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Sobre o papel das classes médias e da
imprensa crítica na luta política1

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No correr das discussões que tivemos em torno da situação política atual no Brasil, e das formas possíveis de intervenção, apareceram dois problemas, interligados, mas distintos, que, creio, mereceriam ser mais bem discutidos.

Ambos se referem ao momento presente, mas podem ter também um âmbito temporal e espacial muito mais amplo. Um deles, mais universal, é o do papel que podem ter na resistência ao bolsonarismo as classes médias e, em especial, a intelligentsia. O outro é o da significação que pode ter a imprensa crítica (escrita, falada, digital), no interior desse processo. A meu ver, nos dois casos há correntemente uma subestimação do papel que podem ter uma e outra, nesse contexto, e também para além dele.

A tradição marxista e, junto com ela, os interesses das direções burocratizadas (de partidos, sindicatos, etc.), tendem a imediatamente estigmatizar o papel do intelectual. “É coisa de intelectual.” Ou, “ele é intelectual, não dirigente de partido.” É o que se ouve frequentemente (eu pelo menos ouvi bastante). O que é mais grave, a intelectualidade, influenciada pela tradição hegemônica na esquerda, e neutralizada pela burocracia, tende a assumir esse tipo de diagnóstico. Por trás dessa modéstia de quem quer dar a palavra ao povo, há uma atitude derrotista e negativa.

Primeiro ponto. Qual o peso numérico da intelligentsia no Brasil? Não sei bem, mas penso em 10 ou 15 milhões. Parece pouco para uma população de mais de 200 milhões, mas na realidade é muita gente. A título de comparação, o núcleo de Bolsonaro, digo, o irredutível, deve ter mais ou menos isso. E que barulho eles fazem. Para quem supõe que isso é pouco e não tem efeitos, basta pensar que um grupo consciente e ativo, de 10 milhões que seja, é capaz, em tese, de mobilizar um milhão numa manifestação de rua. Há quem pense que manifestação de rua também não pesa. Entretanto, para que mobilizações desse tipo (ou mesmo muito menores) sejam possíveis, é preciso que a intelligentsia esteja mobilizada, consciente, e, de certo modo, organizada. E aqui passo ao segundo problema. Que papel pode ter nessa mobilização a imprensa escrita, falada ou digital (viso, por razões evidentes, principalmente a digital).

Há quem ache que esse papel, embora “interessante”, só pode ser secundário. As coisas sérias da política se passariam alhures. De novo, o peso da tradição, e o jogo bruto dos burocratas. Vejam os fatos. Na França, o jornal satírico Canard enchaîné, ao revelar um affaire duvidoso de empregos fictícios em benefício da própria família, simplesmente liquidou a candidatura do ultraliberal François Fillon, que estava praticamente eleito. Claro, quem ganhou no lugar dele foi Macron, liberal também. Mas o simples fato de ter neutralizado um personagem que aparecia como o virtual presidente eleito já é expressivo. E se Macron é liberal e não centrista, ele não chega ao fanatismo de Fillon, que já andava cogitando até a liquidação da Seguridade Social. Aqui no Brasil, pensou-se suficientemente no papel que tiveram, no contexto da política brasileira, as reportagens da The Intercept, revelando os bastidores da Lava Jato, e pondo a nu o caráter de farsa jurídica de certos julgamentos? Se a situação hoje não tem nada de fácil, onde estaríamos nós sem as revelações da The Intercept? Não sei, mas é certo que Moro continuaria endeusado e sem mácula (na realidade, ele continua endeusado por muitos, mas tem mácula). Bolsonaro, por sua vez, estaria mais seguro do que está, e assim por diante. E, vejam, foi o trabalho de uma agência. Trabalho exemplar que alterou profundamente a situação, mesmo se não pôde pôr abaixo o governo de Bolsonaro, nem toda campanha contra a esquerda. É bom não perder de vista esse exemplo de jornalistas e intelectuais cuja ação teve mais eficácia do que muita atividade de partido. Sem dúvida, aqui se trata de uma reportagem, e se poderia perguntar se o exemplo permite maior generalização.

O trabalho de imprensa de intelectuais, diz-se, muitas vezes, não pode atingir o grande público, por causa do nível muito baixo do público brasileiro, muito preso a preconceitos, principalmente de ordem religiosa. Aqui entramos no problema não só da importância do papel da imprensa crítica na resistência, mas do caráter que devem ter as publicações. A ideia de uma impotência radical da intelectualidade em matéria política leva a privilegiar um estilo “leve”: artigos de atualidade, de divulgação, nada de mais “pesado”, porque o público brasileiro não engoliria tal coisa. Minha posição vai a contrapelo disso, deixando claro, desde o início, entretanto, que uma coisa não exclui a outra e, mais ainda, que a mensagem tem de ser feita obrigatoriamente em vários registros. Diria que, útil e necessária, a produção crítica “leve” (artigos breves, eventualmente irônicos) não é o que falta no Brasil. Todos os dias temos uma leva de escritos dessa ordem, que — insisto — têm tido um papel muito importante na tomada de consciência crítica da intelligentsia e do público em geral. Porém, o que mais falta não são particularmente as publicações desse tipo. São, antes, as análises em profundidade, de caráter ao mesmo tempo político e teórico, que se apresentem em artigos que podem ter — mesmo se não necessariamente — um volume respeitável. É isso o que mais nos falta. Não que tal tipo de escrito esteja ausente no nosso cenário midiático (impresso, falado ou digital).

Um bom exemplo que deve ser mencionado é o da revista Piauí. Os seus editores têm a coragem de publicar textos longos, que aparentemente o público brasileiro não poderia absorver. Pois tudo leva a crer que absorve. Ha grande mérito no trabalho da Piauí. Trata-se, contudo, de uma única publicação. Seria preciso que houvesse mais de uma. Que papel específico tem esse estilo de trabalho, pensando em particular na situação política atual do Brasil? A meu ver, ele representa uma, se não a, peça essencial da luta pela hegemonia. Nem todos estamos conscientes disso, mas desde há pelo menos umas duas ou três décadas, trava-se uma luta surda pela hegemonia, entre a esquerda (e os democratas, em geral), de um lado, e a direita (mais particularmente a extrema-direita), de outro. Até aqui a extrema-direita vem ganhando em ampla medida essa luta. E por quê? Porque ela, ao contrário da esquerda, não subestima a luta ideológica. Ela a leva a sério. Nós não. (Claro que os instrumentos dessa luta, conforme se considere o lado, são distintos: a extrema-direita usa a mitologia, o sofisma, a falácia, a mistificação; nós, em princípio, visamos simplesmente a verdade. Mas nos dois casos, se trata de luta de ideias — tomando o termo, como convém aqui, no seu sentido mais geral, que inclui até as “ideias” de Olavo de Carvalho). É preciso tomar consciência do que isso significa.

Valorizar a luta pela hegemonia é pôr em evidência, e de forma bastante heterodoxa, o peso das ideias. Para a ortodoxia, as ideias não têm, nem nunca tiveram, muita importância. Devo dizer que quando resolvi responder a Olavo de Carvalho (eu já tinha me ocupado dele num livro publicado em 2017), não foram poucas as vozes, às vezes irônicas, que me acusavam de perder o meu tempo com querelas inúteis. Outros, do nosso lado, me diziam que eu tinha que discutir era com os “nossos”. Pois bem. Duvido que a minha intervenção tenha sido inútil. Depois dela vieram muitas outras (aliás, evocando as primeiras intervenções, alguns desses retardatários se esqueceram da minha…). A mesma exigência se impõe hoje. Por exemplo, o poder e o núcleo ideológico mais pesado acabam de produzir uma trilogia em vídeo sobre a educação. Eu ainda não a assisti, mas, segundo o comentário de um jornalista, é um documento tecnicamente bem feito. E além de arrolar certo número de dados, ele contém algumas perguntas que mereceriam ser feitas a respeito do ensino no Brasil. Só que, em seguida, vêm as respostas, as de Olavo de Carvalho, de Ernesto Araújo e de outros que tais. Segue-se uma longa diatribe contra Paulo Freire. E, afinal, revela qual a grande responsável pela situação: a esquerda, evidentemente. (Como disse meu amigo Daniel Golovaty Cursino, a esquerda é o judeu da nova extrema-direita. É a origem de todos os males. A peste da vida social). Pois é preciso responder a esse tipo de documento. Responder, e não só por meio de intervenções breves, irônicas, pelas vias de que dispomos. Para além desse trabalho necessário, precisamos de peças de maior peso. Que um educador ou uma educadora bem informado(a) sobre a situação do ensino no Brasil produza um texto, longo, se preciso, desmistificando a trilogia e propondo uma outra narrativa. A intelligentsia e a opinião pública brasileira em geral, ganharão muito com isso.

Volto aqui à objeção que mencionei mais acima: o público brasileiro é muito atrasado, e imbuído demais de preconceitos, sobretudo religiosos, para se interessar por esse tipo de publicação. Resposta: parte do público, precisamente, a intelligentsia, está certamente em condições de ler esse tipo de coisa. Desde, evidentemente, que o autor se empenhe em empregar uma linguagem clara, sem efeitos inúteis, e no plano do conteúdo, sem complicações desnecessárias. (Sim, porque as complicações necessárias, estas, as que estão no objeto, têm certamente que ficar.) Mas esse tipo de trabalho não exclui — pelo contrário, exige — um outro, que partiria dos dados imediatos da consciência popular num país como o Brasil. Por exemplo, e é mais do que um exemplo: temos de dar a palavra para os setores cristãos (protestantes e católicos, e também ortodoxos), que não comungam com Bolsonaro e sua estirpe. O cristianismo de inclinação democrática não é pequeno em termos demográficos. Ele deve ser majoritário no Brasil (para legitimar os seus planos golpistas de estilo populista de direita, Olavo de Carvalho gosta de dizer que a maioria está com eles, porque é cristã. Cristã sim, mas isso não quer dizer neofascista). Em geral, o tema, que não tem nada de demagógico — é pura verdade objetiva —, do Bolsonaro encarnação do anticristianismo tem de ser desenvolvido. Também o dos “mercadores do templo”. Na Bíblia, eles aparecem na porta do templo, parece que trocando moedas. Hoje eles estão lá dentro, manejando milhões, com seus cartões de crédito cruzando hinários e textos sagrados. Enfim, para além do trabalho teórico, a intelectualidade tem de fazer um grande esforço para ajudar a assegurar a expressão da melhor voz popular. A voz do povo, cristão ou não — em geral, cristão —, que não engole os novos autoritarismos e irracionalismos (o homem religioso não é necessariamente irracional, sabemos disso).

Terminando. Precisamos valorizar o papel da classe média, em particular da intelligentsia (sem esquecer que há uma ala fascistizante, irrecuperável, mas também uma outra que oscila), publicando textos bem fundamentados, capazes de marcar pontos decisivos na luta da esquerda pela hegemonia. No mesmo movimento, nos abriremos para um trabalho junto ao melhor das forças democráticas populares, incluindo, e até privilegiando, dada a sua importância, as cristãs.

Para se ter uma ideia do papel que pode ter a intelectualidade, e em particular uma publicação, no cenário político de um país ou do mundo, e para lembrar o quanto a humildade e a má consciência podem ser derrotistas e negativas, lembro, para terminar, de um exemplo histórico célebre, o da revista Socialismo ou barbárie, que veio a público na França durante mais ou menos uma década (dos anos 1950 até o final dos 1960), revista dirigida por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. Castoriadis e Lefort tinham sido militantes, mas haviam deixado de ser. Eram, na realidade, intelectuais — grandes intelectuais — e professores universitários. Pois a revista se dispunha a enfrentar não só a direita mas também as direções de esquerda, as dos partidos comunistas, em particular. Evidentemente, foram recebidos com uma saraivada de balas, fogo inimigo, e fogo “amigo”, se dá para empregar essa expressão. Não direi que foi Socialismo e barbárie que derrotou o comunismo leninista e stalinista. Essa derrota veio por mais de um caminho, incluindo a mobilização dos operários poloneses (a revolução húngara de 1956, que teve grande participação da intelligentsia também contribuiu para a derrocada do “comunismo”, embora tivesse sido derrotada; e no rol dos exemplos de participação da intelligentsia nesse processo se poderia citar ainda o papel maior que teve o movimento liderado pelo dramaturgo tcheco Vaclav Havel, que chegou à presidência do seu país). Mas é seguro que a revista Socialismo ou barbárie teve um peso específico no processo de decomposição do “comunismo”. O principal líder do movimento de 1968 na França, reconhece aliás o papel que teve aquela revista. Meio imperceptivelmente, ela era lida por muita gente e formou toda uma geração. Bem entendido, tratava-se de uma dupla excepcional de editores. Mas isso não é decisivo. Estou convencido de que, mutatis mutandis, o Brasil precisa de uma revista do tipo da Socialismo ou barbárie. Nos falta gente qualificada? Falso. Se não temos uma multidão de críticos competentes, temos “um punhado”, e, guardadas as proporções, gente muito qualificada. Esse “povo” precisa se tornar consciente da função que está exercendo, e mais do que isto, do papel que poderá ter. Pensar e escrever não é menos decisivo do que atuar no parlamento, ou do que se manifestar na rua. Infelizmente, privilegia-se demais esse último aspecto. Sem subestimá-lo, creio, entretanto, que o nosso destino, o destino da esquerda democrática e do país, depende na realidade destes três vértices: a luta de rua, a luta parlamentar, e o trabalho da imprensa crítica e teórica, junto do qual vai o ensino crítico na Universidade (a distinguir do proselitismo). A importância do que se faz na Universidade pode ser avaliada pela fúria com que a extrema-direita se lança contra ela.

― 8 de abril de 2020