1

Memórias

Oba, Ruy!

Porque era ele; porque era eu.

— Montaigne

Meu primeiro contato com Ruy foi pelos livros. À época cursando História, estava às voltas com o problema da relação entre a esquerda e os regimes comunistas do século XX. Sabendo-me de esquerda, não conseguia compactuar com a supressão da democracia no interior dos Estados revolucionários, frequentemente justificada e defendida como uma necessidade histórica por alas do movimento estudantil e por algumas correntes partidárias. Tendo descoberto há pouco os textos e entrevistas de Ruy, li de uma vez Outro dia e, em seguida, Esquerda difícil. Para alguém de 19 anos que conhecia apenas a ortodoxia da ortodoxia, aquilo foi um clarão: afinal, era possível ser de esquerda, democrata e coerente — tudo ao mesmo tempo. O impasse de contemporizar diante do inaceitável se desfazia, pois, recusando-se a ganga autoritária da tradição comunista, mantinha-se o repúdio ao capitalismo. Assim se afastava o fardo da escolha entre a injustiça manifesta do sistema e a repressão sufocante das alternativas.

Enfim, passado pouco tempo, com esse encantamento súbito, sentia-me um faustiano: bradava contra os amigos de direita e de esquerda que havia vida progressista depois do totalitarismo, que a esquerda ou se assume democrata ou não encontrará seu caminho, que a direita estava enredada em suas próprias más contradições, que a dialética não era mero jogo de palavras… Enfim, o pacote completo. Algo pretensioso, talvez, mas com a segurança de estar baseado na obra de alguém que me parecia ser uma pessoa muito esclarecida em matéria de política e teoria.

Por mero acaso, tive a oportunidade de conhecer Ruy pessoalmente. No final de 2011, Tiago, um grande amigo então estudante de Economia, organizou uma mesa de debate sobre ecologia e energia nuclear. Já havia encontrado um economista pró-nuclear, mas ainda não conhecia ninguém para defender a posição contrária. Ao que parece, o próprio economista sugeriu o nome de André Singer e, como ele não podia, propôs convidar Ruy, que havia acabado de chegar ao Brasil. Apesar de não ter conseguido assistir ao debate, encontrei com Tiago e Ruy alguns dias depois. Ficamos em uma sala do departamento de filosofia conversando sobre política, ecologia e, um dos temas preferidos de Ruy, poesia. Sem nenhum desdém ou arrogância, apesar do tratamento formal de recém-conhecidos, Ruy nos dedicou atenção genuína, de quem não espera nada em troca. Queria saber o que aqueles dois jovens de 20 anos pensavam do mundo e da vida. No final, ele nos presentou com seu último livro de poemas O pior ano de nossa vida. Na dedicatória, escreveu:

Para o Arthur,
Muito cordialmente,

Ruy

Passados alguns meses desse encontro, entrei em um programa de bolsa de estudos para intercâmbio na Sorbonne. Em agosto de 2012 chego a Paris. Depois de uma breve adaptação, resolvi escrever para Ruy marcando um almoço. Ele prontamente respondeu e propôs que nos encontrássemos em um restaurante simples ao lado da Bibliothèque nationale de France.BnF, como é conhecida, daria um episódio à parte: era a segunda casa de Ruy; lá ele passava horas e horas estudando, escrevendo e conversando com amigos franceses e brasileiros. Sempre admirado com a eficiência da biblioteca, chegava de manhã e saía de noite.

Nesse segundo encontro, Ruy logo começou me perguntando se eu queria orientação de pesquisa: adiantou-se explicando que estava muito ocupado e não teria condições de aceitar. Mas não era disso que se tratava, eu apenas queria… bater papo. Conversar com alguém que, para mim, era uma grande figura, um daqueles mestres que faziam parte da história da faculdade. Disse que meu convite para conversar era pra isso mesmo: conversar. Como descobri com o tempo, Ruy era um prosador nato, e acho que essa foi a senha pra que tudo começasse bem. Depois da desconfiança inicial, ele muito animado se pôs a falar de histórias pessoais, anedotas, livros, viagens, preocupações de saúde, a vida na França… Eu apenas olhava admirado, achando curioso que um pensador daquele porte pudesse ser alguém tão extrovertido e bem-humorado, bem longe daquele usual estereótipo do intelectual circunspecto e lacônico, reproduzido. Dotado de um carisma magnético, Ruy encantava com seu jeito despretensioso de conversar e acolher o interlocutor.

E assim nos encontramos por diversas vezes nos restaurantes e cafés parisienses. Quando eu chegava, lá estava Ruy de boina, com sua mochila tiracolo e seus caderninhos pra todo lado, tomando notas e mais notas em uma letra que dificilmente mais alguém entenderia. Depois das refeições, Ruy se apiedava do econômico estudante que eu era e resolvia pagar proporcionalmente. Ou seja, ele sempre pagava dois terços da conta, mesmo sob meus protestos — o que continuou acontecendo em nossos todos nossos encontros, mesmo no Brasil. Além disso, outra constante era a lembrança de sua estadia em Rennes, durante o começo dos anos 1960, encurtada por um pleurisma que o acometeu. Com essa história, Ruy explicava sua fragilidade em termos de saúde e justificava sua escolha sempre pelas mesas mais afastadas das portas, janelas e ar condicionado — geradores das temíveis courants d’air, que ele considerava perigosas para todos. A julgar pelos comentários de Ruy, seríamos levados a pensar que ele já tinha passado por 90% das doenças atualmente conhecidas. Mas depois de uma longa exposição sobre enfermidades possíveis, ele mesmo se punha a tirar sarro de sua hipocondria.

Sem esquecer minha admiração por seu trabalho, comecei a desenvolver outra relação com Ruy — algo pessoal. Hoje, olhando para trás, fico com a impressão de que não havia nenhum motivo especial para sermos amigos; tudo poderia ter se resumido apenas a um encontro fortuito. No entanto, como nas boas amizades, de repente já éramos amigos e nem sabíamos como isso tinha acontecido. A admiração revelou afinidades e as afinidades suscitaram respeito mútuo. A partir daí, sempre que recebia um e-mail, notificação de mensagem, ligação telefônica ou mesmo em encontros cara a cara, Ruy exclamava: “Oba, Arthur!”. Frase típica, ficou estampada em minha memória, com a sonoridade característica de sua voz, que era tão distinta para todos que o conheciam. Achava curiosa essa mistura de empolgação e saudação, e também passei a usá-la, como espécie de cumprimento: “Oba, Ruy!”. Não se tratava de cacoete ou mania, era, na verdade, uma fórmula concisa, mas que resumia tudo à perfeição: a alegria de se estar com um amigo, celebrando sua presença e dando início à conversa.

Ruy era de uma animação notável. Seu sorriso tão característico era de um menino que gostava de fazer troça dos assuntos sisudos: a filosofia, a doença, a morte, o sucesso. Era esse humor leve e certeiro que se contrapunha àqueles que fazem uma grande imagem de si mesmos — vaidade desvairada que nunca foi do feitio de Ruy. Pelo contrário, era o seu não encantamento consigo mesmo que chamava atenção: reconhecendo seus méritos, ele não se deitava sobre eles, querendo pesquisar e escrever até o fim. Aliás, comentou mais de uma vez que achava curiosas as homenagens em vida: se a pessoa ainda estava viva e pensando, por que deveria ser empalhada em um colóquio?

Passado algum tempo, e mesmo com uma evidente assimetria entre um jovem um tanto desinformado e recém-ingresso no mundo universitário e um professor emérito, Ruy começou a me tratar de igual para igual, o que era francamente assustador. Esse tratamento insólito se manifestou pela primeira vez quando logo que voltei de Paris comecei a assistir um curso de Ruy na pós-graduação da Faculdade, no segundo semestre de 2013. Lá pela terceira ou quarta aula ele me convidou para fazer uma apresentação breve, de uns 25 minutos, na abertura da aula seguinte. Pediu que eu falasse sobre o conceito de história. Surpreso e feliz com o convite inusitado, devo ter lido umas duas dezenas de livros em questão de uma semana para me preparar e afastar o nervosismo. De repente, lá estava eu “palestrando” para doutorandos, eu que ainda nem tinha terminado a graduação. Ele me ajudou a conduzir a fala, claro, mas já foi uma dessas oportunidades ímpares que eram ao mesmo tempo teste e confiança. Mais pra frente, no meio de 2016, outro gesto no mesmo sentido: me chamou para fazer parte da Fevereiro. Ora, pensei, o que eu, que mal terminei a graduação, vou fazer no meio de uma equipe de professores universitários? Arriscando, topei. Antes disso, passei por uma espécie de prova de fogo amigável: escrever uma resenha da reedição de Marx: Lógica e Política, que passaria a se chamar Sentido da dialética.

Foi no lançamento do livro, na livraria Martins Fontes da Avenida Paulista, que Ruy me solicitou o texto. Eu, relutante, avisei que não teria capacidade pra fazer um bom texto, pois já conhecia o livro e todas os labirínticos raciocínios nele presentes. Ele me disse pra pensar. Na assinatura do meu exemplar, escreveu:

Para o Arthur
Brilhante jovem amigo
Com um abraço de

Ruy

Jovem eu de fato era, mas brilhante com certeza não. Descontado o exagero elogioso, ele enxergava em mim algo que nunca entendi. Mas talvez os grandes amigos sejam assim: veem em nós um potencial que nós mesmos não conseguimos perceber (e extrapolam alguma possível qualidade para, com a melhor das intenções, nos incentivar a abraçar missões que parecem estar além de nossas forças). Afinal, pensei: rigoroso como é, ele não iria me confiar uma tarefa caso desconfiasse que eu não poderia cumpri-la com algum êxito. Seguro com esse cordial pensamento, me aventurei. O texto foi publicado, ainda como colaborador. Com algumas ressalvas, Ruy, me parece, gostou.

Para escrever a resenha, mergulhei fundo tanto no livro quanto nas obras que lhe servem de ponto de partida. Qualquer um que tenha lido os textos teóricos de Ruy sabe como eles têm uma tessitura própria: densos, árduos e exigentes. Quando se desvia o foco de uma frase já se perdeu o fio da meada. São leituras nas quais se percebe que mesmo os aparentes excessos da obra — as temidas e extensas notas de rodapé, por exemplo — são plenamente justificados. Não há empáfia e nem hermetismo disfarçado de profundidade intelectual; tudo parece ter o seu lugar, sem frases de efeito ou malabarismos desnecessários. Ao final dessa longa batalha cognitiva, há uma recompensa: os resultados são esclarecedores e a interpretação de Ruy cola no texto de uma tal maneira que dificilmente se consegue ler de outra forma. Virtuose da especulação, Ruy sabia descer às minúcias e pormenores para nos provar por a+b que a dialética não é um instrumento banal, mas que, ainda assim, ela tem seus limites — e mesmo que eu tenha tentado outros caminhos teóricos, parece que sempre acabo voltando pra esses resultados.

Essa resenha me fez lembrar que foram raras as vezes em que conversamos sobre filosofia — minha impressão era a de que ele não gostava muito. Primeiro porque teoria era coisa séria que precisa de tempo próprio; segundo, porque havia assuntos muito mais importantes e urgentes: causos, histórias divertidas, piadas… Tanto eram incomuns esses momentos que me lembro com clareza de certa vez que, no meio de uma conversa no bistrô La Tartine, Ruy se lançou a uma especulação de trinta minutos a respeito da organização da filosofia hegeliana. A verdade é que ele não gostava de fazer filosofia fora dos textos, pois falar de filosofia sem as devidas referências textuais poderia descambar facilmente para um diletantismo livresco.

Passando da filosofia para o mundo, havia a mediação da política. Na vida de Ruy, política e filosofia caminhavam lado a lado: eram paixões que se encontravam e se colocavam à prova. Era assombroso como por vezes Ruy partia de uma experiência política empírica circunscrita para, de repente, mostrar como em seu âmago se revelava uma questão filosófica da maior importância. Ou, via inversa, de um conceito abstrato fazia uma passagem repentina, mas sólida, para um problema de ordem política. Contudo, Ruy não se cansou de acentuar a descontinuidade existente entre a formação filosófica e política: um bom filósofo não faz, necessariamente, boa política.

Quando num dos nossos primeiros encontros Ruy soube que eu cursava história, falou que, nos últimos tempos, tinha lido os historiadores até demais e que, via de regra, eles tinham uma percepção política mais aguda e calibrada que a dos filósofos. Nessa mesma conversa, que começou nas escadas da BnF, ele comentou que, se não tivesse optado pela filosofia, gostaria de ter sido historiador — eu, curiosamente, estava fazendo o caminho contrário, indo da história pra filosofia — e arrematou dizendo que Aristóteles estava certo: a boa especulação surge de um vasto e cuidadoso estudo empírico. Em nossas inúmeras conversas sobre política, sempre me impressionou, talvez por causa dessa capacidade de conciliar filosofia e história, a lucidez crítica dos juízos de Ruy, construídos com sutil equilíbrio de senso teórico e evidência concretas. Em matéria de política, era comum que cada frase sua, por mais singela que fosse, estivesse ancorada em inúmeras leituras e reflexões de anos.

Por valorizar essa compreensão detalhada da experiência concreta, Ruy hesitava em opinar sobre a política brasileira. Estando afastado do Brasil por tanto tempo, apesar de passar alguns meses por ano no país, ele muitas vezes se sentia por fora. Mas, engajado em participar do debate público, procurava contornar esse distanciamento físico absorvendo o máximo de informações sobre a conjuntura nacional — e não raramente quando me ligava para saber de notícias sobre o Brasil já estava mais informado do que eu. Sabendo fazer bom uso de sua condição entre-dois-mundos, Ruy também acompanhava com afinco a política francesa e usava as experiências de ambos os lados do Atlântico para fazer a crítica uma da outra.

Foram sobretudo suas opiniões recentes sobre a política nacional que geraram controvérsia. Minha visão, talvez minoritária: ao contrário do que se possa imaginar, Ruy não era uma figura polêmica. Como seu pendor crítico era balanceado por grande afabilidade no trato pessoal, era comum que Ruy discutisse até o fim com alguém, mas sem levar nada a mal, e esperando por réplicas e tréplicas — nós mesmos chegamos a alguns debates mais aprofundados. Em suas intervenções, era duro, mas leal, sem nunca resvalar em ofensas pessoais. É verdade que não fugia ao confronto e nem se contentava com a troca de gracejos entre pares, porque para ele, o enfrentamento teórico estava longe de ser mero narcisismo das pequenas diferenças. Por isso, gostava de demarcar sua posição: Ruy não era intransigente, mas, sim, resoluto. Acusado de ser sectário, defendia o que para alguns eram meros detalhes: o detalhe da democracia, o detalhe da liberdade, o detalhe do espírito crítico… Evidente que, para ele, não se tratava de meros detalhes, mas daquilo que era decisivo.

Por nossa amizade e pelo entrelaçamento de nossos discursos — ainda que pequenas divergências aqui e lá pudessem vir à tona —, Ruy me enviava seus textos pedindo comentários. Com muita frequência, eu oferecia mais de uma dezena de sugestões. Das minhas observações, ele acatava uma parte, rejeitava outras, mas sempre justificava e agradecia. Finalmente, ele acolhia duas ou três delas e me dizia que eu era o coautor dos textos. Por vezes, Ruy sugeriu que assinássemos em conjunto, mas não me sentia à vontade, afinal ele tinha feito tudo e eu apenas dera um ou outro palpite. Uma das minhas tristezas foi não ter escrito a quatro mãos: um de meus últimos e-mails foi sugerindo a Ruy uma ideia sobre a qual eu redigiria um rascunho inicial e depois nós dois, retrabalhando o texto, publicaríamos… Eu também confiava meus textos ao Ruy e queria que ele pudesse bater o olho nesse aqui e me responder, como ele fazia, que ali tem uma palavra estranha, que tal parágrafo não funciona tão bem, que faltou desenvolver alguma ideia, mas que, afinal, ele gostou.

Além dos textos, ele comentava de inúmeras ideias para artigos, análises e livros. Sua vitalidade, que se espraiava por diversos projetos, textos e intervenções, era impressionante — com 85 anos contava mais dez para conseguir realizar todas as ideias que pululavam em sua cabeça. Essa personalidade inquieta de Ruy revelava sua alma cheia de curiosidade: gostava de aprender e conhecer de tudo. Já encontrei com Ruy enquanto ele lia Balzac, ou folheava um extenso tratado de lógica, ou espiava um pesado volume sobre a história da matemática, ou fazia anotações em livros de teoria econômica, isso sem contar as várias vezes em que encerrávamos nossas conversas telefônicas para ele pegar o próximo documentário de duas ou três horas sobre a Segunda Guerra Mundial.

Com a atenção quase toda focada em atividades intelectuais, Ruy era de uma simplicidade e austeridade estoicas. Quando vinha ao Brasil, ficava em uma minúscula kitnet próxima da USP e, depois, passou para um flat igualmente pequeno ao lado da PUC. O que se espalhava por onde estivesse eram as pilhas de livros, textos, jornais e cadernos. Da última vez que esteve por aqui, me pediu para emprestar travesseiro e roupa de cama; ele tinha esquecido de trazer, mas carregava uma mala de 30 kg com livros pra ele e pra mim. Nos últimos anos, estávamos tão próximos, que mais de uma vez chegaram a me tomar por uma espécie de agente ou secretário dele… Evidente que não era o caso, apesar de eu receber com grande prazer e honra a ideia de estar vinculado ao Ruy, mas esse vínculo era de amizade, não de procuração. Amizade incomum, talvez, de um jovem de vinte e poucos anos e um senhor de oitenta e tantos, que gostavam de falar de política, livros e da vida.

Recentemente, estávamos, junto com outros amigos, nessa caminhada que foi a construção da Rosa. Em alguns momentos, Ruy desconfiou que a revista não sairia; afinal, foi um longo processo, permeado de encontros e desencontros. Mas depois de muito empenho, a Rosa viu a luz do dia. O nome foi sugestão dele — que também nisso era muito criativo. O texto de apresentação da revista, baseado em um rascunho feito por ele, condensa a perspectiva de Ruy: a tarefa é árdua e os resquícios de um velho mundo carcomido teimam em se fazer presentes, mas há um novo mundo a construir, e se a razão bem conduzida não pode construí-lo sozinha, com certeza sem ela tudo ficará mais difícil. Em nossas últimas conversas, ele estava maravilhado com a força da revista, sua capacidade de agregar pessoas e fazer fluir debates: queria que ela fosse esse lugar de encontro de pensamentos distintos mas convergentes. Sem dúvida, ele sentiu que o esforço inicial valeu a pena.

Mesmo com a idade avançada, sua despedida foi uma surpresa para mim: a julgar por seu ânimo inesgotável, pensei que ele viveria para sempre. Isso pelo simples motivo de que Ruy viveu como se fosse viver, e assim não nos preparou para sua partida. Só com ela me dei conta da intensidade de nossa relação. Imerso em um contato diário, não conseguia de fato entender a importância que sua amizade tinha tomado na minha vida. Por isso foi tão difícil escrever. Reformulei esse texto inúmeras vezes. Oscilando entre formatos convencionais, não fiquei satisfeito com nenhum deles. Não foram versões ruins, mas eram em partes impessoais: falavam de Ruy como se eu estivesse escrevendo uma monografia, tentando esconder por detrás de pronomes impessoais e normas retóricas de praxe a admiração desmesurada e a tristeza profunda pela sua despedida repentina.

A morte é um dado evidente da vida; ela não se esconde: está lá para lembrar a todos de sua realidade. Acontece que não trabalhamos com essa variável: nunca pensamos que um encontro, um diálogo ou uma troca de mensagens podem ser os últimos. A morte existe para nós, mas existe enquanto nossa morte, não enquanto morte do outro. Imaginamos nosso fim, mas sem nunca cogitar o fim de nossos amigos. Daí surge o vazio daquelas situações que são, agora, irrepetíveis, que já não podem ser, mas apenas existir como lembrança. Essas memórias mostram que há uma parte de nós que morre junto: nada disso pode existir sem que aquela pessoa específica esteja por perto..

Do muito que persiste na memória, e que tentei ao menos em parte reproduzir aqui, também lembro da sugestão de Ruy para que eu me titulasse. Ele tinha razão. Dizia que eu deveria logo fazer pesquisa, mestrado e doutorado, pois esse caminho podia garantir uma vida estável para me dedicar aos estudos. E aquilo que começou com uma recusa, quando ele me disse que não poderia me orientar, terminava com uma abertura: se eu quisesse, poderia fazer a pesquisa com ele. Mas tive receio de não ser capaz de fazer um trabalho à altura do que Ruy esperava e de estragar a relação que tínhamos desenvolvido — sabe-se bem como pode ser turbulenta a dinâmica entre orientador e orientando. No fim, Ruy não foi meu orientador, mas foi muito mais do que isso: sai em busca de um mestre e encontrei um amigo de primeira ordem. No lançamento de seu último livro, O ciclo do totalitarismo, Ruy me deu um exemplar com a seguinte dedicatória:

Para o Arthur,
Grande amigo,
Amigo novo,
Com um grande abraço do

Ruy

O próprio Ruy me dizia que não tinha discípulos, mas, sim, amigos. Como uma deles, me sinto no dever de tentar equacionar uma soma rara — quase impossível — mas que bem caracteriza sua vida e seu legado: alma democrática, lucidez política e rigor teórico, sem esquecer o humor, a arte e a amizade.

(Ao saber que ele se foi enquanto tocava piano, lembrei que, há alguns anos, Ruy havia me pedido para, enquanto ele estivesse na França, guardar seu teclado, e usá-lo se eu quisesse. Agora, apesar de não saber tocar, eu o montei na sala de casa e já ensaio as primeiras tentativas.)

— Junho/2020