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O desafio de poetar com graça1

Que Ruy Fausto nunca se moldou ao tipo de vida que seria de se esperar de um filósofo brasileiro de esquerda com a sua trajetória e o seu currículo é o que, nestas alturas, já deixava perceber o longo exílio parisiense pelo qual enveredou. Neste caso, uma flagrante reivindicação do duplo lugar, de um posto privilegiado de onde ver melhor as coisas, por mais que o caráter escolhido de uma tal posição só se evidencie après coup, e por mais que a França possa ter sido experimentada também como o lugar nenhum, como costuma acontecer quando se está fora, os anos começam a passar e não se volta vitorioso ao bairro de origem. Que ele sempre teve mais de uma versão de si mesmo a propor é o que também já sabiam os amigos, acostumados a vê-lo tocar, num bom piano, e sem medo de Adorno, um certo repertório jazzístico, na mais perfeita linha francesa de recepção a esta fina arte saída da indústria cultural e preservada, como um vinho, na terra que também deu abrigo a Sidney Bechet, quando o rock se apossou da alma do soul. O que não se podia suspeitar antes do novo livro que ele está lançando, imprevistamente, um ano depois da saída de A esquerda difícil, volume de ensaios com que veio quebrar o silêncio dos intelectuais da gauche local a respeito dos rumos do socialismo contemporâneo, num momento em que o mal-estar petista já tinha devolvido quase todo mundo, estrategicamente, para dentro dos muros, é que existe ainda um poeta bissexto — ou simplesmente um poeta — por trás desse especialista em Marx, hoje professor emérito da USP, que iniciou sua carreira na Universidade de Paris VIII, quando ela era um barril de pólvora socialista e internacionalista chamado Vincennes. Foi lá que o grupo de Lacan instalou o primeiro departamento de psicanálise de que se tem notícia, sob os protestos dos estudantes revolucionários que não admitiam concessões à subjetividade, e Deleuze deu aulas. E nem é tanto o poeta que surpreende, num quadro acadêmico de referência como o nosso, em que o também bissexto Bento Prado Júnior, recentemente falecido, detinha o posto de inventor de uma prosa filosófica brasileira, pelas dívidas literárias de seu refinado comentário de texto e por admitir — em meio ao cipoal sociológico, para lembrar suas próprias palavras — uma força da letra nos domínios do pensamento. Porém, a maneira como Os piores anos de nossa vida encontra, ainda, por luxo, o jeito de introduzir, no meio de todas essas vivências que se já estranham a suprema estranheza do judeu. De fato, engana-se quem, embarcando no vício profissional de buscar o trauma deflagrador que define toda obra, e indo atrás da falsa pista do título, supuser que o incidente crucial na vida do alter ego do filósofo que toma a palavra no livro é a ditadura e o expatriamento a que ela dá origem. Mesmo porque temos aqui um subtítulo sarcástico — Histórias — Suspiros Poéticos e Saudades — que logo vem mostrar que o assunto de Ruy Fausto é, muito mais, a própria poesia, o desafio de executá-la como simples prosa, e o inevitável ridículo de quem queira poetar, nos dias que correm. Principalmente se esse alguém teve, na escola, num tempo ainda perto da influência da Retórica, em que se tratava de fazer versos, antes que de interpretá-los, sua jovem alma encharcada por Gonçalves de Magalhães, Fagundes Varella, Luís Murat e companhia, de tal sorte que nem o encontro salvador com a temática da vida besta de Drummond pôde livrá-lo completamente de ser falado pelos românticos brasileiros. A luta contra esse e outros sotaques entranhados, com tudo que ela tem de poética, é, de modo muito claro, uma das questões do livro, senão a questão. Assim, quem ler o poema que lhe dá nome descobrirá que o que temos aí é uma satirização dos tiques de linguagem de uma certa “máfia universitária” paulistana, os “lógós”, os “tro-lo-lós” e os “pão-de-lós” de alguns figurões locais proeminentes, que dispensavam seu saber direto em grego clássico, pelos corredores da Maria Antônia. E ficará se perguntando se não teria sido também à arrogância por definição contrapoética desses discursos que o degredo se tornou preferível. Poderá depois, avançando pelas páginas cada vez mais mordazes que se seguem, verificar como Ruy Fausto, castigando a nossa cordialidade, que tão bizarra deve ter sempre parecido a quem observava desde o mundo francês, não poupa ninguém. Nem os sociólogos, nem os semióticos, embora não se prenda só aos modos dessa famosa dobradinha nacional, que surge no volume em meio a uma “chusma de chatos”. Assim também, neste log book, em que as temporalidades se misturam, fazendo-nos passar de cenas da infância numa família imigrante da primeira metade do século passado, na Avenida Angélica, em São Paulo, a um café na Place de la Sorbonne, em algum ponto dos anos 1980, quando todo mundo já tinha sido anistiado e retornado à pátria, só aparentemente, o centro é a morte precoce de uma mãe. Ela é evocada num poema minimal de três versos, chamado, nada minimalmente, “A desgraça”. Todos os amigos de Ruy Fausto sabem que a morte em questão é autobiográfica, que houve, mesmo, aquele telefonema, naquela manhã, de que fala o poema. Talvez por isso, ele ocupe, quase fisicamente, o miolo do livro. Mas até mesmo aí, o vemos tomar distância do suspiro poético, a tempo, revertido em fria consciência da linguagem, pois eis que uma piadinha cruel se insinua, e o aviso da desgraça vem, no terceto a duas vozes, com um erro de pronúncia da pessoa da casa que, sendo estrangeira, à sua maneira, estranhamente familiar, o deve ter proferido: “Me lembro como se fosse hoje,/ uma manhã/o telefone tocou”. Há aqui, como por toda parte no livrinho de Ruy Fausto, um inventário linguístico ao lado de um memorial doloroso, mostrando que ele também leu e releu Proust. Uma fuga dramática que faz brincar com coisas sérias, como ainda quando fala de Hitler, que “papou” os seus — os Brettschneider —, infringindo o primeiro mandamento das literaturas de testemunho, que, em sua singeleza, nos proíbem de qualquer esgar que não o da máscara trágica diante do Holocausto. Mas principalmente quando encara o clã familiar gentílico e lança seu olhar sobre o pai judeu, o viúvo que lutou sozinho para que os filhos alcançassem o sucesso e se distinguissem num mundo hostil, o que possibilita ao filósofo assim bem criado voltar-lhe as armas de uma ironia aperfeiçoada graças a essa mesma educação, como num romance de Philip Roth. Todo esse amor complicado, toda essa crônica da sucessão geracional passa pelo tropeço nas palavras. Estamos em pleno humor judaico, enfim. Nessa visão derrisória que os judeus sabem ter dos próprio judeus, que é uma forma particular de autoestima e de resistência chistosa à perseguição que vem de fora. E é isso que faz com que Os piores anos de nossa vidas inaugure entre nós, como sem querer e de repente, uma literatura do judeu brasileiro — ou brasileiro judeu — que, salvo engano, nunca tivemos.