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Entrevista de Ruy Fausto concedida à Revista Época, em 15 de novembro de 20191

1. O senhor fez duras críticas à atuação do PT nas eleições de 2018. Acha que o mesmo caminho está se desenhando para 2022?

Ao que tudo indica, eles vão repetir o que fizeram em 2018. Não se trata aqui de querer abrir fogo contra tal ou tal partido. Trata-se de sair da situação muito difícil em que o Brasil está. É possível que o Lula seja candidato, mas continuo achando que é má ideia. Sem dúvida, há sondagens que mostram um resultado melhor para Lula do que para Haddad contra Bolsonaro. Mas isso é enganoso: lançar o Lula é problema, como era no ano passado. Porque a rejeição a ele — e também ao PT, cujo passado Lula encarna mais que ninguém — é muito grande. Há muita gente, também dentro da esquerda, que não quer essa candidatura de jeito nenhum. Levando em conta essa rejeição que a direção do PT insiste em desconhecer, o lançamento do Lula é uma parada muito séria. A direção do partido e o Haddad não entenderam isso. Li uma entrevista do Haddad, meu velho amigo, aliás, em que ele diz que faria o mesmo que fez em 2018. Fiquei com vontade de perguntar: “Então, se houver um segundo turno, você faria, na segunda-feira, alguma coisa parecida ao beija-mão que você deu em Lula lá em Curitiba?”. Aquilo foi um desastre total.

2. É possível crer na candidatura de Haddad?

Haddad ou algum outro bom candidato. O Haddad conseguiu 45 milhões de votos, graças, sem dúvida, entre outras coisas, ao apoio do Lula. Ao mesmo tempo, também não conseguiu ganhar por causa de Lula. Teria sido preciso saber modular esse apoio. Tudo bem o Lula apoiá-lo, mas desde que se guarde a autonomia do candidato, sem que o transformem em boneco. Foi o que fizeram até o final da campanha. Alguns e algumas até jogaram cascas de banana no chão, tão grande era seu entusiasmo pela candidatura de Haddad.

3. O senhor acredita na possibilidade de volta da esquerda em 2022?

A situação é muito difícil, complicada. Seria muito importante ganhar. Precisaríamos pensar, desde já, numa frente de esquerda e para além da esquerda, se for possível. No plano parlamentar, fizeram muitas coisas. A liderança na Câmara, com o Alessandro Molon (PSB-RJ), e outros deputados, como o Ivan Valente (Psol-RJ). Ali funcionou uma espécie de frente única. Houve também um bom trabalho na rua. As pessoas saíram em manifestações. PT, PDT, Psol, PSB, PCdoB são cinco partidos com quase o mesmo programa. Precisamos urgentemente de uma “geringonça” brasileira. Uma aliança de forças. Só ela poderia nos salvar.

4. Como conciliar Ciro Gomes nessa frente?

Entendo que o Ciro tenha ressentimento com o PT, porque eles sempre jogaram pesado. Mas ele exagera, chamando um de ladrão, outro de ladrão. Inversamente, o PT só quer Lula, Lula, Lula. Se houvesse aliança entre esses partidos, teríamos todas as condições de chegar ao segundo turno e até de ganhar. O que é possível fazer? Temos de ganhar os votos das pessoas que votaram em branco e do pessoal que abandonou o Bolsonaro. Ele tinha 57,8 milhões de votos e hoje tem 35% de aprovação. Está caindo, perdendo força. Mas, nas pesquisas sobre preferências para as eleições presidenciais de 2022, ele ganha. Por que esse paradoxo? Porque só uma pequena porção dos descontentes vota na esquerda ou simplesmente vota. Está cheio de gente que condena o Bolsonaro e diz que não vai votar nele, mas que, apesar disso, não votará na esquerda ou não votará. Como ganhar essa gente? Uma parcela importante desse contingente apoiaria a esquerda se houvesse ocorrido uma autocrítica séria por parte do PT. Todo mundo sabe que houve muita coisa errada sob os governos petistas. A rejeição não é simplesmente produto da propaganda mentirosa da direita. Há rejeição de esquerda ao lado negativo das políticas petistas. Mas a direção do PT se recusa a fazer uma autocrítica verdadeira e continuará a se recusar, infelizmente.

5. E como esses votos que não querem a esquerda podem ser conquistados?

É preciso pensar numa chapa de união, provavelmente com alguém do Centro-Sul e outro — ou outra — do Nordeste. E fazer um trabalho sobre o eleitorado indeciso. Aí acho que teria de trabalhar seriamente a questão das igrejas. Muito seriamente. Explorar as possibilidades dos setores religiosos não bolsonaristas, que não são poucos. O Haddad fez contatos importantes, parece que o Lula, na cadeia, procurava ver pela TV manifestações desses grupos. É preciso também se organizar seriamente para neutralizar o trabalho sujo que eles fazem com o Whatsapp e a internet e não deixar de criticar o poder por onde ele puder ser criticado. Bolsonaro enfrenta dificuldades. As revelações do Intercept, as milícias, os escândalos do tipo Queiroz, todas as besteiras que fizeram.

O fato é que não temos nenhum candidato ideal, mas temos opções. Além do próprio Haddad, Rui Costa, Flávio Dino e outros ou outras, governadores ou não. Esse PT do Nordeste é muito importante. Lá, a base da esquerda é muito grande. São forças menos sectárias e burocratizadas que as do Sul. É preciso juntar essas forças. Sem dúvida, esse projeto é, por ora, um ideal. O que acho que vai acontecer? Creio que haverá uma candidatura do PT e, por outro lado, também a do Ciro. Mas coligações serão formadas, já estão se formando: PDT se juntando com PSB, PT com Psol. Vamos ver se é possível que pelo menos as relações entre esses dois blocos sejam pacificadas.

6. Bolsonaro criou um movimento de massa. É possível a esquerda ser competitiva sem um candidato de massa?

Bolsonaro não tem massa. O apoio de que dispõe no eleitorado é relativamente pequeno, mas se trata de um bando fanatizado. Só nesse sentido ele seria um candidato “de massa”. A esquerda tem de buscar não um “candidato de massa”, mas uma candidatura fundada num movimento amplo e, na medida do possível, consciente do que está em jogo. Insisto: há uma real ameaça à democracia — ou ao que nos resta dela. Nesse sentido, vou contra as posições de certos colegas, amigos meus, que acham que a democracia já foi ou nunca foi e que se deve “ir aos extremos”. A ideia que corre em certas áreas intelectuais é que não vale a pena defender a democracia, que já não existiria. Isso seria fazer o que fizeram os comunistas na época do nazismo: buscar uma posição extrema para se opor ao extremismo nazista. O resultado, nós sabemos qual foi.

7. O senhor vê a população, de um modo geral, preocupada com a democracia?

O povo em geral está muito preocupado com corrupção. O que, diga-se de passagem, não é inteiramente negativo. Ninguém tolera o “rouba, mas faz”. Em relação à democracia é variável. Mas não dá para dizer que o Bolsonaro tem o apoio do povo. Ele tem apoio desses 15 milhões. Os 58 milhões ele não tem mais. Não acho que todo mundo seja louco pela democracia, mas também não estão querendo o fim dela. Creio que os populismos também estão muito desgastados. Claro que tudo isso é deformado pela propaganda da direita. Mas há um contingente considerável da população que de fato quer o pior e que, por isso mesmo, é irrecuperável.

8. Pelos discursos feitos por Lula após sua saída da prisão, o senhor vê algum sinal de que ele possa ser um conciliador daqui para a frente?

O discurso teve pontos positivos. Ele atacou corretamente o atual poder, mostrando o peso das milícias. Também atacou o Guedes. A propósito, é triste ver nossos economistas liberais, mesmo os mais sérios, tão pouco preocupados, com raras exceções, com a deriva autoritária do poder. Também é positivo que Lula tenha falado em “volta da esquerda” ao poder, e não especificamente em “volta do PT”. Mas a referência elogiosa à Venezuela é um pequeno desastre. Não se trata só de um problema de princípios. O apoio a governos desse tipo é a segunda maior razão da rejeição do PT por parte de setores da esquerda. Se Lula tivesse repensado a fundo esse ponto e a questão da corrupção, poderia ter sido a grande figura de reunião das esquerdas. Sem isso, há alegria com a soltura de Lula, mas não há grande entusiasmo. Só convertidos, relativamente minoritários, jubilam sem reticência.

9. Os últimos acontecimentos na América Latina, como os protestos no Chile, a saída de Evo Morales da Bolívia, a dissolução do parlamento no Peru, têm aspectos em comum?

O caso Evo Morales tem de ser analisado com cuidado. Evidentemente, estamos diante de uma ofensiva da extrema-direita, liderada por esse Luis Camacho, espécie de Bolsonaro boliviano. Então, no momento, o importante é lutar para que haja eleições livres. O governo de Morales teve muitos aspectos positivos. Isso é reconhecido quase universalmente. No entanto, também se aferrou ao poder no pior estilo dos autocratas populistas. Ele perdera um plebiscito pelo qual pensava legalizar o novo mandato. Depois, tudo leva a crer que houve mesmo fraude na apuração. Claro que a extrema-direita está mesmo dando um golpe cujas consequências podem ser terríveis, e não só para a Bolívia. Mas é preciso entender como o populismo, a alergia à democracia por parte de certas esquerdas — a de Morales e a dos que o apoiam incondicionalmente — contribuíram para essa tragédia. Assinalemos, para dar também boas notícias, que, com o chamado Grupo de Puebla, está se constituindo uma articulação das esquerdas democráticas latino-americanas promissora, sem Cuba e sem a Venezuela.