duas meias para diminuir o desconforto da bota. Ansioso, fui dormir às 23h00.

Eram 5h11 quando o despertador tocou. Pavlovianamente esbarrei no botão snooze para prolongar meu sono por mais nove minutos. 05h20. O alarme volta a tocar e, resolutamente, levanto-me. Faço minha higiene pessoal olhando para o relógio, com medo de me atrasar. Verifico minha mochila duas vezes, pego minha marmita e deixo para trás meus adornos: nada de anel e relógio de pulso. 05h50. De carro, sigo para o Rio Comprido, onde chego muito mais rapidamente do que havia imaginado. Deixo o carro na garagem de meu pai e tomo o caminho da estação Estácio do metrô. Na estação da Central, tomo a saída Praça da República e margeio os mesmos prédios da véspera. Não é uma caminhada refletida, mas quase inercial, pois sei que devo chegar trinta minutos mais cedo para tomar café. Chego à porta às 06h30, mas nela não encontro o Fernando. Olho minhas mensagens e vejo seu Whatsapp dizendo que irá se atrasar. O motorista do Uber se perdeu. Resolvo entrar para aproveitar o café.

06h35. Dou bom dia para Arlete e pergunto por Gonzaga. Ela responde que ainda não chegou. Indago se posso me trocar no banheiro. Ela hesita um instante, mas responde que sim. Provavelmente teria respondido não, mas a referência prévia ao gerente talvez seja a causa de sua hesitação. Na verdade, só mais tarde é que me dou conta de que o banheiro era da gerência e que os garis devem utilizar o vestiário. Erro óbvio, mas que ela deve ter creditado à minha inexperiência.

Cinco minutos depois emerjo de laranjinha, mas ela não me chama assim dessa vez. Olho ao redor e dou-me conta de que todos portam um uniforme azul, enquanto eu, Fernando e mais dois ou três garis usamos o modelo laranja. Para os dois estranhos até fazia sentido, mas o que explicaria a diferença para os demais?

Deixo minhas coisas no cabideiro e sigo para a copa, onde umas dez pessoas tomam café. Depois de colocar minha marmita em uma das prateleiras da geladeira, sento-me à mesa, onde um gari me oferece café. Sirvo-me um longo copo, sem açúcar ou gotinhas. O gari oferece-me pão e manteiga. Café e pão com manteiga compõem o meu desjejum. Permanecemos quietos, construindo uma cumplicidade silenciosa. Nenhum de nós ousa romper o silêncio da mesa, como se estivéssemos nos preparando para uma partida de xadrez.

06h55. Os retardatários correm para bater o cartão de ponto. 07h00. Enche-se a sala, quando um gari faz a leitura do “minuto de segurança”. Nele, uma recomendação qualquer de higiene e segurança é repetida para todo o grupo. Em seguida, Gonzaga nos apresenta e diz que passaremos o dia em treinamento com a equipe. Enquanto todos saem para a labuta, fico esperando minhas orientações e observo, na sala ao lado, Fernando preparando-se para o treinamento que não tivera na véspera. Olho ao redor e dou-me conta de que não estou sozinho. Ao meu lado, ainda tomando café, está Beatriz, que também está vestida com uniforme laranja. Ela pergunta de onde venho. Não entendo a pergunta, mas respondo que sou novo na empresa. Ela diz que está voltando de licença, pois operou o ombro, e que trabalha em uma escola no bairro de Olaria. Pergunto por que não voltou para lá. Ela diz que é comum que o retorno de licença se faça pelo hospital. Pergunto ainda qual trabalho ela prefere e ela me replica que na escola tem horário, mas tem mais tempo livre e pode tomar café com calma, enquanto que, no hospital, o tempo é mais controlado. Na conversa, intuo que a varrição na rua é mais pesada, mas a liberdade é muito maior, ou seja, que a alocação entre rua, escola e hospital estabelece uma relação diretamente proporcional entre liberdade e penosidade no trabalho. Ela se despede quase ao mesmo tempo em que Gonzaga aproxima-se acompanhado do encarregado David, que me estende um avental. Eles me apresentam Fátima, que será minha companheira de trabalho. Com ela, está a encarregada Lindalva, que nos acompanha ao depósito, onde recebo duas luvas, ambas amarelas.

Antes que dissesse algo, sou advertido de que a luva verde está em falta e que aqueles são os dois últimos pares de tamanho G. Que eu cuidasse bem deles era a recomendação explícita do almoxarifado, pois não haveria outra em caso de perda ou inutilização. Além disso, fazia-se necessário diferenciar as luvas, razão pela qual fui instado a escrever meu nome em uma delas com a indicação (de limpeza) pesada. Despedimo-nos de Lindalva e rumamos para nossa unidade.

Enquanto caminhávamos pelo corredor do subsolo do hospital, Fátima indagou-me quando eu havia feito o concurso para a Comlurb. Balbuciei um grunhido e, esperando a réplica, calei-me. Fez-se um silêncio de segundos que, para mim, pareceram uma eternidade. Fátima optou por outro caminho para obter a informação e perguntou-me quanto tempo eu havia esperado para ser chamado para o trabalho. De novo, fui para as cordas, sem saber o que responder. Escolhi uma resposta genérica, dizendo que tinha sido muito tempo. Quanto ela já armava a terceira pergunta, interrompemos a sabatina para dizer bom dia aos demais passageiros do elevador que nos conduziria até o quarto andar, onde trabalharíamos na unidade coronariana.

Na saída do elevador, ao cruzarmos com dois policiais militares fortemente armados, o assunto concurso parecia extinto. Fátima ficou mais interessada em dizer-me que provavelmente havia algum bandido na área. Passamos por eles fazendo um leve aceno de cabeça. Percorremos um longo corredor, que terminava no meio de um segundo longo corredor. Para a esquerda, ficava a unidade coronariana e, para a direita, o setor de urologia. Viramos à esquerda e caminhamos até o final do corredor na coronariana. No fim, ficava a área de expurgo, que seria nossa base, o local onde ficava nosso material de trabalho.

Esperando por nós estava Mauro, que se ocupava da urologia e cuja área de expurgo ficava na outra extremidade do corredor. Fátima fez nossas apresentações e, em seguida, olhamos nossa programação. Como era sexta- feira, o trabalho deveria começar pelo setor de desinfecção. Nele trabalhava Florisbela, que nos encontrou no meio do corredor. Mais uma vez, Fátima ocupou-se das apresentações. Florisbela estendeu-me apenas um dedo para cumprimentarmo-nos e, pedindo desculpas, explicou que não podia abrir a mão, pois estava carregando seu remédio. Mauro não perdeu tempo e brincou:

— “Ainda tomando anticoncepcional?”

Florisbela, que é uma senhora de mais idade, lançou um olhar de repreensão em direção a Mauro, mas não replicou e todos terminaram por rir silenciosamente. Entramos no setor de desinfecção e, subitamente, deu-se uma desaceleração do grupo. Perguntei, sem indicar um destinatário específico, qual era o problema. Fátima e Florisbela explicaram-me que, entre os garis, havia aqueles que cumpriam horário diário de 07h00 às 16h48 e os que trabalhavam em escala 12×36, enquanto o pessoal do hospital rodava na escala 12×60. Essa distinção fazia com que as equipes só se cruzassem episodicamente, em ciclos relativamente longos. O incômodo noticiado revelava uma relação tensa entre a equipe da limpeza e os funcionários do hospital daquele dia. Fátima disse-me que desejar bom dia era uma regra de boa educação, mas que eu não estranhasse caso a equipe do hospital não me respondesse. Em seguida, arrematou dizendo:

— “Se a gente deixar, (a gente) vira empregada doméstica.”

O incômodo era nítido, quando começamos o trabalho da primeira sala. Como era para fazer uma limpeza terminativa, enquanto Fátima explicava-me o trabalho, Florisbela começou a ensaboar o chão da sala. Em seguida, teve início o enxaguar, o que produziu uma razoável quantidade de água. Com a sala empoçada, entregaram-me o rodo para que eu fizesse a secagem. Em segundos, dei-me conta de que a sala não tinha ralo e que o recolhimento da água deveria ser efetuado com a pá. Desnecessário dizer que me acometeu, então, uma enorme ansiedade, pois aquela me parecia uma tarefa quase impossível. Embora eu tentasse trazer a água para dentro da pá, eu tinha a sensação de estar espalhando-a cada vez mais. Reconhecer meu fracasso era uma questão de tempo. Fátima, sempre ela, veio em meu socorro e disse-me para ficar calmo.

— “Ninguém aprende tudo no primeiro dia”, disse-me ela.

Com poucas e rápidas estocadas, ela recolheu o restante da água para que eu, em seguida, secasse o chão.

Passamos para a segunda sala, onde era efetuada a esterilização do material cirúrgico. De pronto, pedi para fazer sua ensaboadura, o que me permitiu constatar que ali tampouco havia ralo. Mesmo assim, enchi-me de coragem e prossegui enxaguando e secando o chão. Ao final, olhei para Fátima implorando por uma boa avaliação. Ela consentiu dizendo que eu poderia melhorar, mas que já era um bom começo, proporcionando-me uma satisfação difícil de descrever. Estávamos os quatro na porta da sala retirando os sacos de lixo, quando um funcionário do setor de esterilização saiu pedindo que abríssemos o lixo. Em poucos segundos, ele retirou do saco uma garrafa plástica de um litro de detergente enzimático. Percebendo nosso espanto, ele explicou que o produto estava agora vindo em embalagem de cinco litros, o que, por gerar uma percepção de bonança, acarretava em um maior desperdício do material. Ou seja, o uso reiterado da garrafa de um litro geraria mais cautela nos seus usuários e, por via de consequência, proporcionaria alguma economia. Fizemos um sinal de concordância e dirigimo-nos para a copa, próxima etapa da limpeza.

Caminhamos poucos metros e paramos os quatro diante da entrada. Dentro, os funcionários do hospital conversavam animadamente, discutindo a reforma trabalhista e sem dar qualquer evidência de que esvaziariam a sala nos próximos minutos. Mauro fez um muxoxo resignado, enquanto Fátima perguntava-se, em voz alta, se deveriam deixar a limpeza para mais tarde. O incômodo ampliava-se com o distanciamento dos funcionários, que continuavam a interagir como se não estivéssemos ali. Quando lhes perguntei se não podíamos pedir que se retirassem da sala, responderam-me em uníssono que eu ouviria uma resposta ríspida, sugerindo que eu me colocasse no meu lugar, o que faria com que me aborrecesse, sem sequer conseguir que eles dali saíssem. Fátima orientou-nos a deixar a copa para depois, lançando no relatório a impossibilidade de acesso. Caso possível, Florisbela faria a limpeza sozinha; caso contrário, voltaríamos depois do almoço.

Deixamos o setor de desinfecção e, voltando para nosso corredor, Fátima voltou a explicar a divisão entre as unidades coronariana e de urologia. De repente, ela parou e perguntou-se em voz alta como me explicar que tipo de problema tinham os pacientes da urologia. Com um sorriso tímido, ela orientou-me a olhar um cartaz na parede que trazia diferentes fotos de pênis e, em seguida, perguntou-me se eu havia entendido. Repliquei que sim, desconversando. Rumamos para o expurgo da urologia, onde ela e Mauro apresentaram-me Débora. Enquanto nos apresentávamos, Fátima pediu licença para ir ao banheiro. Quando ela reapareceu no corredor, diante do olhar de reprovação por conta de sua demora, ela deu início a um escatológico papo sobre constipação e necessidades fisiológicas, que, felizmente, foi rapidamente interrompido pela sugestão de retomarmos o trabalho. Dessa forma, despedimo-nos dos dois e dirigimo-nos para nossa área de expurgo, onde ela pôs-se a explicar-me o horário do almoço, quando eu ficaria com Débora, já que ela precisaria ausentar-se para fazer um exame médico.

Ela aproveitou para contar-me o caso de Débora, que havia sido dispensada supostamente por justa causa em decorrência de excesso de atestados médicos. Como eu não estivesse entendendo, ela explicou-me que a colega tinha um filho especial — autista, enfatizou — e que, por conta disso, ela deveria acompanhá-lo ao médico duas, três vezes por semana. Ressaltando que excesso de atestado resulta mesmo em dispensa, ela disse que teria faltado compreensão por parte do gerente com a situação de Débora, que precisou entrar na justiça. O processo demorou seis anos. Mas, ao final, a empresa teve que trazer ela de volta e, o mais importante, com a mesma matrícula, além de pagar todos os atrasados e indenização. Dei-me conta que, sem perceber, ela estava falando do meu trabalho de juiz. Disse-me ela, em seguida, que, só de tíquete-refeição, Débora teria recebido 35 mil reais e que o valor mensal era de 690 reais. Matematicamente, a conta não fechava, mas optei por nada perguntar. Talvez devesse, pois, com aquela informação, a conversa tomou um rumo difícil para mim com ela indagando-me se eu sabia o que ganhávamos. Respondi enumerando o que me parecia óbvio: salário, auxílio alimentação e vale transporte. Ela replicou, dizendo que eu havia esquecido o plano de saúde e o plano dentário, e que eu devia ter assinado tudo isso na admissão. Como eu disse que não havia assinado esses documentos, ela perguntou-me se eu tinha assinado meu contrato de trabalho em Botafogo. Tentei desconversar dizendo que havia passado em Botafogo, mas não lembrava o que tinha assinado. Ela insistiu:

— “Mas sua carteira foi assinada?”

Fiz uma cara abobalhada e antes que dissesse alguma coisa, ela perguntou qual seria minha matrícula. Como eu não soubesse responder, ela perguntou pelo meu crachá. Repliquei dizendo que, na véspera, recebera um provisório, em forma de adesivo, do hospital. Ela hesitou um pouco e disse não estar entendendo nada, pois, sem contrato, assinatura, matrícula ou crachá, eu não poderia estar trabalhando ali com ela. Ela foi incisiva:

— “Deus me livre, mas, vamos supor, que você tenha um acidente grave aqui, como é que fica? Quem vai ser responsável?”

Tentei argumentar que eu havia assinado um termo de responsabilidade. Ela não largou o osso e perguntou-me se eu tinha assistido ao treinamento técnico. Disse-lhe que sim, que havia assistido na véspera no próprio hospital.

— “Não, disse-me ela, estou perguntando sobre o treinamento na Tijuca, na Major Ávila.”

Meio perdido com o bombardeio de perguntas e totalmente embananado para oferecer respostas, quando já estava pronto para revelar minha condição, fui salvo por Gonzaga e David, que se aproximavam na companhia de Fernando. Vieram entregar meu crachá provisório: Roberto da Silva, Temporário. Eles perguntaram se estava tudo bem, e como eu estava me saindo na limpeza. Fátima descreveu como tinha sido o trabalho na desinfecção e recapitulamos as regras de varredura úmida, falamos sobre a ensaboadura e, por fim, recapitulamos como enxaguar e secar. Recebi novas orientações sobre as luvas e, enquanto os três afastavam-se, aprontamo-nos para começar a limpeza das enfermarias.

Começamos pelo quarto 309. Um cômodo masculino, com dois leitos, cujos ocupantes não interagiram conosco. Na janela, havia um monitor que reproduzia um canal de televisão. Enquanto Fátima perguntava o que eu queria fazer, passou por nós a chefe da enfermagem — Rebeca — que nos dirigiu um simpático bom dia. Fátima fez questão de dizer que era o meu primeiro dia na Comlurb, ao que Rebeca simpaticamente respondeu desejando-me sorte.

Optei pela limpeza do mobiliário e deparei-me com a primeira dificuldade: as mesas de refeição dos pacientes tinham bordas elevadas, que retinham farelos e migalhas, tornando impossível uma limpeza adequada. Fátima disse que eram antigas, e que as mais novas não tinham esse problema. Limpei como pude as mesas, o beiral da janela, alguns poucos móveis, enquanto ela fazia a varredura úmida do chão. Quando chegamos ao banheiro, Fátima começou a explicar a importância de tirar a gordura decorrente do uso, a cautela com o papel higiênico (que não podia molhar) e a necessidade de limpar o rejunte dos azulejos. Dividimos a limpeza: ela na parte relativa à luva amarela, e eu assumindo a limpeza pesada da luva verde. Não me recordo de trocar uma única palavra com os pacientes, que permaneciam inertes diante de nossa presença.

Episodicamente conversava com Fátima, que, vendo-me atrapalhado com a contínua troca de luvas, dizia para eu não ficar nervoso e que “primeiro dia era assim mesmo”. Quando ela perguntou se eu sabia o que iria encontrar ao ser designado para trabalhar no hospital, repliquei dizendo que não tinha pensado no assunto, pois achava que seria alocado na varrição de rua. Ela disse, então, que seu treinamento inicial fora na rua, embora já soubesse que trabalharia no hospital. Entabulamos uma conversa sobre os locais de trabalho: hospital, escola e rua. Ela explicou que alguns gostam de escola, onde o “encarregado não fica pegando no pé, o que seria uma bobagem, pois chefe só pega no pé se você tiver fazendo besteira”.

Nesse instante, entrou no quarto um médico que não nos cumprimentou e, dirigindo-se a um dos pacientes, informou-o que ele receberia alta naquele dia. Do mesmo modo que entrou, ele saiu do quarto sem trocar uma única palavra com qualquer outra pessoa. Na porta, cruzou com Lindalva (nossa encarregada), que veio verificar se tudo estava correndo bem. Ela explicou para Fátima que nós deveríamos descer juntos para o almoço. Fátima perguntou-me se eu havia trazido marmita, ao que respondi afirmativamente:

— “Está na geladeira.”

Ela indagou se na gaveta ou na prateleira. Disse-lhe que tinha deixado na prateleira do meio. Ela retrucou:

— “Quando descermos, sua marmita estará na estufa.”

O código para o almoço era simples: quem quisesse que a marmita fosse posta para esquentar mais cedo na estufa, devia deixá-la nas prateleiras da geladeira; quem prefere esquentar a comida no forno de micro-ondas, deve deixá-la na gaveta. Registrei a orientação, torcendo para que o pote de plástico com minha salada não tivesse ido para a estufa, pois ele certamente derreteria com o calor.

Retomamos a limpeza concentrando-nos no banheiro. Comecei pela pia, e prossegui com os azulejos. Fátima perguntou-me como eu faria para limpar a parte alta da parede. Olhei espantado, e ela imediatamente replicou que eu não precisava ficar nervoso. Calmamente, explicou que precisávamos de escada para fazer a limpeza da parte alta, mas que como elas não eram fornecidas, devíamos fazer a limpeza até onde o braço alcançava.

— “Imagina você. Só aqui no nosso andar seriam quatro escadas!”

Não saber as respostas deixava-me ansioso e, quando disse isso, ela replicou:

— “Nada se aprende em um único dia, hoje ou amanhã, mas tudo se aprende com o tempo. Eu estou fazendo curso para encarregado, mas não sei tudo. O mais importante — quando a gente não sabe algo — é perguntar como fazer.”

Reclamei das luvas e ela me deu uma aula sobre como calçá-las e descalçá-las calmamente. Reiterou o pedido para que eu não ficasse nervoso. Depois de explicar-me que, ao fazer a limpeza, a primeira coisa que eu deveria proteger era minha coluna (a fim de evitar a escoliose), Fátima redirecionou nossa conversa para um velho assunto, perguntando-me por que razão eu havia feito concurso para a Comlurb. Disse que estava procurando emprego como todo mundo, e repliquei perguntando por que ela havia feito o concurso. A resposta não poderia ser mais objetiva:

— “Eu estava desempregada.”

Ela prosseguiu dizendo que a Comlurb não era ruim como empregadora e contou-me que, diferentemente dos empregados homens, ganhava auxílio-creche. Tentei não prolongar aquela discussão, fazendo perguntas sobre as técnicas de limpeza, indagando se naquele momento eu precisava trocar as luvas, que me incomodavam enormemente, pois eu estava suando barbaridades nas mãos.

Repassamos as etapas da limpeza para ver se tudo estava feito e, ao constatar que havíamos realmente concluído o primeiro quarto, retornamos ao expurgo para limpar os panos e trocar a água dos baldes. Em seguida, ocupamo-nos do quarto 307.

De novo, havia apenas dois leitos com ocupação masculina. Entretanto, aqui havia algo diferente: enquanto um paciente dormia olimpicamente, o outro interagia conosco, entrando e saindo continuamente do quarto. Ao cruzar conosco na entrada, deu-nos bom dia de imediato e disse para não nos preocuparmos com o barulho, pois seu vizinho “dormia como uma pedra”. Ele prosseguiu informando que os médicos haviam retirado a medicação do colega de quarto, pois, caso contrário, ele dormia 48 horas seguidas. Era um senhor gordo, que havia sofrido uma amputação logo abaixo do joelho e roncava ferozmente. Sua mesa de alimentação, por sorte, não possuía as tais bordas elevadas. Isso facilitou que eu executasse sua limpeza de forma silenciosa. Mas o outro paciente tinha razão: nada era capaz de acordá-lo, nem mesmo o rádio que ecoava alto e, sintonizado na rádio Tupi, transmitia o programa do ex-governador Garotinho.

Dirigi-me para o banheiro, onde iniciei a limpeza dos azulejos. Depois de explicar como se aplica o cloro, ela indagou se o cheiro me incomodava. Disse que não, imaginando que ela se referia ao produto químico. Mas o que ela tinha em mente era o odor proveniente do mofo dos banheiros. Era a deixa para ela me perguntar se eu tinha notado que, nos banheiros da enfermaria, não havia qualquer saída de ar, nem mesmo um exaustor. Olhei em volta, constatando que ela tinha razão. Ela disse então que, se eu precisasse respirar, podia descer na gerência para dar uma volta e me recuperar. Declinei da oferta e recapitulamos o processo de limpeza do banheiro. Em seguida, troquei as luvas, peguei esponja de aço e continuei a esfregação. Concluído o banheiro, regressamos ao quarto.

Fátima disse para fazer a limpeza sem pegar nos pertences dos pacientes. Ela exemplificou falando do problema que eram os celulares:

— “Tem paciente que tem implicância. Mesmo já tendo passado copeira, enfermeira, gente da portaria, da manutenção, quando chega o gari… A culpa é sempre do gari! Até que se prove o contrário…”

Contou-me ela que isso já tinha acontecido com o Mauro e até mesmo com ela, quando o filho de um paciente levou o celular sem avisá-lo. Reagi dizendo que gente é um bicho difícil, ao que ela imediatamente replicou acentuando que, no hospital, está cheio de gente difícil e que tudo é muito difícil. Nesse intervalo, o paciente acordado regressou ao quarto e, aumentando o volume do rádio, passou a comentar em voz alta uma notícia sobre engenharia e mobilidade urbana. Ele emendava um sem número de palavrões, dizendo que carro não era para todo mundo, que havia muito carro na rua e que as pessoas tinham mais é que andar de ônibus. De repente, talvez por não termos oferecido a devida atenção, ele sintetizou seu argumento explicando que carro e amante são coisas caras, opções apenas para quem tem dinheiro de sobra. Ainda ríamos com a frase, quando demos por concluída a limpeza do quarto.

Regressamos ao expurgo, onde saquei minhas luvas. Eu suava abundantemente nas mãos e tinha a camisa grudada ao corpo. Não tinha a impressão de estar fazendo um esforço físico desmesurado, mas o desgaste emocional presente naquelas relações circunstanciais era enorme. Por detrás de cada personagem que encontrávamos no hospital havia uma história simultaneamente individual e familiar, com mil variações possíveis. Negociar em permanência essas relações parecia-me, ao cabo de quase três horas de trabalho, uma exigência extenuante do trabalho.

Enquanto repetíamos o ritual da lavagem dos panos e troca de água dos baldes, dei-me conta que meu avental estava desamarrado. Saquei o acessório e fiz uma pausa. Fátima perguntou se eu estava cansado. Disse-lhe que não, mas expliquei que precisava ir ao banheiro. Ela repreendeu-se dizendo que não havia sequer me mostrado onde poderíamos beber água. Deu-me então um copinho de água mineral e disse que, caso quisesse a bebida gelada, deveria fazer o descarte daquela e abastecer o copo no bebedouro.

Quando voltei do banheiro, ela já havia renovado nosso material. Rumamos para o quarto 305, que abrigava três leitos ocupados por mulheres. Entramos dizendo bom dia para todas e constatamos que a paciente do leito mais próximo à janela estava tomando banho. Por sua vez, a paciente do leito do meio ignorou-nos, virando de lado para não ter que conosco interagir. Fátima fez festa para a paciente do leito mais próximo à porta, a quem chamava de vovó. Era uma senhora idosa, contando 80 e poucos anos, e que recebia visitas. Fátima explicou que em início de mês aquelas visitas costumavam aparecer, provavelmente porque é o momento em que a pensão da vovó deve ser depositada. Escondi meu mal-estar, pensando na frequência com que visito meu pai no hospital e no que o pessoal da enfermagem e/ou da limpeza deve(m) imaginar sobre mim e meus familiares. Visito meu pai cerca de três vezes por semana, enquanto meu irmão, em média, uma vez por semana. Não sei dizer se isso é muito ou pouco, mas não pude deixar de pensar nas ilações que as pessoas fazem a partir das visitas de familiares no hospital.

De fato, minha história é uma incógnita para a recepção e/ou enfermeiros, que, não obstante, produzem interpretações sobre minha conduta durante as visitas, sobre sua frequência. Meu devaneio já se perdia longe, quando ouvi Fátima dizer para vovó que o corno não tinha vindo hoje. Perplexo, indaguei-lhe o que era aquilo e recebi uma sucinta explicação: o gari do outro turno era um brincalhão, engraçado e falante, que tinha assim se apresentado para vovó. Fátima explicou que quem acabava sofrendo com tudo isso era a mulher do gari, pois era ela quem levava a culpa de infiel. Nesse momento, a paciente saiu do banheiro perguntando quando iríamos repor o papel higiênico, que havia acabado. Fátima respondeu que iria verificar, sem explicar que aquela não era uma obrigação da limpeza. Na verdade, a limpeza era responsável pelo fornecimento do papel toalha e do sabonete, mas não tinha qualquer obrigação em relação ao papel higiênico, ainda que tentasse fazer a reposição com o material fornecido pelo hospital. O problema é que não havia material para ser reposto. No fim das contas, Fátima respondeu educadamente, mas ignoramos a demanda.

Roberto Torterolli Junior, Sem título, óleo sobre tela, 240×150 cm, 2019.

Dividimos a limpeza: fiquei com o mobiliário e o chão do quarto, enquanto Fátima ocupava-se do banheiro. O que parecia mais simples, à medida que aumentava o número de pessoas nos quartos, tornava-se mais complexo. Mesmo assim, limpei as mesas, o beiral da janela, os rodapés e varri o chão. Quando recolhi o lixo, deixei escapar uma parte e Fátima chamou-me a atenção que aquilo poderia acarretar perda de pontos, caso um auditor passasse e visse a sujeira por ali. Aquilo afetava a PGR, que ela identificou como Participação na Geração de Resultados (e que, na verdade, chama-se Programa de Gestão de Resultados), mas que ela jamais conseguiu receber. Prometi ficar mais atento, enquanto prosseguíamos na limpeza agora de forma trocada: ela no quarto e eu no banheiro.

Tentávamos nos ajudar reciprocamente, navegando entre as duas limpezas, quando ela me perguntou se tinha filhos.

— “Duas”, eu disse.

Ela tem um, que agora estava com dez anos. Quando ela prestou concurso para a Comlurb, ele contava apenas dois de vida. Voltávamos assim à conversa do concurso, que ela havia prestado em 2009, embora só tivesse sido chamada para trabalhar quatro anos mais tarde, em 2013. Antes que perguntasse de novo sobre o meu concurso, peguei o rodo e pus-me a concluir a limpeza do banheiro do quarto 305. Poucos minutos depois, estávamos de regresso ao expurgo para fazer a limpeza dos panos e baldes.

Com o material de trabalho renovado, dirigimo-nos para o quarto 303, que era bem maior que os anteriores. De fato, nele havia seis leitos, distribuídos de forma espelhada: dois próximos à janela e dois próximos à porta de entrada, com mais dois inseridos entre ambos de cada lado. No meio das duas fileiras de três leitos, formava-se, da porta até a janela, uma área de circulação. De cada lado da porta havia um banheiro. Na verdade, era como se fossem dois quartos em um único espaço. Era um quarto masculino, no qual, além dos seis pacientes, circulavam naquele momento mais quatro visitantes. Próximo à janela, entre os leitos, havia uma televisão que transmitia um programa matinal de culinária, ainda que a imagem estivesse bastante prejudicada. Dividimos o cômodo em dois, como se cada um ficasse responsável por um quarto imaginário, correspondente à metade daquele espaço. Eu suava intensamente e a troca de luvas havia se tornado um tormento. Fátima dizia que era a falta de hábito e que eu deveria ficar calmo

Começamos ambos pela limpeza do mobiliário, com ela explicando que não seria possível limpar todo o beiral, pois um dos leitos da janela estava colado à parede e não poderíamos tocar o paciente. Limpamos o beiral, as mesas de refeição e fizemos a varredura úmida do quarto, sendo constantemente interrompidos pelo miado reiterado de um gato, cuja presença ali era bastante improvável. Procurei-o, sem sucesso, imaginando que alguma daquelas visitas estivesse escondendo-o em uma sacola qualquer. Resolvi perguntar a Fátima se aquilo era normal, se ela já tinha visto algo parecido no hospital e ela, rindo, disse que era a campainha do celular de um dos pacientes. Fiquei sem graça, amaldiçoando os telefones celulares que constituíam um personagem à parte. De manhã, no café, alguns garis permaneciam colados em seus telefones. Nos quartos das enfermarias, médicos e enfermeiras circulavam com seus aparelhos, consultando-os eventualmente. Para os pacientes, eles se tornavam objetos de controvérsia e impertinentes acusações de furto — como acontecera com Mauro e Fátima. Eu mesmo tive que me controlar para não usar o aparelho com a sofreguidão habitual. No final das contas, de forma irônica, a onipresença do telefone era galhofeiramente traduzida naquela campainha que reproduzia o miado incessante de um gato.

Voltamos à limpeza, com cada um se ocupando de um banheiro. Entretanto, não pude entrar naquele a mim designado, pois estava ocupado por um dos pacientes. Aguardei sua saída. Quando pude entrar, percebi que nem todas as fezes desceram com a descarga. Contive-me para não reclamar, e lidando com o fedor ainda presente no ambiente, acionei o botão duas vezes. Resignadamente, em seguida, peguei esponja de aço e pus-me a limpar os azulejos e a pia. Em seguida, após trocar as luvas, fiz a lavagem do vaso e do chão, que também enxaguei e sequei. Voltei para ajudar Fátima com o outro banheiro, o que exigia nova troca de luvas. Calcei novamente as amarelas, que deveriam efetivamente ser daquela cor, pois não estavam ali para substituir as verdes. Pus-me a limpar pia e torneiras. Eu estava incomodado pela postura do paciente que, ciente de nossas presenças e de nosso trabalho, não tinha se preocupado com a eficiência da descarga e, além disso, minhas mãos continuavam a suar enormemente. Resolvi interromper o trabalho e respirar um pouco no corredor. Quando quis retirar as luvas, deu-se o desastre: a luva da mão direita desfez-se em pedaços, ficando imprestável para o trabalho. Mostrei para Fátima, que fez lembrar a impossibilidade de troca: não havia nenhum par sobressalente. Ela verificou o celular e informou que restavam menos de dez minutos para o almoço: o melhor seria deixar para ver depois o encaminhamento que a gerência daria ao meu caso.

Eu estava emocionalmente exausto e não balbuciei qualquer objeção. Disse-lhe que faríamos como ela dizia e, encostado à parede, procurei descansar um pouco no corredor. Nesse instante, uma enfermeira dirigiu-se a mim indagando onde estava Fátima. Apontei para o quarto 303. De longe, a enfermeira pediu-lhe que retirássemos a lixeira de seu setor. Fátima fez um sinal positivo de cabeça, mas não esboçou qualquer movimento para atender ao pedido. Olhou para mim e disse para eu não esquentar, pois faltavam menos de cinco minutos para o almoço: aquele serviço era para ser feito à tarde. Havia precipitação na fala da enfermeira, que, aliás, nem se dera conta que estávamos perto do intervalo para refeição. Perguntei-lhe então o que faríamos com o quarto 301. Ela disse para não me preocupar. Caso eles pudessem, Mauro e Débora se ocupariam durante nosso almoço; caso contrário, faríamos após o intervalo.

Retornamos ao expurgo e lavamos nosso material. Penduramos aventais e guardamos as luvas. Pus no bolso o meu par inutilizado, esperando poder falar com a gerência durante o almoço. Guardamos tudo e descemos as escadas em direção à copa onde havíamos tomado o café e onde, agora, alguns estavam almoçando.

Na frente da capela, encontramos Fernando e Samuel, seu colega de trabalho, que estavam saindo para almoçar na rua. Declinei do convite deles, explicando que eu havia trazido uma marmita. Fátima seguiu direto para o vestiário e, poucos minutos depois, aparecia já de roupa trocada dizendo que não almoçaria, pois tinha que fazer seu exame médico. Desejei-lhe sorte e procurei a estufa onde deveria estar meu almoço.

Logo após entrar na copa, retirei minha marmita da estufa. Eu tinha preparado uma boa refeição de lombo de porco desfiado, acompanhado de quiabo, arroz e feijão, além de uma pequena salada de tomate, cebola e cheiro verde. Fiquei feliz em constatar que o pote plástico da salada não tinha sido posto na estufa e, portanto, estava preservado. Procurei uma mesa para sentar e pus-me, inicialmente, ao lado da parede, bem embaixo de uma televisão pendurada bem no alto, transmitindo o noticiário.

O barulho era realmente incômodo e acabei mudando-me para uma mesa mais distante da televisão, próxima à estufa. Pedi licença e sentei-me na companhia de Débora e mais dois garis, cujos nomes não consegui registrar. Permanecemos em silêncio até que Débora apresentou-nos dizendo que era o meu primeiro dia na Comlurb. Fiz um sinal positivo, confirmando a informação dada por ela. Não tardou que viesse a pergunta fatídica:

— “Qual é o seu concurso?”

Inseguro, informei que tinha algum tempo. Um dos garis disse que, como não houvera concurso em 2016 e o de 2017 tinha sido impugnado, eu deveria ter entrado em 2015, data do último certame. Engasguei, pensando no que responder. Terminei replicando de forma genérica que ele deveria estar correto na afirmativa.

Meu silêncio denunciava o desconforto, quando Débora ofereceu-me Fanta Uva. Aceitei de bom grado, esperando que aquilo ajudasse a mudarmos de assunto. Olhei em volta e a sala começava a esvaziar-se. Nesse momento, Débora voltou-se para os dois colegas de mesas e indagou:

— “Vamos louvar o Senhor?”

André, um dos garis sentado à mesa, agradeceu e disse que não iria hoje. Débora levantou-se com o gari remanescente que almoçava conosco, e saíram ambos pela porta. Levantei e resolvi descansar do lado de fora, enquanto esperava o horário de retomarmos o trabalho. Cerca de quinze minutos depois, quando Débora passou por mim, chamei por ela e perguntei o que era aquela louvação. Ela disse que iria falar com o encarregado e foi-se embora.

Poucos minutos depois, David aproximou-se e contou que Débora havia falado de meu interesse pela louvação. Ele explicou que, ao final do almoço, o pessoal fazia uma reunião perto da área do contêiner para louvar o Senhor. Havia uma primeira louvação por volta do meio-dia e meia, para o pessoal que almoçava no primeiro intervalo, e uma segunda por volta de uma e meia, para o segundo intervalo. Finalmente, disse que eu era muito bem-vindo. Enquanto agradecia, vi Fernando aproximar-se saboreando um picolé de sobremesa. Ofereceu-me um pedaço, que gentilmente recusei. Trocamos uma ideia sobre como tinha sido nossa manhã e ele contou ter revelado nossa situação. Disse-me que Dona Marta, sua colega de andar, havia desconfiado e dito que nem ele tampouco o “cabeludo” eram garis, pois “ser gari é algo que vem de dentro; não basta vestir o uniforme”. Disse-lhe que eu não havia contado nada, e que tinha passado por alguns momentos difíceis com perguntas sobre meu ingresso na Comlurb. Na verdade, eu tinha recebido apenas uma pergunta pessoal — sobre filhos — mas, por diversas vezes, perguntaram-me sobre meu ingresso na comunidade de garis, sobre meu concurso de admissão.

Conversávamos de forma despretensiosa quando Gonzaga e David aproximaram-se: fomos convidados para fazer um passeio pelo hospital. Nossa tarde não começaria, portanto, pelo retorno ao trabalho pesado, mas com um tour no Souza Aguiar.

Começamos pela rampa da entrada principal, que era lavada diariamente, conforme informou David, enfatizando a dificuldade por conta da presença de moradores de rua. Gonzaga explicou que esse era um problema que se reproduzia também no Salgado Filho, onde ele trabalhava, pois os moradores de rua banhavam-se nas torneiras dos banheiros, o que impunha a necessidade de limpezas repetitivas para os garis. Passamos pela emergência, e pedi que nos levassem à área dos contêineres. Cruzamos o pátio e chegamos a um depósito onde era reunido o lixo para posterior retirada acondicionada em caminhões.

Perguntei onde era a louvação, e David apontou para um espaço embaixo de uma frondosa árvore, próximo ao depósito. Repetiu a explicação dos dois turnos e disse, em seguida, que hoje eles tinham sido cerca de dez pessoas a louvar e ouvir a Palavra.

Fizemos o caminho inverso pelo pátio para retornar ao prédio principal do hospital. Rumamos para o segundo andar, onde também havia atendimento emergencial. Passamos em frente a alguns quadros de vidro, local no qual estavam expostos objetos engolidos por pacientes e deles retirados mediante procedimentos cirúrgicos. Era impressionante imaginar a retirada daqueles objetos de esôfagos e adjacências, pois havia um pouco de tudo: moedas, fichas (da Companhia Telefônica Brasileira para orelhões), alfinetes e pregos.

Prosseguimos a visita em meio a pacientes nos corredores, aguardando exames ou, ainda, familiares ansiosos e circulando de um lado para o outro. Era nítida a tensão, a infinidade de histórias pessoais que cada uma daquelas pessoas transbordava. Gonzaga explicava que a orientação era para não desenvolver vínculos com os pacientes, pois quem ali trabalhava convivia continuamente com nascimentos e mortes, com momentos de extrema felicidade, mas também de intensa dor. Definitivamente, aquele não é um trabalho simples.

Rodamos pelos demais andares parando longamente na pediatria, onde Fernando havia trabalhado na parte da manhã. Havia poucas crianças no hospital naquele momento, mas ainda assim as poucas que ali estavam indicavam que aquele era um setor diferente, marcado por uma inocência incapaz de decodificar a gravidade das diferentes situações médicas. Fernando explicou-nos que, por conta do pequeno número de crianças, havia lavado muitos quartos vazios, sem qualquer paciente. Como que querendo ratificar a informação dada por ele, Samuel e Dona Marta, seus colegas de trabalho na parte da manhã, assentiam com um sorriso largo. Fiquei algo constrangido por saber que eles já sabiam que eu não era um gari em treinamento, como fora anunciado no início de nossa jornada no “minuto de segurança”, mas sorri de volta, um sorriso de cumplicidade e admiração.

Nossa visita prosseguiu pela ortopedia e pelo setor de queimados que, contudo, na véspera, fora informado de que não veríamos. Gonzaga e David contavam-nos diferentes histórias de seus cotidianos no hospital. David relatou que dois pacientes da ortopedia — embora impossibilitados de se locomover — puseram-se a brigar desde seus leitos, atirando um no outro todo e qualquer objeto ao alcance da mão: café, pão, lençol, biscoitos. Tudo voava pela enfermaria, recentemente limpa. Resultado: nova limpeza teve que ser realizada, imediatamente após a primeira ter sido concluída.

Essas histórias quebravam a rotina do trabalho árduo e emprestavam enorme humanidade ao difícil cotidiano da limpeza hospitalar. Esbarramos em outra equipe que estava se preparando para fazer um processo terminal com uma espécie de enceradeira, cujo manuseio não parecia fácil. Estancamos para ver e ficamos impressionados com a destreza do pessoal. Eles fizeram questão de demonstrar o procedimento para a retirada de água com a pá cata-cata, desprezando, inclusive, o ralo existente no banheiro. Não pude deixar de pensar na minha dificuldade na primeira sala (sem ralo) que limpei: atrapalhado, eu tinha a sensação de nada retirar da água acumulada. Fernando sugeriu que os garis deveriam ter três tamanhos de rodo, pois era muito difícil alcançar os cantos. A recusa, entretanto, foi geral. Gonzaga disse que os garis acabariam por usar um único deles e um dos trabalhadores explicou que tudo era uma questão de hábito. Realmente, todos com quem eu havia trabalhado ao longo do dia exibiam uma desenvoltura que eu estava longe de ter. No fundo, minha impressão era que nem o tempo me proporcionaria a agilidade por eles demonstrada. Agradecemos a exibição e, percebendo que eram quase três da tarde — hora do lanche — começamos a descer em direção à sala da copa.

Na descida, entabulamos uma conversa sobre a diferença entre a varrição de rua e a limpeza hospitalar. Fernando disse ter a impressão de que o trabalho na rua seria mais bruto, com enorme desgaste físico, sem exigir tanta psicomotricidade. Em seguida, explicou que o problema da varrição pública seria a opressão moral ao passo que, no hospital, a dificuldade seria emocional, algo que pode deixar a gente mais triste. Gonzaga parecia concordar, quando fomos abordados por uma ambulante vendendo doces e bolos.

Fernando entusiasmou-se e perguntou pelos preços, ao que ela respondeu dizendo que os bolos custavam quatro ou seis reais dependendo do tamanho. Fernando pôs-se a contar de dois em dois: dez, mais dez, trinta, mais dez, pronto, dez bolos somavam cinquenta reais. A ambulante não cabia em si de tanta felicidade. Em um minuto havia vendido todos os seus produtos. Cada um de nós saiu carregando dois ou três bolos para compartilhar no lanche. Gonzaga sugeriu que aproveitássemos o momento para tirar uma foto com todos os garis, caso quiséssemos. Decidimos, então, que aquele seria o instante ideal para revelarmos para todos os demais garis nossa condição incógnita.

No meio do pessoal que estava chegando para o lanche, avistei Florisbela e perguntei-lhe sobre a limpeza da copa da desinfecção, que não tínhamos conseguido fazer. Ela disse que ainda não estava concluída e que, se tudo corresse bem, fariam após o lanche. Olhei em volta e vi Fernando oferecendo bolo para Dona Marta. Aos poucos, a sala encheu-se e os bolos fizeram um enorme sucesso. Enquanto alguns perguntavam se podiam mesmo comê-los (inclusive querendo saber quanto deveriam pagar pelos mesmos), duas moças tentavam fazer um pudim no aparelho micro-ondas. As conversas começaram a cruzar-se na copa, com uns falando da perspectiva do encerramento do dia, outros falando do resto do trabalho que ainda havia por fazer.

Reunimo-nos em torno da mesa, onde Fernando estava sentado. Os funcionários da gerência entraram na copa com um olhar interrogativo, enquanto Gonzaga dizia que eu e Fernando tínhamos gostado bastante do dia de trabalho, e que pretendíamos ter uma foto de todos juntos, mas antes falaríamos algo para todos. Fernando começou então a explicar como tinha começado a trabalhar na varrição da USP, e relatou o “episódio do uniforme” no Instituto de Psicologia (prédio que àquela altura ele frequentava diariamente como aluno), quando não foi reconhecido pelos seus colegas de curso. Disse que seu trabalho havia resultado na publicação de um livro, e que eu o tinha comprado em uma livraria de aeroporto. Falou de nossa aproximação, de sua participação nos cursos de formação dos juízes, e explicou como formatamos o projeto para que os juízes trabalhassem um dia inteiro no exercício de uma atividade braçal.

Fernando apresentou-se finalmente como psicólogo, dizendo ainda que eu era juiz do trabalho e trabalhava no tribunal. Houve um burburinho na sala, com uma moça dizendo:

— “Eu sabia que vocês não eram garis!”

Outra disse que todos tinham desconfiado, embora não soubessem o que estava acontecendo. Fernando falava ainda sobre os possíveis desdobramentos, quando, de repente, emocionou-se e começou a chorar. O silêncio era sepulcral e a emoção cortava o ar. Ele recuperou o ar, e pôs-se a nos contar o pedido dos garis paulistas:

— “Diz lá para eles quem somos e o que fazemos.”

Era perceptível a identificação dos garis cariocas com aquele pedido.

Chegara minha vez de falar algo, mas eu não tinha uma história pessoal para contar. Na verdade, o que eu queria era mesmo agradecer pela acolhida de todos e, em especial, de meus colegas de andar. Fátima, Débora, Mauro e Florisbela foram extremamente pacientes com meus erros. Com a voz embargada, calei-me. Alguém gritou no fundo que devíamos ficar uns quinze dias! Em seguida, Gonzaga tomou a palavra para justamente enfatizar a receptividade e o acolhimento dos garis, cuja conduta mostrava a qualidade do trabalho de todos que ali estavam. Como estava ciente da nossa identidade, ele contou como tinha sido difícil falar, dirigir-se a um juiz que estava ali fazendo o nosso trabalho. Mais ainda, ele explicou como se emocionara ao ver a ambulante tentar fazer sua venda para um gari ao invés de abordar um médico, e como aquilo seria uma evidência de que “não importa sua classe social, quando você está disposto a ajudar as pessoas”.

A sala transbordava em emoção e, após uma longa salva de palmas, todos se puseram a abraçar-se enquanto saíamos para as fotografias.

Do lado de fora, iniciou-se uma longa sessão. Todos sacando seus celulares para registros pessoais, além de muitas gargalhadas. Dou um abraço de agradecimento em Florisbela, Lindalva, Beatriz e Arlete, indagando se Fátima já teria regressado. Recebo uma resposta negativa, e tem início uma conversa coletiva sobre as desconfianças iniciais. Uma das moças diz que achava que eu tinha vindo de alguma escola, que deveria estar afastado, voltando para treinamento e que, por isso, tinha aparecido de barba e cabelos longos, mas que, no dia seguinte, eu já apareceria de barba feita e com o cabelo arrumado. Outra diz que tinha desconfiado desde o início, que um de nós deveria ser engenheiro e outro do administrativo. Finalmente, uma terceira diz que eu tinha me entregado desde o início, só pelo meu jeito de entrar, falando baixo e manso com todos. Fico acanhado com o comentário, mas saboreio o carinhoso clima de cumplicidade existente, enquanto mais e mais fotos são registradas por todos.

David pede a mim e Fernando nossos números de celulares, com planos de montar um grupo de Whatsapp e assim poder compartilhar conosco as diferentes fotos tiradas. Quando indicamos que estamos prontos para regressar ao trabalho, um clima de surpresa se instaura:

— “Mas vocês vão trabalhar ainda?”

Passamos antes pela copa para tomar um gole de água e descobrimos que o pudim não funcionou. Vejo Lindalva entrar, e brinco com Gonzaga dizendo que minha encarregada veio cobrar o retorno ao trabalho. Resolvo acompanhar Fernando até a pediatria, onde ele deseja recuperar o resto de seu material de trabalho, ou seja, avental e óculos de proteção. David pergunta se assim também desejo, ao que replico dizendo que o que gostaria mesmo era de poder agradecer pessoalmente a Fátima pela atenção com que me tratou ao longo da manhã.

Passamos rapidamente pelo meu andar e constatamos que ela ainda não havia regressado do médico. Como são quase quatro horas da tarde, damo-nos conta que o segundo turno do lanche irá começar em breve e que seria simpático também compartilhar nossa identidade com o restante dos garis. Optamos então por regressar à copa, de tantos encontros e desencontros.

O cenário repetiu-se da mesma forma, mas dessa vez sem a fartura dos bolos e doces comprados pelo Fernando. Na verdade, sobraram uns quatro bolos, que estavam dispostos sobre a mesa. O pessoal do segundo turno começou a chegar e sentar-se em torno da mesa. Gonzaga pediu silêncio e repetiu o comentário do turno precedente, passando a palavra para Fernando, que, mais uma vez, narrou o episódio do uniforme, acrescentado que na experiência ele havia ficado invisível. Enquanto Fernando falava, Fátima chegou com ar espantado e, sem saber o que estava acontecendo, sentou-se ao fundo da copa. Quando Fernando concluiu, pedi a palavra dizendo que precisava contar algo para Fátima, que, durante a manhã, tinha se exaurido em perguntas que eu não conseguia responder. Compartilhei com todos o que tinha sido minha manhã, o carinho com que Fátima tinha me ensinado o trabalho, minhas dificuldades com as luvas que haviam rasgado e, então, subitamente, a voz embargou e sumiu…

Uma lágrima escorreu enquanto fiz silêncio. Não consegui dizer mais nada além de um “Obrigado”. Puxaram uma salva de palmas, antes que Gonzaga retomasse a palavra. Ele repetiu o agradecimento do turno precedente, ressaltando o companheirismo dos garis que, espontaneamente, procuravam ensinar as técnicas de seus trabalhos. Ele repetiu a mesma ponderação sobre classes sociais e enfatizou a importância de sempre recebermos os novos colegas com um sorriso no rosto. Finalmente, puxando uma salva de palmas, sugeriu que fôssemos para fora a fim de registrar aquele momento.

De novo, as pessoas abraçavam-se e registravam sua surpresa com a experiência. Enquanto os celulares passavam de mão em mão para capturar aquele momento, alguém nos trouxe um broche com a inscrição #somos­todos­garis. Eu e Fernando os penduramos em nossos uniformes com indisfarçável orgulho. No meio do grupo, vi Fátima e pedi que Fernando tirasse uma foto com minha “professora” e Lindalva, que carinhosamente chamei de “diretora da escola”. Fernando não perdeu a oportunidade para brincar comigo e dizer que eu estava com medo de não passar de ano. Nesse momento, Fátima disse que minha reclamação em ser por ela chamado de “senhor” ao longo do dia não tinha cabimento e que agora deveria realmente se referir a mim daquela forma. Retruquei, insistindo que o tratamento correto era “você”. Afinal, não havia porque mudar o que havíamos conquistado em termos de cumplicidade na limpeza. Dei um abraço carinhoso em Fátima, que pediu licença para voltar à copa.

Com a dispersão do grupo, Gonzaga perguntou o que faríamos com aquele dia de trabalho. Expliquei-lhe que tínhamos prometido dar um retorno para a Comlurb, compartilhando nossas percepções da experiência, mas que tínhamos previsto um tempo para digerir a montanha-russa de emoções que fora aquele longo dia. Continuei explicando que, no momento oportuno, haveria uma reunião com o pessoal dos recursos humanos com quem havíamos negociado a realização daquele dia de trabalho no hospital, além de duas outras vagas na varrição pública (preenchidas pelo Marcelo Augusto e pela Anelise, na área de Botafogo). Gonzaga agradeceu pela explicação e contava-nos um pouco de seu trabalho no Salgado Filho, quando Fátima passou por nós dizendo que ainda não tinha entendido nada do que tinha acontecido. Dei-lhe outro abraço, e perguntei como tinha sido seu exame.

— “Demorado.”

Agradeci, por tudo. Ela disse que quem agradecia era ela, ainda que não soubesse por que estávamos nos agradecendo reciprocamente.

Fernando indagou o que estava acontecendo e, após Fátima reiterar que não estava entendendo nada, retomou a explicação sobre a experiência, dizendo que havia doze juízes trabalhando em circunstâncias parecidas, vivendo a experiência de um trabalho braçal, subalterno, e o sentimento de humilhação e invisibilidade que ele proporciona. Fátima interrompeu:

— “Engraçado. A primeira coisa que falei para ele, quando começamos de manhã, foi que íamos entrar e desejar bom dia, mas ninguém iria nos ver. E que quando cai alguma coisa no chão…”

Impressionado, Fernando pediu que ela repetisse o que tinha dito. Fátima reproduziu a mesma frase dizendo que ninguém responderia ao nosso bom dia, mas que quando cai alguma coisa, “meu amor”, vem aqui; até “meu amor”… Entreolhamo-nos, e começamos a mostrar as fotos dos outros juízes trabalhando. Quando ela viu a foto da Amanda de trocadora, reconheceu o uniforme dizendo que era da JAL. Diante da foto do Marco Antonio, vestido para trabalhar de operador de caixa, ela imediatamente reconheceu o uniforme do Intercontinental, e disse que bem que poderia ser no Guanabara. Finalmente, vendo a foto da Natália vestida para trabalhar no Rio Design Barra, ela exclamou:

— “Ah, sim, de faxineira da Nova Rio!”

Era impressionante a familiaridade de Fátima com aqueles uniformes, que ela decodificava sem maiores dificuldades.

Despedimo-nos mais uma vez, e ela partiu pelo caminho entre a gerência e a capela, em direção à unidade coronariana, onde eu havia passado minha manhã de trabalho.

Eram pouco mais de quatro e meia da tarde quando entramos no vestiário para trocar de roupa. Nele, encontramos outro gari que também estava em trajes laranja. Mais um passando por treinamento para voltar ao seu posto de trabalho, na escola em Vicente de Carvalho. Timóteo apresentou-se, e disse que estava retornando de uma cirurgia no joelho. Mostrou a cicatriz, e disse que aquilo era a consequência de muitos anos de trabalho. Reclamou do sindicato:

— “A vida é assim mesmo, cada um por si.”

Eu exalava cansaço, e estava preocupado com o horário do voo do Fernando, que regressaria naquela mesma noite para Jundiaí, no estado de São Paulo. Optei por não prolongar a conversa, despedi-me de Timóteo e dirigi-me à gerência para fazer o mesmo com o Gonzaga.

Na sala, encontramos o pessoal do administrativo, que ainda comentava as revelações da tarde. Lindalva estava por ali, e brincou dizendo que, entre os garis, havia duas histórias correndo sobre nossa presença: na primeira, nós éramos janeleiros e, certamente, não iríamos ficar naquele tipo de trabalho; ou seja, aquilo era uma espécie de treinamento para sermos aproveitados em alguma atividade administrativa; na segunda, nós estávamos regressando de licença, sendo que eu, por ser muito quieto, deveria ter tido algum problema psíquico e Fernando, mais expansivo, deveria ter tido algum problema físico. Rimos gostosamente de ambas as hipóteses, que estavam longe da verdade. Éramos intrusos em um mundo desconhecido, tentando aprender um pouco mais sobre a vida dos Outros e tudo o que ela poderia nos ensinar sobre a nossa própria vida.

Despedimo-nos mais uma vez e tomamos o rumo da saída. Mal tínhamos caminhado cem metros, David chamou-nos e pediu para nos dirigir uma última palavra. Aquiescemos, enquanto ele se aproximava. Ele parou diante de nós e começou a nos explicar que todos cumprimos o destino que Jesus teria nos reservado, que nossas vidas existem para glorificá-Lo e que a humildade com que eu e Fernando tínhamos abraçado aquela jornada revelava que Cristo tinha grandes planos para nós dois. Tudo o que precisávamos fazer era aceitá-Lo em nossos corações e prosseguir trabalhando para Sua grandeza.

Fiquei encabulado, e agradeci por aquela palavra final, sem saber ao certo se a resposta era adequada. Trocamos um último abraço e, acompanhados de Gonzaga, que acabara de se aproximar, rumamos para a rua. Caminhamos juntos até a esquina da Faculdade de Direito da UFRJ. Gonzaga despediu-se, seguindo em direção à Central do Brasil, enquanto eu e Fernando atravessamos a rua em direção à Praça da República. Em frente à estação do metrô, expliquei-lhe as alternativas para chegar até o aeroporto, tendo ele optado, sem sucesso, por usar uma daquelas bicicletas da Prefeitura. Infelizmente, a estação estava desativada. Orientei-o a pegar o VLT e pedi que me mandasse notícias quando chegasse ao aeroporto. Exausto, entrei no metrô para pegar o carro na casa de meu pai.

Cheguei em casa muito cansado, com o telefone tocando. Era minha esposa dizendo que não tinha podido pegar nossa filha na escola e que ela chegaria bem chateada. Pediu-me que fizesse um carinho nela para mitigar a frustração de ter voltado no ônibus escolar. Olhei para o relógio e dei-me conta que não daria tempo para tomar banho. Optei então por recebê-la de imediato e, contrariando as recomendações do treinamento, dei-lhe um longo abraço no portão. Ela aproveitou o momento de fraqueza para pedir-me pela enésima vez um gato de estimação. Contrariado, fui obrigado a dizer não. Prometi um cinema no dia seguinte ou, caso ela preferisse, algum outro tipo de passeio. Ela ficou de pensar, enquanto entrávamos todos em casa.

Botei minhas roupas de gari para lavar e fui olhar os recados do celular. No grupo de Whatsapp montado para a atividade, os juízes narravam suas experiências e falavam das emoções sentidas ao longo do dia. Raquel dizia ter chorado, e Fernanda agradecia pela oportunidade de ter vivido um dia inesquecível. Chorei copiosamente. Eu sentia um profundo cansaço nas pernas — aliás, foi só naquele momento que me dei conta de que havia passado praticamente o dia inteiro em pé — e estava emocionalmente exaurido.

Queria compartilhar o que estava sentindo, mas não havia ninguém para conversar. Tomei um longo banho e preparei-me para o churrasco que faríamos em casa à noite, aproveitando a presença de alguns familiares do Nordeste.

Aos poucos, as pessoas foram chegando para o churrasco. Minha esposa, minha sogra e sua irmã, meu cunhado e sua esposa, a prima de minha esposa e sua filha, minhas filhas: todos ali, em volta da churrasqueira. Falamos sobre a crise, sobre nossas vidas, sobre nossas escolhas. Nem todos sabiam que eu tinha passado o dia como gari e, quando a informação veio à tona, pediram-me que contasse como tinha sido a experiência.

Falei sobre Fátima, Florisbela, Mauro, Débora, Lindalva, David, Gonzaga e muitos outros. Descrevi o carinho com que fora recebido, e as lições de solidariedade que havia aprendido. Descrevi o árduo ambiente de trabalho que era o hospital, e as dificuldades que aquelas pessoas enfrentavam com um orgulho infindo. Disse-lhes que, ao fim do dia, David havia montado um grupo de Whatsapp nomeado Visita dos Mestres, para compartilharmos nossas vivências daquele dia. Eu, solicitando a devida autorização, havia trocado o nome do grupo para #somos­todos­garis. Estávamos colegas, talvez amigos? Não sei dizer ao certo, mas, de minha parte, havia brotado um grande respeito por aquela gente simples e carinhosa. Deitei-me, ao final do dia, feliz e contente com a experiência e dormi um sono tranquilo.

Na semana seguinte, o grupo de Whatsapp bombou com fotos e mensagens. Eunice, com quem eu tivera contato apenas na copa, mandou mensagem: “fiquei muito feliz e emocionada pelo carinho mesmo desconfiando, foi maravilhoso ouvir da boca de vocês essa experiência”. Samuel, após localizar pelo Google as reportagens sobre o trabalho do Fernando como gari na USP, compartilhou os links no grupo. Quando Fernando encaminhou a foto enviada por Natália, Samuel disse ter reconhecido uma das funcionárias da Nova Rio, que seria irmã de um amigo seu. Não tardou para que alguém brincasse dizendo que tínhamos estado lá para ensinar como ser dispensado em apenas meio dia de trabalho. Incontáveis desejos de bom dia apareceram cotidianamente no grupo. Compartilhamos até mesmo a indignação em face do assalto sofrido por Arlete, quando ladrões levaram seu aparelho celular. Em seguida, vieram piadas sexuais e futebolísticas, bem como anedotas com a violência do Rio de Janeiro, além de mensagens religiosas. Choveram críticas à iniciativa da Prefeitura em contratar empresas terceirizadas para fazer a retirada do lixo dos prédios e estabelecimentos comerciais da Avenida Rio Branco. Enfim, foram inúmeras mensagens que, posteriormente, ganharam um tom carinhoso pelo dia dos pais. Ainda que precariamente, eu agora fazia parte de uma comunidade virtual, cuja origem para mim fora um dia extraordinário de trabalho.