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Memórias

Carta para o Ruy

Não consegui escrever antes. Perder um amigo é também situar, diante do susto e da dor, o lugar da amizade em duas vidas e, assim, situar-se, recolocar-se no mundo para continuar.

Relembro o tempo em que deixei de encontrar o Ruy apenas nos cursos oferecidos na Universidade de São Paulo, período que mal completava um semestre, como sua aluna, e passamos a dividir o ponto diário na Bibliothèque nationale de France (entre 2014, 2015 e 2016). Foi mais uma temporada de pesquisas, em 2019, e outra, no início de 2020, que nos avizinhou (Ruy, Beth, a sua ex-esposa, mãe de sua filha e minha querida amiga, e eu), dessa vez, na nossa “petite banlieue parisienne”: Boulogne-Billancourt. Com essa proximidade, além de trabalho na biblioteca, a BnF, dividíamos, por vezes, a volta para casa, tínhamos encontros mais frequentes para almoços, jantares, cinemas, trocávamos sugestões de programas na rádio France Culture, impressões sobre artigos de jornais, os de lá e os de cá do Atlântico, para não falar no miúdo dos dias: “esqueci de fazer a declaração do imposto de renda, você acredita?”, “o telefone está mudo, testa pra mim?”, “hoje tem mouvement social na BnF, nada feito”. Essas imagens se impõem. O rigoroso teórico da dialética, o Ruy dos debates duros com parte da turma da filosofia da USP, dos artigos longos e combativos na Piauí não era exatamente o meu amigo Ruy. As leis fundamentais da nossa amizade, sem constituição escrita, estabeleciam um acordo entre, de um lado, uma escuta atenta e, de outro, a fala como exercício vital daquele que se narrava, pelo menos nos últimos dez anos, em partida de xadrez com a morte. Era esse o Ruy. O que eu escutava, entre trocas bibliográficas, relatos dos artigos en cours dele, contagem apavorada dos muitos livros a ler e os poucos anos de vida que estavam por vir, aplicação rigorosa no enfrentamento do mundo e dos estudos dos economistas adotados pela direita (ele andava com ânimo para Hayek e companhia…), os projetos com a Revista Fevereiro e, nos últimos tempos, com a recém-lançada Revista Rosa (quanta energia para 85 anos!), o que eu escutava, enfim, era como sutilmente a sombra da falta da mãe se projetava naquelas histórias sobre a infância, em certa casa grande e cheia de pessoas, na avenida Angélica, em São Paulo, bem como os desafetos com alguns colegas de profissão e figuras públicas ainda ardiam nas suas falas. A avidez por respostas arqueava as sobrancelhas espessas de um Ruy, então, bravo. Toda a tensão se desfazia, no instante seguinte, pela autoironia, pela comparação com algum personagem arrancado da literatura, pelo sorriso com a volta da filha para a França. A amizade, como eu dizia, permite nos situarmos. Para mim, que passei a minha formação com o peso do “departamento francês de ultramar” nas costas, me achando tabaroa, incapaz demais, diante da formação esmerada e inalcançável daqueles professores das antigas gerações da faculdade de filosofia da USP (sou pessoa dada a documentos antigos e páginas amareladas. “Faculdade de filosofia” é o meu anacronismo consentido ao mesmo “prédio do meio”), acanhada diante da tradição filosófica paulistana, nunca me vi e não me vejo como alguém à altura dos integrantes dos círculos de pensamento do Ruy (“à altura” — sabe-se lá, por qual razão, mesmo racionalizadas, endossamos essas métricas e nos deixamos paralisar e doer por elas), como alguém habilitada para receber suas versões iniciais de artigos. Ruy foi quem me acolheu generosamente, isso sim, sem eu ter nada ou muito pouco a contribuir, depois de ter sido a sua aluna, em alguns cursos da pós-graduação compartilhados com o professor Cicero, no departamento de ciência política, quando permanecia no Brasil.

Havia um sentido profundamente democrático nas bases da nossa amizade. Não a democracia na acepção já empalidecida —tanto que é pronunciada “demos” em diversos discursos, mas pelo valor da igualdade que o democrático carrega. Parte do peso de quem se vê deslocada, inibida e “não merecedora” daquilo que faz e ganha tem a ver com o fato de a igualdade não ser um valor da nossa sociedade (falo a partir do Brasil, de São Paulo, de certa classe média paulista, de onde vim). Igualdade na nossa linguagem mescla-se à ideia de mesmice, de repetição, de falta de originalidade até. De onde brotaria o sentido de que todos podem se olhar e se reconhecer como iguais? Essa outra acepção de igualdade, enraizada nos costumes, eu aprendi com a imaginação generosa de Tocqueville sobre a América, quem não deixou de tratar das potenciais faces perversas dessa mesma ideia. Como Tocqueville, Ruy era um homem destinado pela natureza ao estreito mundo dos poucos, mas convertido à democracia, tolhido na alegria da hospitalidade, bom anfitrião dos amigos e das amigas no seu caos particular, o château-fausto, apartamento abarrotado de jornais e livros, onde nos aquecíamos na prosa, antes de seguirmos para algum restaurante. Era nesse ambiente também, com dicionários sobre os pianos, que ele colocava toda a sua potência em favor de uma genuína democracia. Eu reclamava que a democracia só se realizaria no fato, quando fosse mais verde, republicana e feminista. Concordávamos na forma, no miúdo a história era outra: é claro que Ruy ironizava os meus hábitos “ecolôs”, como se diz lá na França, a começar pelo meu próprio copo que eu carregava todos os dias em nossos cafés. Eu também não tinha nenhuma explicação a dar, nas nossas conversas, se a República viesse colada ao Terror. É verdade também que eu não consegui convencê-lo a deixar de dizer “a amiga” de uma familiar, preferindo dizer o que essa pessoa realmente era: a companheira ou a esposa dela. Na minha lógica, a de alguém nascida mais de cinquenta anos depois do Ruy, eu lia nisso a atenuação de um problema que temos quando o assunto é a identidade de gênero, apesar de saber que ele defendia a vida delas até o fim, sem lidar com nomenclaturas. Teimosos, ficávamos na defesa daquilo que parecia inarredável a cada um em uma democracia exigente. Não deixou de reconhecer e conferir destaque aos grandes atos das mulheres. Afinal, não é Rosa o nome da última revista, da qual ele foi o verdadeiro pulmão? Era uma alegria sólida, não festiva e tolinha, então, esses encontros com o Ruy, os nossos cafés, ao lado das salas K/L, na BnF (“cronometrados” para a minha agenda de trabalho diário, o que Ruy abominava e insistia em dizer que era “excesso de seriedade” minha), os nossos jantares nos restaurantezinhos da região, uma extensão do nosso dia de trabalho, a hora da síntese e das deambulações (aí, sim, sem pressa). Quase posso ouvi-lo passar pela minha mesa, na sala L, destinada aos que se aventuram em documentos e em pensar o tempo (não sou historiadora, mas, infelizmente, a BnF não tem ainda uma salinha para os sem rótulos, os que estão sempre nas franjas, entre uma coisa e outra, nesse mundo regido pela especialização), mais ou menos nesse horário (algo próximo do fim do expediente às 19 horas e pouco): “está com as mãos sujas de sangue ou não teve guilhotina hoje?” (em referência às minhas pesquisas em fontes primárias e esquecidas no século XVIII, antes da Revolução Francesa).

Na tradição da filosofia, nos referimos aos autores com um pronome possessivo. Ruy sempre me perguntava, a despeito de ser esse um objeto de pesquisa já antigo, como andava o “meu” Tocqueville. Neste ano, tive a ocasião de tratar dos “nossos” Tocqueville e Adorno, por ocasião da publicação de um ensaio de Max Pensky, que alia os autores em uma interpretação sobre o autoritarismo. Fiz tal sugestão num almoço de domingo que combinamos por ocasião do aniversário dele. Única vez, nesses anos todos, que calhou de estarmos os dois na semana do aniversário em Paris! Para a minha surpresa, ele não apenas foi atrás da referência, como me escreveu para dizer que tinha gostado muito do livro. Aqui, talvez, tenha se dado o único desencontro da nossa amizade e foi o derradeiro: já em São Paulo, em março, Ruy se deu conta de que não tinha carregado o livro recomendado na bagagem e precisava dele. Pediu que lhe emprestasse o meu volume, mas eu não estava no estado. Eu chegaria para o lançamento da Revista Rosa e o livro seria emprestado. Quando voltei, por ter passado por hospitais, transporte coletivo e ser uma recém-chegada do caos europeu, com a epidemia tomando nossas preocupações, achei prudente me impor a quarentena, mesmo que ainda não fosse uma medida oficial do governo do estado. Ele achou prudente voltar para a sua casa. Nos desencontramos. Não nos vimos mais. A promessa de empréstimo do livro, assim que eu chegasse, não se realizou. Deixou-me uma obra volumosa, que eu não pude trazer na minha mala, na recepção do flat em que se hospedava —era muito gentil esse meu vizinho. Lamento que tenha sido esse o nosso último contato, mas é uma honra (e não podia ser diferente, até para mim, uma anti-fatalista) que um livro tenha sido esse elo. Das letras em um bilhete, verso de um recibo de lavanderia, no qual ele indicava que o livro era para mim, faço a fonte material, anódina, improvável dessa história de amizade amparada num senso muito forte de igualdade que temos em comum.

Não consegui escrever naquela sexta-feira, 1º de maio. Escrevo, hoje, 15 de maio, dia em que no cemitério Père-Lachaise, acompanhado não por uma sombra mas por três mulheres fortes, o corpo do Ruy foi cremado. O que temos, agora, são fios de narrativas que recolocam o Ruy no mundo.